24 Setembro 2016
Faz algum tempo que a hidrelétrica de Belo Monte não produz uma centelha de energia. Assim como previsto e predito, as águas do rio Xingu estão escassas e não sobra força para gerar força. Mas sobrou violência que, no início de setembro, acabou com a vida de uma moça de 31 anos. Caso quase idêntico a outro, que abalou o Brasil.
A reportagem é publicada por Xingu Vivo Para Sempre, 21-09-2016.
No dia 15 deste mês, um rebojo, como o povo dos rios chama os redemoinhos que se formam sem aviso prévio em locais de correnteza, levou o ator Domingos Montagner para as profundezas do São Francisco. Devolveu apenas seu corpo, dolorosamente chorado por todo o país. A tragédia aconteceu em Canindé de São Francisco (SE), nas cercanias da usina de Xingó, localizada entre Sergipe e Alagoas.
Praticamente uma semana antes, um rebojo também arrastou para o fundo do rio Zilac Zelda Ferreira Guedes Reis, 31, professora de ciências do reassentamento Sol Nascente, na comunidade Assurini, Altamira, às margens do Xingu, no Pará. Ela e o companheiro Luzivaldo Feitosa Reis, professor de matemática, estavam pescando no rio hoje interrompido pela hidrelétrica de Belo Monte, quando a rabeta que os levava foi apanhada pelo redemoinho e virou.
A morte de Zilac rendeu algumas notas na mídia local e um comunicado do Consórcio Norte Energia, responsável pela construção de Belo Monte. Segundo a empresa, “os dois pescavam em local muito próximo ao barramento e foram alertados verbalmente pela Segurança Patrimonial de que as atividades de pesca e navegação são proibidas na área. Ignorando os alertas, se aproximaram ainda mais da barragem, quando foram envolvidos pelo rebojo das águas. O barco em que estavam naufragou e ambos foram atraídos para o interior da comporta 9 que estava com uma abertura de 75 cm para a manutenção da vazão mínima do Rio Xingu. (…) Uma vez consumado o acidente, todos os recursos disponíveis foram utilizados na tentativa de resgate do casal. Os esforços lograram êxito no salvamento de Luzivaldo. Contudo, Zilac desapareceu nas águas”.
Passadas duas semanas da tragédia que destruiu sua vida, Luzivaldo finalmente resolveu falar. Porque não aguentou calar diante das declarações da empresa, e porque pretende lutar por justiça nas esferas legais. Nesta terça, 20, procurou ajuda no Movimento Xingu Vivo tanto para dar sua versão dos fatos quanto para pedir intermediação junto ao Ministério Público Federal, a quem pretende apelar.
Na quarta, 7 de setembro, feriado nacional, conta, foi para o Xingu porque Zilac amava a pescaria mais que tudo. “A gente tinha a informação de que a Justiça tinha paralisado Belo Monte, a água estava calma, não havia nenhum tipo de sinalização de perigo. Estávamos a cerca de 400 metros da comporta da usina, quando de repente um rebojo pegou a rabeta, que virou com a gente dentro. Eu comecei a nadar desesperado, segurando o braço dela, estávamos chegando perto da margem quando uma correnteza forte, que bate no pedral ali perto e volta pra usina, nos apanhou e um segundo redemoinho nos levou pra boca da comporta. Era como se a gente estivesse dentro de uma enorme máquina de lavar, girando para o fundo. Eu gritava por socorro, foi juntando trabalhador da obra, mas não tinha nenhum segurança, ninguém que soubesse o que fazer.
Consegui me agarrar num canto da comporta, alguém achou um salva-vidas não sei onde, jogaram pra mim, mas fiquei la, agarrado, por uns 20 minutos até acharem uma corda, amarrarem um pau e me atirarem o socorro. Me puxaram e eu fiquei lá, quase morto; não tinha ambulância, nada. Se eu penso na nota da Norte Energia… que raiva de tanta mentira. Não tinha aviso, não teve socorro, não teve nada”.
Segundo Luzivaldo, o corpo de bombeiros designado para a busca de Zilac começou a trabalhar apenas no dia seguinte, mas foram os seus familiares que a encontraram, cerca de 30 horas depois de sua morte. Todos os procedimentos do velório, todos os gastos – inclusive a reparação de dois dentes que perdeu na tragédia -, ficaram por sua conta.
Luzivaldo, que mora em uma pequena chácara onde criava galinhas caipiras com Zilac, está sem chão. “Ela estava trabalhando em uma antologia de poesias na escola, estava construindo um viveiro, tem um garoto de 12 anos que também pegou pra criar… ela era muito querida, uma pessoa tão especial… tão especial…”.
A versão do professor de que a Norte Energia mentiu ao afirmar que havia sinalização de segurança é corroborada por um relatório de fiscalização do Ibama, que ocorreu em meados de julho passado. De acordo com o documento, elaborado após uma vistoria de quatro dias e divulgado em 9 de agosto, “de modo geral, tanto no sítio Belo Monte quanto no sítio Pimental verificou-se um certo afrouxamento nos processos de segurança. O acesso a áreas controladas, onde havia sinalização de uso de óculos e protetores auriculares, foi feito sem uso desses equipamentos. Do mesmo modo, não houve, como de praxe, acompanhamento de técnicos ou engenheiros de segurança do trabalho, comumente visto em obras de grande porte.
Durante a reunião na NESA, foi informado ao Ibama que já haviam sido instaladas sinalizações de advertência aos pescadores, para que estes não se aproximem demasiadamente das estruturas do Sítio Pimental. Contudo, durante a vistoria não foi identificado o local dessa sinalização” (grifo nosso).
“Fizemos uma vistoria no local das obras de Belo Monte entre 18 e 22 de julho e, apesar de a segurança não ser competência nossa, perguntamos sobre a sinalização para os pescadores. A Norte Energia disse que havia. A gente não viu”, afirmou o chefe do escritório regional do Ibama em Altamira, Hugo Loss. Tanto que em suas conclusões, o documento afirma a necessidade de “instalação de sinalização de segurança na região dos vertedouros da barragem principal” e de “indicar local em que estão instaladas as sinalizações de advertência aos pescadores”.
Questionado sobre o funcionamento da comportas durante a paralisação da usina por ordem judicial, Loss explica que os vertedouros permitem a vasão das águas para o trecho da Volta Grande do Xingu, que sem isso secaria completamente.
Principalmente porque o volume de água do rio está tão diminuto que há tempos Belo Monte não produz um watt de energia. “É um sistema em que a água vem liberada por baixo do rio, como se fosse uma gaveta. Não há como fechar essa comporta porque senão as comunidades da Volta Grande ficariam no seco, e por isso mesmo Belo Monte não está produzindo nada de energia. Simplesmente não há água. Como Ibama não posso julgar o caso de Zilac, não compete ao órgão. Só posso dizer que o que vimos está no relatório”.
Luzivaldo se prepara agora para lutar por justiça. “O caso de Domingos em Xingó foi igual ao caso de Zilac no Xingu, duas usinas que levaram duas vidas. Com a diferença de que aqui sabemos dos culpados, mas ninguém sabe da gente”.
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Xingó e Xingu: duas usinas, duas mortes, várias mentiras e uma luta por justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU