07 Setembro 2016
A diversidade de povos e comunidades tradicionais no Brasil é imensa, assim como seus saberes, crenças e costumes, dentre outros elementos que compõem nossa riqueza cultural. Quebradeiras de coco, ribeirinhos, extrativistas, pescadores artesanais, dentre tantos outros segmentos, tendo os quilombolas e indígenas à frente na raiz da identidade nacional, são alguns deles. Todos são afetados diretamente com as mudanças em curso no cenário político e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Embora os movimentos tenham críticas ao governo do Partido dos Trabalhadores (PT), estão todos preocupados com os possíveis retrocessos e perdas de direitos nesse contexto de golpe parlamentar que levou Michel Temer (PMDB) à presidência.
A reportagem é de Eduardo Sá, publicada por Articulação Nacional de Agroecologia, 05-09-2016.
O atual Congresso brasileiro é considerado o mais conservador das últimas décadas, no qual a bancada ruralista, cujos interesses são opostos aos dos povos e comunidades tradicionais, tem muitos representantes. São eles que estão pressionando pela aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que delega ao legislativo a exclusividade de demarcar terras indígenas, o que hoje é atribuição da Fundação Nacional do Índio (Funai). São muitas as ofensivas, como o Projeto de Lei 654, que visa criar um licenciamento ambiental especial para mega obras de infraestrutura consideradas “estratégicas” pelo governo. Com sua aprovação, as comunidades diretamente afetadas terão ainda menos voz na aprovação dos projetos.
Segundo o Ministério da Cultura, há cerca de 4,5 milhões de famílias que se identificam em populações tradicionais. De acordo com a Funai, os dados do Censo Demográfico de 2010 apontam para a existência de 305 etnias e 274 línguas indígenas, uma população de aproximadamente 900 mil pessoas distribuídas em mais de 500 territórios. A Fundação Palmares, por sua vez, informa que 2.600 comunidades quilombolas espalhadas pelo território nacional já foram certificadas.
A ONG Terra de Direitos atua em defesa dos povos e comunidades tradicionais, e está muito atenta aos desdobramentos desse processo. De acordo com André Dallagnol, o Brasil está passando por uma gravíssima ruptura democrática com a implantação de um projeto que não venceu nas urnas por ser antipopular. Violações de direitos, impactos de grandes empreendimentos e a violência no campo tendem a ter uma sensível piora como conseqüência, acrescentou o advogado. A ameaça, segundo ele, é que todos os projetos de lei de cunho neoliberal sejam aprovados.
“Projetos que pretendem reduzir direitos e o poder de interferência do Estado sobre as atividades privadas tendem a ser aprovados com maior facilidade. Refiro-me à PEC 65, que acaba com o licenciamento ambiental, aos PL’s dos agrotóxicos (3200, 1687/2015 e 6299/2002) que acabam com o poder de veto da ANVISA e destravam a aprovação de agrotóxicos mais danosos à saúde da população, aos PL’s das leis de sementes e cultivares (PL827/2015) que pretendem reduzir o direito das agricultoras, agricultores, povos e comunidades tradicionais ao livre uso das sementes e mudas, reduzir o livre uso da agrobiodiversidade, além de ampliar a criminalização contra as práticas camponesas”, disse.
Para ele, é momento de união do povo contra um projeto que quer colocar o Brasil novamente de joelhos perante as grandes potências mundiais, empresas transnacionais de mineração, do agronegócio, dentre outras. “São propostas que acabam com a saúde (privatização do SUS), com a educação (congelamento dos investimentos por vinte anos), os ataques aos direitos trabalhistas e à aposentadoria, que já estão sendo amplamente denunciadas. É hora de radicalizar a democracia e lutar pelos nossos direitos conquistados com muita luta nos últimos anos”, concluiu.
Os quilombolas estão hoje espalhados por todo o país. São mais de cinco mil comunidades, aproximadamente 16 milhões de brasileiros, de acordo com a Coordenação Nacional da Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Segundo Denildo Biko Rodrigues, da direção nacional do movimento, não chega a 200 o número de terras tituladas e isso reflete a incapacidade dos sucessivos governos de lidar com o tema desde a Constituição Brasileira de 1988.
“O governo interino teve como primeira medida tirar a pauta quilombola do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)e transferir para o Ministério da Educação, e como não foi bem recebido voltou atrás. Aí acabou com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que tem políticas voltadas aos quilombolas. Excluiu a secretaria de Mulheres e de Diversidades do MEC, iniciativas contra o nosso direito. Temos dificuldade de saber como vai ficar daqui para frente. São vários processos que foram parados, apenas um foi aprovado. Medidas que levamos toda uma vida para construir e o governo interino desconstruiu em um mês”, afirmou.
Não houve até o momento nenhuma alteração de competência da Fundação Palmares, e saíram somente os servidores detentores de cargo de confiança, informou a assessoria de imprensa do órgão. “Obviamente isto impacta no quadro. Houve somente corte de cargos de confiança, ainda no governo anterior. Não houve cortes orçamentários”, explicou a assessoria da Fundação.A perspectiva é a “continuação dos serviços para o segmento da cultura negra e o fortalecimento da Fundação Cultural Palmares como órgão de difusão e proteção do patrimônio afro-brasileiro”, acrescentou. O novo presidente da Fundação é Erivaldo Oliveira da Silva, e também foi nomeada uma nova diretoria.
Se a morosidade no processo de regularização fundiária dos territórios já era muito grande, em torno de 15 a 25 anos até chegar à titulação, a preocupação agora é ainda maior. No final de 2015 o segmento já havia sofrido com um corte orçamentário da ordem de quase 80%, e agora as perspectivas com a nova composição ministerial e maior fortalecimento da bancada ruralista são ainda piores. A cada dia os conflitos vêm aumentando, assim como a insegurança alimentar das famílias, nos territórios que não têm nenhum instrumento jurídico que garanta a terra e estimule seu desenvolvimento. Mas a Conaq reconhece, apesar das críticas, avanços do governo petista.
“No governo Lula a comunidade quilombola ficou em evidência e acessou algumas políticas públicas, embora não tenha avançado na titularidade das terras. Temos receio de perder esse diálogo, que foi um avanço. A nova composição dos ministérios está ocupada pela bancada ruralista, que sempre foi nossa inimiga. São eles que propõem a PEC 215, que defende os seus interesses.Quanto aos cortes, está tudo parado no Incra. Não queremos retroceder nas nossas conquistas. Estamos preocupados com a perda de direitos e voltar a estaca zero. O Estado Brasileiro tem o dever de titular as terras quilombolas”, afirmou.
Os indígenas fizeram diversas mobilizações contra a saída da presidente Dilma Rousseff, incluindo ocupações em Brasília, e avaliam que estão perdendo diversos direitos com o governo Temer. De acordo com Dourado Tapeba, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), é preciso se mobilizar contra o governo golpista.
“Revogaram vários decretos de homologação de terras, estamos preocupados. Estão querendo abrir outra CPI da FUNAI [a entrevista foi antes de reabrirem]. Barramos a nomeação de um general para a presidência da Funai. Eles têm que nomear alguém escutando as comunidades e movimentos”, disse o indígena do Ceará.
A avaliação dos movimentos indígenas é que só ocorreram retrocessos com o governo Temer, e uma das preocupações de perda de direitos dos indígenas, por exemplo, é a modificação que estão fazendo no Sistema Único de Saúde (SUS) que vai afetar diretamente os povos e comunidades tradicionais e toda a população.
A Funai informou, por meio de sua assessoria, que “até o momento não houve nenhuma mudança efetiva no órgão. Ocorreram cortes orçamentários, mas antes da saída de Dilma da presidência, acrescentou. O orçamento total de 2016 é de aproximadamente R$ 502 milhões. À exceção do ex-presidente da Funai [João Pedro Gonçalves], toda a direção foi mantida até o momento e o funcionamento da instituição continua o mesmo. Até o momento não há nenhuma confirmação de nome para sua presidência”.
A CPI que acusava a Funai e o Incra foi encerrada no último dia 17 sem aprovação do relatório final, mas no dia da votação do impeachment e defesa da presidenta Dilma foi reaberta. Desde o encerramento o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS), então presidente da comissão, entregou na Secretaria-Geral da Mesa (SGM) um documento com a assinatura de mais de 200 parlamentares solicitando a extensão das suas atividades. Embora o documento não tenha sido aceito por razões regimentais, a bancada ruralista continuou se articulando e recriou o instrumento no dia 31 de agosto para investigar os órgãos de acordo com seus interesses.
O atual momento político exige atenção redobrada dos povos e comunidades tradicionais e mobilização de amplos setores da sociedade na luta por nenhum direito a menos.
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Povos e comunidades tradicionais ameaçados pelo governo Temer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU