Por: André | 04 Junho 2016
“A decisão tomada pela prefeita de Paris, a socialista Anne Hidalgo, de construir na capital francesa um ‘campo humanitário’ para proteger as centenas de vítimas das guerras no Oriente Médio que fogem de seus países e acabam na intempérie das capitais europeias é apenas uma medida paliativa que de modo nenhum oculta a humilhante gestão da crise dos migrantes assumida pela União Europeia”, escreve Eduardo Febbro, jornalista, em artigo publicado por Página/12, 03-06-2016. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
Um punhado de terra em um mar que engole milhares de vidas. A decisão tomada pela prefeita de Paris, a socialista Anne Hidalgo, de construir na capital francesa um “campo humanitário” para proteger as centenas de vítimas das guerras no Oriente Médio que fogem de seus países e acabam na intempérie das capitais europeias é apenas uma medida paliativa que de modo nenhum oculta a humilhante gestão da crise dos migrantes assumida pela União Europeia.
Hoje, cerca de 900 migrantes vivem em barracas no Distrito 18 da capital francesa. As ONGs humanitárias calculam que aproximadamente entre 20 e 60 refugiados chegam diariamente a Paris. Como reconheceu a dirigente socialista, “a Europa não esteve à altura da sua história”.
O anúncio de Hidalgo desvela, além disso, um claro confronto com o governo de Manuel Valls, cuja atitude foi, assim como a de quase todos os outros responsáveis políticos da União Europeia, de uma aplicada modéstia. Prova disso, o Ministério do Interior da França fez cara feia e em comunicado garantiu que “o Estado não faz nenhum comentário. O Estado se pronunciará sobre este projeto quando tiver sido informado de seus objetivos e de sua articulação com o direito de residência”.
A chegada massiva a terras europeias de refugiados espantados por guerras que o Ocidente ajudou a provocar mostrou o pior exemplo da Europa. Incompetência, imobilismo, egoísmos destruidores, indolência e um oportunismo que deixou em segundo plano os famosos critérios “humanitários” que o Velho Continente defende em todos os fóruns mundiais.
Atravessar o Mediterrâneo através de três rotas consagradas que são o Estreito de Gibraltar, a Sicília via Líbia ou o Mediterrâneo oriental tornou-se uma travessia mortal. Desde o começou de 2016, cerca de dois mil refugiados foram engolidos pelas águas do Mediterrâneo. Não são especulações, mas dados inclementes proporcionados tanto pela Organização Mundial das Migrações (IOM) como pela Acnur, a agência da ONU encarregada dos refugiados. A Médicos Sem Fronteiras fez um cálculo macabro: uma média de 10 pessoas morre diariamente nessa travessia.
Esta dança macabra marítima da morte embute outra realidade mais sinistra ainda, cujo alcance foi revelado pelos dois organismos policiais, a Europol e a Interpol. Cerca de 90% dos refugiados que tentaram chegar à Europa fizeram-no através de “redes de criminosos”. O negócio dos refugiados converteu-se no investimento-calote mais rentável regido pelo crime organizado. Uma pesquisa conjunta da Europol e da Interpol demonstra que, em 2014, esse tráfico de refugiados teve um lucro que oscila entre cinco bilhões e seis bilhões de dólares.
O negócio é uma multinacional perfeitamente tolerada em cuja organização se movem pessoas oriundas “de mais de cem países”. Os números são tão contundentes que, muitas vezes, é impossível visualizá-los e conectá-los com a Europa. Em fevereiro de 2016, a mesma Europol revelou que cerca de 10 mil refugiados crianças desapareceram quando chegaram à Europa.
A ONG Save the Children calcula que dos 270 mil refugiados crianças que pisaram o Velho Continente em 2015, 26 mil o fizeram sem companhia alguma. Dados policiais apontam que essas crianças estão em mãos de “uma infraestrutura criminosa paneuropeia” que foi se criando à medida que crescia o fluxo de refugiados e cujas cabeças dirigentes estão instaladas na Hungria e na Alemanha.
Cada vez que os europeus fecham suas rotas, as máfias aumentam seus lucros. Isso aconteceu com o Egeu, acorrentado pelas missões do organismo europeu Frontex, pela OTAN e pelas polícias locais. Uma família paga em média 13 mil dólares para uma viagem sem destino garantido.
Em março passado, o fechamento da rota balcânica deixou mais de 100 mil refugiados presos na Grécia. Uma demonstração magistral da falta de coordenação entre países que se importam apenas em fechar suas fronteiras sem levar em conta a repercussão em outros países, nem o destino de dezenas de milhares de pessoas.
Bulgária, Albânia ou Turquia foram substituindo as rotas fechadas com o consequente risco e as armadilhas que espreitam os refugiados. Desde 2014, há cerca de três mil sepulturas sem nome cavadas em cemitérios improvisados na Turquia, Grécia ou Itália.
Em um plano estritamente político e apesar da espantosa violação de todos os direitos possíveis, a Comissão Europeia aprovou as políticas migratórias mais chocantes. Assim o fez com a política migratória que a Espanha projetou em Ceuta e Melilla, caracterizada, entre outras coisas, pelo que se conhece como “devoluções imediatas”. O mesmo aconteceu com o acordo entre a Turquia e a União Europeia, cujo objetivo consiste em expulsar sem demora os refugiados.
O chamado “pacto da vergonha” entre Bruxelas e Ancara tem como resultado que todos os refugiados que chegam à Grécia sejam expulsos para a Turquia, que, por sua vez, os envia aos seus países de origem, inclusive os sírios. Assim, enquanto a Turquia reprime de maneira brutal opositores e críticos do governo, a União Europeia o legitima com uma roupagem de desumanidade.
O ministro belga do Interior, Jan Jambon, animou-se a comentar que “os turcos estão muito longe dos valores e dos princípios da Europa”. Para que Ancara aceitasse ser o sócio deportador oficial da União Europeia, a Comissão Europeia aceitou uma das exigências da Turquia: recomendar que os cidadãos turcos fossem isentos da necessária apresentação do visto no seu deslocamento dentro da União Europeia. Todos estes regateios administrativos não serviram muito. O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, negou-se a implementar o acordo e a mudar a lei antiterrorista – outra exigência da União Europeia – enquanto a União Europeia não acelerar o tema dos vistos.
E enquanto isso, na Dinamarca, o governo de centro-direita de Lars Lokke encarrega-se de criar uma lei que declarava “traficantes de pessoas” todos aqueles que ajudassem um refugiado, e outra que autorizava as autoridades a expropriar os refugiados dos seus bens.
Na Europa, essa medida remete imediatamente ao lixo da história que foi a terrível apreensão dos bens dos judeus decidida pelos nazistas. Muita coisa mudou quando se recorda que a Dinamarca foi um dos primeiros países do mundo a ratificar a Convenção da ONU para os refugiados elaborada em 1951.
Cada país, sucessivamente, foi rematando seu humanismo na sala de vendas dos populismos de extrema direita que crescem como trepadeiras no muro da crise dos refugiados. Tarifa, Lesbos, Calais, Lampedusa, Ceuta ou Melilla, esses nomes designam geografias mortais e humilhações para centenas de milhares de pessoas.
O que acontece em outra famosa fronteira, aquela entre os Estados Unidos e o México, é um desenho animado ao lado da hecatombe moral e humanitária que a Europa atravessa. A história mais recente das fronteiras europeias está escrita com o punho da morte e da covardia.
A Europa reabilitou o famoso conceito de “banalidade do mal” proposto por Hannah Arendt. Em seguida, atualizou outra tendência que surgiu no século XX: converteu os refugiados em seres humanos sem direitos.
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A mortal travessia, o pior exemplo da Europa. Artigo de Eduardo Febbro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU