Por: André | 28 Mai 2015
Três diferentes vozes podiam ser ouvidas na beatificação de dom Óscar Arnulfo Romero em San Salvador no dia 23 de maio passado. Ouviu-se a voz do povo, colorida com seu milhão de pés (a melhor estimativa parece ser a de que participaram cerca de meio milhão de pessoas). Ressoou a hierarquia da Igreja, começando a contar a história oficial do bispo que defendeu os pobres e o significado teológico que se deve dar a ele. Depois, ressoou a voz do próprio evento, sendo a sua inefável mensagem o espetáculo, o cerimonial, a grandeza do momento e as expectativas que irá suscitar.
A reportagem é publicada por Super Martyrio, 26-05-2015. A tradução é de André Langer.
Estimar uma multidão em tais eventos não é nada fácil precisar: para começar, é impossível contar uma multidão ilimitada em um evento ao ar livre com qualquer precisão. Não havia catracas ou ingressos que servissem de base. As estimativas dos organizadores podem ser demasiadas entusiastas. As estimativas aqui variam de 200 mil no extremo mais baixo (muito baixo, na minha opinião) até 750 mil no extremo mas alto (esta foi a estimativa da polícia informada à Igreja). Baseado no informe do governo de que 285 mil pessoas teriam entrado no país nos dias anteriores ao evento, em estimativas da cidade de San Salvador de que 100 toneladas de lixo foram recolhidas depois da cerimônia e observações de testemunhas, o Super Martyrio avalia que a multidão estava na faixa entre 300 mil e 500 mil.
Não obstante o número real, esta foi, como John Allen, do Crux, informou, a maior reunião religiosa na história da América Central. Eu estaria disposto a ir além e dizer que foi a maior beatificação não papal da história (a beatificação do Papa João Paulo II atraiu aproximadamente 1,5 milhão de pessoas, mas outras grandes beatificações para figuras como o Padre Pio, Madre Teresa e Josemaría Escrivà estiveram na faixa de entre 200 mil e 300 mil), assim como também a maior beatificação fora de Roma. Outra vez, deixando de lado o verdadeiro número, a mensagem do povo através da sua presença multitudinária é suficiente para chamar a atenção e tomar nota.
Tratando de ser ouvida acima destas multidões esteve a voz da Igreja, encabeçada por nada menos que o Papa Francisco, que tomou a medida descomunal de escrever uma carta à Igreja salvadorenha com vistas a proporcionar um primeiro rascunho da narrativa de Romero, que muitos recusaram como tíbia e aguada: referia-se a Romero como “Mártir por Amor”, o que levou um comentarista a escrever que, da maneira como a Igreja o dizia, se poderia pensar que Romero foi assassinado por uma descarga acidental de uma arma de fogo e não em um assassinato deliberado. Na caridade se deve reconhecer que o lema “Mártir por Amor” foi simplesmente uma campanha publicitária, mas como ocorre com quase tudo o que se relaciona com Romero, foi submetido a um escrutínio estrito.
O Papa Francisco disse em sua carta que Romero foi “exemplo dos melhores filhos da Igreja”. Com essa frase, Francisco delicadamente reconhece as divisões na Igreja e esclarece sua preferência. Francisco compara Romero a Moisés, escrevendo que Romero “soube guiar, defender e proteger o seu rebanho, permanecendo fiel ao Evangelho e em comunhão com toda a Igreja”. Assim como Deus “escolheu Moisés para que, em seu nome, guiasse o seu povo”, escreve Francisco, “segue suscitando pastores segundo o seu coração, que apascentem com ciência e prudência seu rebanho”. Vai ainda mais longe na bula apostólica de beatificação, emitida no dia 14 de maio, mas publicada apenas durante a cerimônia de beatificação. Ali, Francisco chama Romero de “pai dos pobres”, que o atual arcebispo de San Salvador nota é um dos títulos do Espírito Santo; dessa maneira, o Papa parece indicar que Romero foi um instrumento do Espírito Santo (foi beatificado na vigília de Pentecostes).
Esta mensagem aparece para ser dirigida aos céticos que poderiam duvidar da qualificação de Romero como santo. Esta mensagem é reforçada pelas diretrizes da comissão de espiritualidade dos bispos salvadorenhos, que decretou que se acrescentaria uma oração invocando Romero ao final de cada missa que se celebre em todo o país de agora em diante. Adicionalmente, serão enviadas as relíquias de Romero usadas na cerimônia de beatificação (sua camisa ensanguentada), em peregrinação por todas as paróquias do país. Os fiéis também foram convocados para visitar a Catedral, a igreja da pequena aldeia onde nasceu Romero (Ciudad Barrios) e a capela onde foi assassinado, para obter uma indulgência desta hora até o aniversário de Romero, no dia 15 de agosto. Finalmente, serão enviadas relíquias adicionais de Romero às outras catedrais da América Central.
Por último, está a impressão que o evento teve sobre quem participou e também sobre aqueles que o vivenciaram remotamente ou que se darão conta mais tarde. A grandeza e o espetáculo do evento serão avultados na imaginação popular. Foi, como disse o porta-voz presidencial, Eugenio Chicas, “o evento do século” para El Salvador. Pequenos detalhes, desde a procissão de entrada de mais de mil padres e bispos que durou meia hora até a admirável a auréola solar que impressionou os espectadores ao aparecer justamente durante o rito da beatificação, garantem que a marca do evento fique gravada na memória histórica como um espetáculo alucinante.
No curto prazo, estes detalhes alentadores gerarão positividade e boa vontade. Mas também gerarão expectativas, e nem todas elas se cumprirão.
Há, certamente, uma espécie de trégua dentro da Igreja pelo momento, com as diversas facções aparentemente reunidas em torno de Romero. Também é provável que a infusão de fervor e ênfase em dimensões espirituais aumentará a probabilidade de que os fiéis peçam a intercessão de Romero, com a finalidade de produzir o milagre requerido para sua canonização. Uma cura médica autenticada levaria Romero a santo, provavelmente dentro de dois anos, segundo dom Rafael Urrutia, o encarregado da fase salvadorenha do processo. Também foi encarregado pela beatificação do padre Rutilio Grande, e diz que o Papa está lhe enviando sinais de que quer que o padre Grande avance rapidamente. Esses sinais fazem com que dom Urrutia tenha esperanças de que Grande seja beatificado e Romero canonizado em uma cerimônia conjunta – e que Francisco vá a El Salvador para a celebração.
Há consideravelmente menos otimismo sobre se aqueles que se opunham a Romero em vida experimentam agora a conversão ou se simplesmente ocultarão seu contínuo desprezo. Em um episódio inesperado, Roberto D’Aubuisson Jr., recém eleito prefeito de uma grande cidade salvadorenha, e filho do homem, já morto, acusado de ter ordenado o assassinato de Romero, chegou à beatificação, usando um chapéu de palha com a imagem de Romero. Ele foi rápido em assinalar que seu pai não é motivo para se envergonhar. Elogios a Romero, nada mais.
Quase ninguém tem esperanças de que a boa vontade da beatificação acabe com a onda de violência criminosa que está transformando El Salvador em um dos países mais violentos do mundo. Isso, só um milagre do beato Romero poderia conseguir.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Depois da beatificação de Romero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU