Para Francisco, “a memória de um povo” é sempre concreta

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

03 Outubro 2016

Enquanto São Papa João Paulo II concebia a “memória de um povo” em termos de seus grandes pontos de inflexão culturais e de suas personalidades, e Bento XVI a via por meio de lentes intelectuais, Francisco claramente enxerga a “memória de um povo” incorporada nas memórias individuais das pessoas concretas, especialmente os mais velhos.

A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 01-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Os papas tendem a ser homens idosos, assumindo o papado num estádio da vida em que muitas pessoas se encontram naturalmente inclinadas a olhar para trás e não para o futuro, o que pode ajudar explicar por que cada um dos últimos três papas estiveram, cada um a seu modo, fascinados pelo tema da memória.

Para São João Paulo II, a cura da memória era uma paixão especial, obviamente modelada por sua experiência de ter crescido à sombra de Auschwitz e vivenciado o trauma infligido aos poloneses tanto pelos nazistas como pelos soviéticos.

Como um filho orgulhoso da Polônia, João Paulo II esteve também muito ligado às memórias um povo inteiro – poetas e dramaturgos, santos e místicos, as grandes batalhas e os grandes discursos, todas as personalidades e pontos de inflexão que forneceram a matéria-prima de uma cultura nacional.

Esteve entre os seus dons especiais o incentivar as pessoas ao redor do mundo a apegarem-se às suas memórias assim como ele era apegado às memórias de seu país de origem.

Para Bento XVI, a memória assume uma moralidade diferente. De formas diferentes, Bento é menos filho da Alemanha do que o é da cristandade, e a memória com a qual ele mais se preocupa pertence à Europa.

Particularmente, em várias ocasiões Bento advertiu ao longo dos anos que uma Europa desligada de seu passado – isto é, da sua identidade cristã, sim, mas também do legado filosófico e cultural da razão – é uma Europa que corre risco.

Isso tudo nos leva ao Papa Francisco, que esteve nestes últimos dias na região do Cáucaso visitando a Geórgia e o Azerbaijão, depois de ter estado na Armênia em junho.

Esta região, afinal de contas, é uma área do mundo onde a memória é ubíqua.

Da mesma forma como acontecia com João Paulo II e Bento XVI em suas viagens, Francisco tem incentivado os povos a valorizar as suas “memórias enquanto povo”, tanto como um serviço à nação como também um baluarte da fé cristã da Geórgia.

Como declarou Francisco no sábado à noite em uma visita à Catedral Patriarcal de Svietyskhoveli: “A queda do povo começa no ponto onde acaba a memória do passado”, ao citar o poeta georgiano do século XIX Ilia Chavchavadze.

Francisco trouxe presente o tema da memória em uma sessão com a pequena comunidade de padres, religiosos/as e seminaristas no sábado, juntamente com representantes dos leigos e jovens. Francisco não tinha textos preparados para a sessão.

Sentou-se a escutar, com atenção, as quatro perguntas que lhe fizeram, em alguns momentos ele tomou nota e sublinhou passagens em particular.

Em seguida, o líder católico ficou mais de meia hora falando de improviso.

Ao ser perguntado por um padre armênio, que havia mencionado a importância de valorizar as “memórias do passado”, Francisco contou uma história ocorrida em sua ida à Armênia em junho.

“Acabada a missa, convidei [um bispo] a subir para o papamóvel (…) e também trouxe o bispo da Igreja Apostólica Armênia, da mesma cidade. Éramos três bispos: o Bispo de Roma, o Bispo Católico de Gyumri e o Bispo Armênio Apostólico. Os três juntos: uma boa salada de fruta!”, brincou.

Francisco descreveu o momento em que desceu do papamóvel e que foi em direção a uma senhora idosa espremida contra uma barreira na tentativa de vê-lo. Disse que ele se aproximou para cumprimentá-la, e a mulher contou que veio da Geórgia e que havia passado oito horas andando de ônibus, tudo para vê-lo. Francisco lembrou que ela usava um dente de ouro.

No dia seguinte, disse o papa, ele estava num outro evento e avistou a mesma mulher. Aproximou-se e disse: “Veio de novo?”, disse, e ela respondeu: “Sim, por causa da minha fé”.

“Olhem o testemunho que deu esta mulher. Ela acreditava que Jesus Cristo, Filho de Deus, deixou Pedro na terra e ela queria ver Pedro (…). Ela humilde senhora estava disposta a passar oito horas num ônibus (...)”, falou. “Então, resumindo, para estar firmes na fé é preciso ter memória do passado, coragem no presente e esperança no futuro (…) Manter viva a memória do passado, a história nacional e ter a coragem de sonhar e construir um futuro luminoso”.

Em outras palavras, o que Francisco ressalta é que a “memória de um povo” jamais é uma abstração – ela compõe-se de memórias e experiências específicas alojadas nas pessoas concretas, de carne e osso, e portanto “manter viva a memória do passado” tem a ver, em grande parte, com ouvir estas histórias e prestar respeito por sua sabedoria.

Como fez várias vezes neste ponto em suas sessões de improviso, Francisco aqui também salientou a importância dos idosos, convocando os jovens a cultivar fortes laços com os avós, e ressaltou a importância das “mães e avós” como pessoas que carregam tanto a memória como a cultura de um povo.

“Uma planta sem raízes não cresce”, disse o papa. “Uma fé sem a raiz da mãe e da avó não cresce”, completou.

Essas memórias pessoais passadas em momentos singulares, acrescentou o pontífice, são “a água fresca da fé”.

Em outras palavras, para o papa a preservação da memória é um dever, sim, e, em parte, tem a ver com grandes figuras e momentos culturais, assim como com os últimos conhecimentos desenvolvidos numa tradição intelectual, artística e literária particular.

O papa provavelmente concordaria em que, se se quer encontrar a “memória de um povo”, uma forma de conseguir isso é indo à livraria, a uma ópera, ou mesmo perambulando pelas ruas das grandes cidades perguntando-se sobre suas estátuas e monumentos.

Por outro lado, Francisco provavelmente mostrar-se-ia também inclinado a buscar a memória do povo georgiano nos georgianos particulares que ele encontra – incluindo, como se vê, uma simples georgiana octogenária com um dente de outro e uma determinação sólida como uma rocha para ver um papa.

Leia mais...