01 Fevereiro 2019
Ser porta-voz de Deus é tornar-se sinal de contradição. Jeremias foi combatido; Jesus foi contestado em sua própria terra, desde o começo da sua pregação. Mas há uma força que habita o profeta: a força da Palavra do Deus todo poderoso.
A reflexão é de Marcel Domergue (+1922-2015), sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 4º Domingo do Tempo Comum, do Ciclo C. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
Eis o texto.
Referências Bíblicas:
1ª leitura: «Eu te consagrei e te fiz profeta das nações» (Jeremias 1,4-5.17-19)
Salmo: Sl 70(71) - R/ Minha boca anunciará, todos os dias, vossas graças incontáveis, ó Senhor!
2ª leitura: «Atualmente permanecem estas três coisas: fé, esperança, caridade; mas a maior delas é a caridade» (1 Coríntios 12,31;13,13 ou 13,4-13)
Evangelho: Jesus, assim como Elias e Eliseu, não foi enviado apenas para os Judeus. (Lucas 4,21-30)
Na sinagoga de Nazaré, Jesus havia acabado de dizer que a profecia de Isaías, a respeito da intervenção final de Deus em favor dos homens, naquele dia se cumprira. A primeira reação dos ouvintes foi de admiração pela pessoa de Jesus e por sua mensagem. Mas, rapidamente, passaram da admiração à surpresa: quem pensa ser ele, para dizer tais coisas? «Não é este o filho de José?» Reduzem-no assim à sua herança natural; não haviam entendido que, dali em diante, têm à sua frente um novo Jesus, o Filho muito amado do Pai. Sem levar em conta a sua filiação divina, Jesus contenta-se com dizer-lhes que estavam reproduzindo a mesma atitude dos seus pais para com os profetas todos do passado.
Devemos compreender aqui que esta reação para com Jesus tende a ser generalizada: vivemos todos em contato permanente com pessoas que julgamos conhecer bem a fundo. São parentes, amigos, colegas com quem convivemos e estamos sempre juntos; a todos, julgamos conhecer muito bem! Pois é aí que nos enganamos: também estes são, de modo diferente, habitados pela presença divina, assim como, aliás, todos os desconhecidos com quem cruzamos pela rua, qualquer que seja a sua aparência. Pelo simples fato de os vermos, estamos na presença do Cristo. Em sua condição de glória ou de crucificado: os dois ao mesmo tempo, sem dúvida. E esta presença nos convida a oferecer uma resposta de amor, pela qual Ele mesmo vem até nós para nos habitar. Ora, os moradores de Nazaré estavam fechados à presença divina. E nos oferecem, assim, uma imagem do que com frequência vivemos: o julgamento que fazemos dos outros e o nosso fechamento para com eles, ao invés do acolhimento.
E tem mais: aqui se põe a questão da identidade de Jesus, em razão da mensagem que ele traz. Tudo que era antigo chegou ao fim; um mundo novo está aí. É certo que é o mundo anunciado já pelos profetas, Isaías neste caso, mas, para eles, é um mundo situado num futuro indeterminado. Pois, agora, a hora chegou. Os ouvintes de Jesus entendem que vão ter de mudar, de transformar-se. E isto é inquietante: estavam tão tranquilos até aquele momento. Mas agora será preciso fechar os campos de concentração, possibilitar uma existência decente aos fracos, a quem se vinha explorando até então! Será preciso entrar no jogo de Deus. E a sua ação, não podemos esquecer, passa por nós! Por isso, de um jeito ou de outro, temos de dar aos cegos recuperarem a vista. Para assumirmos a realização da obra do Amor divino, vai ser preciso passar pelo que chamamos de conversão. E ninguém sabe aonde isto irá nos conduzir. Jesus nos abre um futuro imprevisível. O mesmo, aliás, aconteceu com ele: nada diz que, desde o início, tivesse previsto a Cruz.
É evidente que aquela mesma recusa reproduz-se hoje: argumentos gastos e arcaicos são tomados como pretexto, para se recusar a mensagem cristã. O convite à paz sempre irritou os amantes da guerra; os que se beneficiam da opressão querem liberdade somente para si próprios, em suas maquinações. Desta forma, como podemos ver, o Evangelho não se resume a contar os episódios da vida de Cristo, como se fizessem parte do passado. Através destes relatos, quer nos falar do nosso presente. E também do nosso futuro.
Jesus poderia ter dito muitas coisas aos seus ouvintes, para tranquilizá-los: explicar que Deus não escolhe os seus enviados entre os grandes deste mundo, mas sim entre os pequeninos, a exemplo de Davi, o filho caçula de Jessé. Poderia ter-lhes dito que dedicar-se aos cegos, aos prisioneiros e a outros deserdados faria com que se tornassem mais imagens de Deus do que apoderar-se da realeza sob a forma que fosse. Em lugar de tranquilizá-los, vai inquietá-los ainda mais. Repreenderam-no por não ter realizado entre eles, em Nazaré, sinais tão deslumbrantes como em Cafarnaum? Lembra-lhes, então, que Deus, em tempos de penúria e sofrimento, foi em socorro de estrangeiros, de pagãos, sem qualquer ligação com o povo eleito (1 Reis 17,7 e 2 Reis 5,1…)
Hoje, quem sabe, devamos ficar atentos à presença e intervenção de Deus fora da Igreja. Temos aí, em todo caso, o que provoca a indignação dos ouvintes de Jesus. Para eles, o culto a Deus cedeu lugar ao culto ao povo. Este tipo de idolatria não é raro e pode assumir diversas formas: o culto à classe social, à família, a relações vantajosas, etc. Para onde aponta o nosso desejo? Onde é que depositamos as nossas esperanças? Nada disto, na maior parte do tempo, sabemos muito bem... E as profundezas das nossas aspirações permanecem escondidas de nós. Quanto aos ouvintes de Jesus, levaram-no para fora da cidade, da sua cidade, a fim de matá-lo. É uma antecipação da Páscoa, claro: Hebreus 13,12 sublinha que Jesus foi crucificado «fora do acampamento». Mas é este excluído que vai preencher todo o universo.
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Do acolhimento à recusa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU