01 Abril 2016
Pierre Riches, figura singular e fascinante no campo da teologia. Há alguns anos mudou-se para Sabina, não longe de Roma. Sua casa avista o vale do Tibre. Sóbria e aconchegante. Visitado, há alguns meses, por Laurie Anderson. Jantaram, lembraram de Lou Reed, amigo do Pe. Pierre. A foto na sala descreve a relação deles, que de algum modo era paternal: Lou Reed abraçando-o sorridente e feliz. Sobre a mesa uma cópia de Note di Catechismo per ignoranti colti, republicado pela Gallucci, com prefácio de Giorgio Manganelli. "O título", lembra Riches, “foi sugerido por Elsa Morante". Hoje, Padre Pierre é forçado a mover-se numa cadeira de rodas, condição que limita seus movimentos, mas não o aflige. Referindo-se ao título de um outro de seus livros, é a leveza da Cruz a sustenta-lo. Suas origens, judeu da Alexandria, educado nos ritos tradicionais. Sob um boné de beisebol, olha para mim, com uma pitada de ternura.
A entrevista é de Antonio Gnoli, publicada por La Repubblica, 27-03-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis a entrevista.
Pergunto-lhe, quando decidiu converter-se ao catolicismo:
Tinha 23 anos. Tornei-me cristão porque o cristianismo é muito gratificante, do ponto de vista intelectual, e totalmente libertador, do ponto de vista existencial. Viajei pelo mundo, ensinei em muitas universidades, fui pároco em Roma, capelão do aeroporto Fiumicino. Conheci e frequentei muita gente. Nunca me senti culpado pela vida que levo. Sempre soube que minha fé se assentava sobre dois pilares: o amor, como estímulo à ação e a comunhão com Deus e com o próximo, como propósito de vida.
Onde você nasceu exatamente?
Em Alexandria, no Egito. Um mundo especial, que deixei aos 17 anos.
Especial por quê?
Cidade irreal, governada por oligarquias, alicerçada em privilégios. A riqueza, mais que exibida, era vivida. Para lá afluíam miríades de nacionalidades: franceses, italianos, gregos, judeus e especialmente ingleses. Um clamor de línguas ressoava em minha cabeça de meu menino.
Lawrence Durrell escreveu talvez o mais belo livro sobre Alexandria.
Você acha? Ele falou de uma cidade decadente, exausta, no último langor. Mas não era verdade. Ao contrário, uma cidade de comércios existenciais e culturais. Lembro-me do poeta Cavafy, agora idoso. Segurava-me no colo, acariciava-me a cabeça. E Georges Moustaki, com belo sorriso. Sua irmã apaixonada por mim. Durante o período em que vivi em Cambridge. E. M. Forster queria que lhe falasse de Alexandria. Convidou-me para o chá. Eu falava dos labirintos mentais daquela cidade tão diferente, e única.
Por que a deixou?
Meu pai era comerciante de algodão. Família rica. A burguesia de Alexandria colocava seus filhos no Victoria College de Alexandria. Quando chegou a hora da Universidade, escolhi Cambridge, gostava de filosofia.
Em que ano foi?
Em 1946. Cambridge, ao contrário de Londres, não tinha sofrido os mesmos ultrajes da guerra.
Ali ensinava Ludwig Wittgenstein.
Segui alguns de seus cursos. Poderia dizer que fui um dos últimos alunos a conhecê-lo.
Do que lembra?
Se alguma vez eu conheci um gênio, este era ele. Ele achava-me exótico, talvez por minhas origens egípcias, e tratava-me com simpatia. Era um homem, por vezes acre, de poucas palavras. Irritadiço, mesmo com alunos. Normalmente, preferia dar aulas em seu quarto. Nós nos sentávamos no chão de madeira ou em alguma cadeira disponível. Ao murmúrio inicial seguia um silêncio surreal.
Surreal por quê?
Criava-se uma estranha corrente, como se todos os presentes, de repente, esperassem que ele começasse a falar. Às vezes, calava-se por alguns minutos.
Ultimamente ele estava doente.
É verdade, quando soube que tinha câncer foi para a Noruega, numa aldeia onde passara um período feliz da sua vida. Talvez fosse uma forma de recuperar o tempo perdido. Depois voltou para Cambridge. Ali morreu na casa de um amigo, em 29 de abril de 1951. Estes são episódios que descobri mais tarde. Eu sai de Cambridge no final de 1949. Lembro-me de uma frase nas Investigações filosóficas: "A morte não é um evento de vida. A morte não se vive". Um ano antes que ele morresse, recebi o batismo e me converti. Acho que na minha escolha cristã importou muito o fato que Wittgenstein tivesse me ensinado, de alguma forma, que a razão não é tudo.
Portanto, a fé.
Para muitos, fé e razão se opõem; para um cristão se completam.
Complementam-se, mas postulam duas verdade diferentes.
O ponto é onde as duas verdades se encontram. Quero dizer que a verdade não é algo que se conquista apenas com o conhecimento, estudando e experimentando; mas também vivendo plenamente e amando totalmente.
É a relação com a vida.
Um cristianismo maduro, assumido na vida quotidiana, exige coerência entre a própria fé e a própria vida.
O que fez quando deixou Cambridge?
Começou então minha maturidade espiritual. Em 1950 conheci Iris Murdoch, e nos tornamos amigos. Ela também tinha assistido às aulas de Wittgenstein. Começou ensinar filosofia na Universidade de Oxford. Lembro-me das belas discussões entre nós.
Diz-se que o senhor era seu conselheiro espiritual.
Não era, de fato, uma mulher que se deixasse aconselhar. Mas que, por vezes, tenha procurado sugestões, sim. Perguntou-me, uma vez, o que eu achava do existencialismo. Ela estava trabalhando sobre Sartre. Respondi que o melhor exemplo de existencialismo nos oferece a Bíblia, no livro de Jó.
Jó teve que fazer as contas com o silêncio de Deus.
Um velho e sábio cartuxo disse-me, uma vez, que o livro de Jó nos ensina que o silêncio de Deus, para quem se abre a Ele, é mais consolador que o falar dos homens. Graças a Iris, em Londres, conheci Elias Canetti. Ele tinha uma inteligência fluida, móvel como o Danúbio de onde ele vinha.
Sei que também conheceu Hannah Arendt.
Nos conhecemos em Chicago, durante um almoço. Foi nos anos sessenta. Tornamo-nos amigos. Ela também foi um dos gênios do século XX. Gostava de sua versatilidade. Ela tinha voltado recentemente de Jerusalém, e suas reportagens sobre o julgamento de Eichmann faziam sensação, causando mais do que mau-humor, especialmente na comunidade judaica americana. Pessoalmente, concordava com a ideia da "banalidade do mal". Todos nós, pensei, poderíamos ter-nos tornado um Eichmann.
Não nascemos com a garantia de fazer o bem.
Perderíamos o sentido da liberdade.
Mas o mal, não é a derrota de Deus?
Isso é o que pensava Dostoievski. Mas a questão é outra. Grande parte dos nossos males são direta ou indiretamente causados por nós mesmos. O fruto da nossa liberdade utilizada imprudentemente.
Distinguiria entre mal e sofrimento?
O mal causa sofrimento, mas não necessariamente o oposto é verdadeiro. O sofrimento do justo é também uma passagem para a luz, por meio da cruz, talvez o único caminho de salvação, se quisermos preservar a liberdade. Lembro-me de um provérbio Inglês: ‘É melhor ter amado e perdido, do que nunca ter amado'.
O que isso tem a ver com Deus?
Talvez Deus, sendo amor, preferiu amar e perder um pouco, do que nunca ter amado.
É mais persuasiva a filosofia ou a teologia?
A filosofia põe em jogo o homem. A teologia, a relação com Deus. Na teologia clássica entram três elementos: razão, vontade e graça. Esta última não bate às portas da filosofia.
Paulo é o homem de quem eu mais aprendi teologicamente. Suas cartas são de uma inteligência e profundidade espiritual inigualáveis.
O senhor foi secretário do Cardeal Tisserant.
Eu me ocupei por ele e com ele de problemas teológicos. Ele foi um grande homem. Modesto, pelo que ele realmente era. Nós seguimos a sorte do Concílio Vaticano II. Acompanhei-o também ao Conclave, de onde saiu eleito o Papa Paulo VI. Cada cardeal podia fazer-se levar por uma pessoa.
Levou Tisserant?
Foi bastante normal. Tinha viajado muitas vezes com ele. Quando abriu o Conclave fizemos juntos a viagem de carro. Normalmente, nós nos sentávamos no banco de trás. Tisserant, naquele dia, pediu-me para sentar-me ao lado do motorista. Obedeci, sem entender o porquê. No volta, quando fomos busca-lo, predispus-me em ir no banco da frente. Ele disse não, padre Pierre, venha para trás, ao meu lado, não vou ser o quinquagésimo primeiro Papa!
O senhor tem uma vida incrível.
Digamos que eu tenha tido uma vida.
Onde ensinou?
Um pouco em todos os lugares: na Yale, em Harvard. Em seguida, na África, alguns anos na Uganda. Creio ter conhecido bem aquele continente. Depois, no Paquistão e no Japão. O Cardeal Colombo tinha me apelidado de ‘o judeu errante’.
O que pensa das religiões orientais?
Budismo e Taoísmo são experiências assai importantes. Se manuseados por charlatães tornam-se apenas modas irritantes. Acho que o Tao, isto é, o Caminho, tem vários pontos em comum com o cristianismo. Falei sobre isso algumas vezes com Giorgio Manganelli. O ‘Tao Të Ching’ era uma das discussões recorrentes.
Parece-me que o senhor foi também pároco.
Sim, numa pequena paróquia de aldeia, em Boccea. Pedi especificamente a Tisserant de enviar-me para aquele lugar. O mesmo Tisserant, alguns anos mais tarde, insistiu que aceitasse de ensinar na Loyola University de Roma, proposto por Raimon Panikkar".
Pier Vittorio Tondelli o incluiu em seu romance "Rimini", como Padre Anselme.
É um padre", escreve Tondelli. "Ele me pegou quando saiu meu primeiro romance, oito anos antes. Está sempre viajando pelo mundo, em busca de suas almas. Eu me divirto com ele. Gosto muito dele.
Se reconhece?
Um escritor tem a liberdade de inventar, caso contrário, que escritor seria? Conheci Tondelli em Veneza, numa exposição de Luigi Ontani. Um homem talentoso, atormentado mas autêntico.
Teve um papel no final de conversão de Tondelli?
Não acredito ter sido tão influente. Decisões desse tipo proveem de uma profundidade que nem mesmo imaginamos. Posso dizer que sua morte foi, para mim, de dor muito forte. Fui eu quem celebrou o funeral, sob uma chuva torrencial.
Existem as cartas que trocaram?
Existe uma correspondência com ele, como também com Iris Murdoch. Mas estão blindadas.
Sente falta da América?
Faz um tempinho que não vou. Mas os filhos dos meus ex-alunos vêm me ver.
Impressionava-me a capa de um seu livro - "La leggerezza della croce" - onde se vê uma cruz desenhada por William Burroughs.
Ah, sim! Eu o conhecia bem. Ele me chamava ‘o padre’. Quando desenhou a cruz para mim era o período em que disparava nas telas pinturas.
Ele disparou até mesmo contra a própria esposa.
Foi por engano. Deus tenha misericórdia.
Entre os vestígios de seu período americano vejo também uma foto com Lou Reed e um retrato fotográfico feito por Robert Mapplethorpe. Dois ícones da cultura contemporânea.
Conheci Lou Reed em Nova York, não me lembro em que galeria. Ele estava fascinado pelo fato de que um judeu tenha se tornado padre. Fui ordenado, para ser preciso, aos 32 anos. De vez em quando me mandava bilhetes para seus concertos. Quanto a Mapplethorpe, a foto que você viu, ele a tirou quando já estava doente.
É uma mina de recordações.
Eu não as afasto. Talvez esqueci algumas coisas. Por causa da minha idade, é um processo fisiológico. Mas não tenho saudade das recordações. Não é possível reviver os momentos do passado. Deixamos traços úteis para a vida que continua. Eu acredito na vida eterna. Estou muito curioso para ir ver o que há além.
Sua fé nunca vacilou?
Nunca. A fé é um dom que recebi em abundância.
Conversamos antes sobre o mal.
Pode-se combater e equilibrar com o bem.
Mesmo hoje, com tudo o que está acontecendo?
Especialmente hoje. Cristo nos traz duas grandes esperanças: um para esta terra e outra para depois da morte.
Ele nos ensina como devemos viver e agir. Lembro-me do "Sermão da Montanha", encontrado seja em Mateus que em Lucas. Ele explica que somente através do amor podemos viver bem, e nos diz que amar significa dar e, portanto, também renunciar. Só assim poderemos romper as cadeias do egoísmo e dos medos.
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Pierre Riches: "Devo minha conversão a Wittgenstein, a razão não é tudo" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU