Por: André | 18 Dezembro 2014
Militar retirado e sociólogo, em 2005, Juan Ramón Quintana Taborga (foto) ganhou uma bolsa do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais para pesquisar a temática da polícia. Na época, passou por Buenos Aires, onde, entre outras coisas, explicou ao Página/12 a crise da Bolívia. Mas não conseguiu terminar a bolsa: Evo Morales chamou-o, primeiro para a campanha eleitoral e, em seguida, quando assumiu a presidência no dia 22 de janeiro de 2006, para que fosse o seu ministro da Presidência.
Fonte: http://bit.ly/1DMbcqj |
Outra vez em visita à Argentina, Quintana apresentou o documentário Invasão USA, sobre a intervenção norte-americana na Bolívia, e teve uma reunião de cooperação com o secretário-executivo da Clacso, Pablo Gentili. Desta vez, o sociólogo de 54 anos recém completados não precisou descrever nenhuma crise: Evo assumirá o seu próximo mandato após vencer as últimas eleições com 61% dos votos, como explica o próprio Quintana.
A entrevista é de Martín Granovsky e publicada no jornal argentino Página/12, 14-12-2014. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Para que serve a formação acadêmica no exercício de governo?
Há uma maior incursão de acadêmicos na política, embora não seja do agrado dos acadêmicos, mas seja do agrado dos políticos estarem acompanhados de acadêmicos. No meu caso, coloquei à disposição, pode-se dizer, um arsenal de informações a serviço do governo, das pessoas. Posso compartilhar com as pessoas esse pequeno arsenal de informações e de conhecimentos, posso utilizar essas informações no contato com as pessoas, explicar a história, explicar a construção das memórias, explicar os processos políticos na Bolívia. Digo isso porque, atualmente, mais do que nunca a história do passado tem sentido para gerar um sentimento de indignação por tudo de ruim que aconteceu. Isso ganha sentido para a formulação de políticas, para a decisão de políticas. Quanto ao meu trabalho, mais administrativo ou burocrático – poderíamos dizer –, colocar um pouco a ordem da informação a serviço da gestão. O conhecimento acadêmico é estratégico para tomar decisões. E as decisões tomadas adquirem um valor estratégico quando se tem conhecimento e certo domínio sobre as coisas.
No século XIX, por exemplo, muitos intelectuais fizeram isso.
Eu acredito que sim. Na América Latina este fenômeno foi recorrente seguramente em alguns processos mais que em outros. E isto adquire mais relevância no caso, por exemplo, da Bolívia, quando se tem uma sociedade desinformada, uma sociedade sequestrada pelas elites de poder que lhe negaram o direito à informação, à cultura e à educação. Portanto, há uma dupla obrigação de um acadêmico que vira político: recuperar o tempo perdido e colocar as coisas um pouco em seu lugar ou em perspectiva. Nesse sentido, é preciso fazer um duplo esforço. Não se pode somente manter sua condição de acadêmico, mas que, diariamente, deve retroalimentar essa condição para manter-se bastante bem informado para não perder as perspectivas.
Ou seja, um acadêmico em função de governo não pode ser mesquinho com os dados.
Claro. Não pode cair na deformação de esconder os dados ou negá-los para manipular decisões. Na Bolívia, é bastante difícil que isso aconteça, porque há mecanismos de controle social. Por essa razão, podem lhe cobrar a afirmação feita há 10 anos sobre o que está fazendo. Dizem: “Ah! Você disse isto há 10 anos e não é possível que esteja fazendo algo que é o contrário do que disse”. Então, felizmente, essa memória, diríamos, permanece fresca e, então, você tem a possibilidade de dialogar com essa memória com os protagonistas da história.
E a indignação, é um motor ou uma forma final?
É uma arma da política. É preciso explicar às pessoas como é que a Bolívia chegou a ser tão pobre, tão dependente, como é que suas elites foram complacentes com poderes hegemônicos dominantes, como é que essas elites sequestraram inclusive a democracia formal para colocá-la a serviço de seus interesses patrimoniais, como é possível que um embaixador norte-americano tomasse decisões muito mais importantes que o próprio presidente da República.
O presidente Evo, na sua condição de dirigente sindical, viveu pessoalmente um ciclo histórico de repressão das Forças Armadas na luta contra o narcotráfico. E o vice-presidente, Alvaro García Linera, também tem um conhecimento condensado. Eu sou um pesquisador social. Não somos apenas moralmente obrigados a produzir conhecimento, mas a abri-lo. Um, pela luta social, o outro, porque trabalhou em outro campo da rebelião, da resistência, e outros de maneiras diferentes. Então, quando se necessita tensionar a força social, se faz pela via da indignação. Agora, no campo político, também é preciso que essa indignação se transforme em capacidade de tomar decisões que mudem esse passado. Nesse caso, a indignação é como uma espécie de vetor que une o passado com o presente para construir o futuro.
Mais além do momento da conquista e da exploração de minas e minérios no Potosí colonial o que seria o mais indignante?
A continuidade da colônia durante a República, ou o que Tristán Platt, um pesquisador inglês, chama de duas repúblicas: uma república que nega os direitos da outra república. Uma república formada por uma elite branca, oligárquica, que toma o poder quase à imagem e semelhança da cor da pele, que nega aos 90% restantes a possibilidade de fazer parte dos benefícios produzidos pela República. E nesse contexto, acredito que esta elite aristocrática assume lógicas também genocidas da colônia. A tentativa de fazer desaparecer os indígenas durante o século XIX, tirando-lhes as terras, por exemplo, para estrangulá-los econômica, cultural e politicamente.
A lei agrária de Mariano Melgarejo no final do século XIX – pela qual o Estado usurpa as terras indígenas para vendê-las aos compadres – não é diferente da lei de apropriação da terra do general Ismael Montes no começo do século XX. Então, há como que uma continuidade nestas políticas de despojo que foram herdadas da colônia. Um Estado republicano colonial. E, claro, o pior deste cenário é a tentação de fazer o outro, o diferente, desaparecer pela violência. E em algum momento, durante a revolução nacional, fazer desaparecer o diferente para construir uma cultura de mestiçagem e, portanto, um imaginário mestiço que nega a diversidade cultural como ferramenta política. Ou, durante a ditadura, as lógicas também genocidas contra as rebeliões mineiras, indígenas ou camponesas, com intensidades de violências variáveis, evidentemente.
O que enfraqueceu o Estado republicano colonial?
Esgotou-se com a implementação do modelo neoliberal. Não somente se esgotou em seu formato cultural, mas também na maneira de fazer os outros acreditar em algo que se dizia, mas que nunca se fazia. Essa dupla moral, o duplo discurso, essa mentalidade esquizofrênica, esgotaram a paciência da população, ao que se somou um novo ciclo de rebeliões urbano-rurais e indígenas em busca de recuperar a soberania, o território, a dignidade, que passa necessariamente por uma coluna vertebral que são os recursos naturais. Os recursos naturais engendram movimentos sociais em busca da autodeterminação do povo. O que foi a luta anticolonial de Tupac Katari para evitar precisamente a exploração indígena e que teve como epicentro uma convivência entre índios e brancos, reproduz-se no começo do século XXI. É um fenômeno atípico na América Latina, complexo, mas fortemente articulado por estas memórias em tensão, a memória longa e a memória curta.
Já que estamos com o atípico, nas últimas eleições Evo venceu também em Santa Cruz de la Sierra, que em 2009 ainda confiava em suas elites partidárias a ponto de falar inclusive de separar-se da Bolívia. O que está por trás desta mudança no voto?
Um processo de desmistificação desta lógica aristocrática e oligárquica dos senhores da terra do Oriente. Eles construíram uma imagem quase tenebrosa de Evo Morales, com a qual se protegeram durante algum tempo no afã de não serem atingidos economicamente. Mas, à medida que a gestão de governo do presidente Evo avança, nada do discurso, da narrativa antievista se materializou. Por exemplo, que o presidente Evo Morales iria construir um Estado plurinacional ateu.
Ateu no sentido de que queimaria igrejas?
Exatamente. Faria a Igreja desaparecer... Jogar com esse medo infundado foi uma arma ideológica da direita em Santa Cruz para aglutinar. Incitavam: “Aqui o índio, além de comunista, vai fazer uma cruzada contra todos os católicos, que se supõe são aqueles que vão salvar a humanidade”. Claro, não foi o que aconteceu. Tampouco a expropriação absoluta das terras dos latifundiários. O que se deu foi uma reforma, uma revolução agrária que antes contribuiu para o ordenamento territorial. Ninguém expropriou os bens, as casas ou os carros, ou que fecharia os colégios particulares, etc.
Ou seja, está contando cucos da pior época da Guerra Fria.
Sim, exatamente. Todo esse discurso desmoronou e ocorreu todo o contrário. Ocorreu todo o contrário, porque a economia foi colocada em ordem, produziram-se excedentes, que foram redistribuídos em todo o território. No caso do Oriente, especialmente em Santa Cruz, conseguiu-se uma estabilidade política e, consequentemente, uma estabilidade social, que possibilitaram a geração de maiores índices de crescimento, de desenvolvimento, de diversificação. E, em consequência, essas elites que estiveram de alguma maneira sequestradas por forças muito radicais impulsionadas pelo governo norte-americano foram questionadas, começaram a ser questionadas, por um lado.
E, por outro lado, entenderam que a política não pode se basear na lógica de soma zero. Nós desenvolvemos uma política de soma positiva, de soma variável. Em vez de destruir o adversário do Ocidente, o que fizemos foi derrotá-lo seletivamente no campo político e depois começar a assimilá-lo. O reconhecimento da convivência: pode-se conviver com o adversário político. E a outra coisa foi que o governo do presidente Evo postulava a unidade nacional em vez desta demanda política, desta tensão de fraturar o Estado. Então, creio que esses elementos contribuíram para que a sociedade oriental de Santa Cruz, particularmente, compreendesse que foram nove anos de crescimento contínuo, de estabilidade, de desenvolvimento, de oportunidades. Então, disseram: “Aqui o quê? Vamos seguir a cartilha de quem tentou nos enganar ou vamos seguir o caminho de um presidente que está construindo um novo Estado?”
E em termos de recursos naturais, qual foi a chave? Petróleo e gás?
Sim. Aqui travamos uma luta. Redistribuímos de acordo com a Constituição, de acordo com as leis, sem tirar as regalias de nenhuma região. O que fizemos foi travar uma batalha, política e econômica, com as grandes transnacionais, sob a consigna que o presidente cunhou na Espanha: nós queremos ser proprietários, donos dos recursos naturais, e se as transnacionais querem permanecer na Bolívia, vão prestar serviços. Então, foi montada toda essa equação de convivência também com as empresas transnacionais, de tal sorte que recuperamos os recursos naturais sem que necessariamente expulsássemos as empresas transnacionais. Por isso, até 2006, até a nacionalização dos hidrocarbonetos, as empresas nacionais exportavam capitais de um país pobre, onde a extrema pobreza campeava solta; exportação líquida de capitais...
Sim, se dedicavam a exportar dólares.
Exatamente. Eles tinham lucros de 82% ou 83% e o Estado, ganhos de 17%. Invertemos a equação, de tal sorte que o Estado começou a receber 83% e, pelos serviços prestados pelas empresas ao Estado, elas passaram a receber 17%. Nestes seis ou sete anos, o excedente acumulado pela nacionalização foi direcionado fundamentalmente à construção de blindagens. Primeiro, proteger a sociedade diante da sua vulnerabilidade em termos de extrema pobreza, ou seja, gerar incentivos econômicos, bônus, rendas, para proteger a sociedade. Segundo, estes recursos foram utilizados para ampliar a esfera do mercado interno. E, terceiro, evidentemente, também para ter reservas internacionais que possam servir nos momentos de emergência na economia internacional.
Consequentemente, há uma história econômica que é direcionada para a implementação de fortes políticas sociais, redução da pobreza, para a redução do abismo entre ricos e pobres, para a geração de mais oportunidades: política social sobre a base do excedente. E estamos entrando numa segunda etapa, na qual impulsionamos políticas de industrialização, transformação da matéria-prima tanto em lítio, em minerais ou também em gás e, obviamente, em alimentos. De jeito nenhum vamos exportar lítio como matéria-prima. Trabalhamos agora em vários projetos de desenvolvimento do lítio com vistas a exportar valor agregado, como baterias para telefones celulares ou também produtos acabados requeridos pelo mercado da energia.
Gustavo Codas, que fez parte do governo de Fernando Lugo e hoje trabalha na Fundação Perseu Abramo, disse certa vez a seguinte frase: “Na América do sul não pode haver progresso em um único país”. Isso se aplica à Bolívia e ao seu governo?
Estamos assistindo à emergência de movimentos populares que decidiram deixar de ser movimentos de resistência para se converterem em fontes de poder político. Então, esses movimentos de resistência estão depositando toda a sua potência social em benefício de um projeto, primeiro, nacional, que passa pelo desmantelamento do Estado neoliberal, e, consequentemente, estão apostando em um projeto maior que é a unidade, a integração regional. Nesse cenário, estamos apostando em economias complementares, em economias solidárias, em políticas mais inclusivas.
Na América do Sul há uma gramática comum em matéria de políticas sociais e econômicas. Evidentemente, requerem amadurecimento e aperfeiçoamento, mas estamos na primeira década da transformação de sociedades neoliberais em sociedades progressistas. Creio que a próxima década será uma década de aceleração na maturidade política de líderes populares democráticos, que vão acabar se dando conta de que quanto mais rápido tomarmos decisões no campo da integração, mais rapidamente teremos capacidades também para resolver os nossos problemas internos. Por isso, necessitamos acelerar os processos de integração e deixar de lado um excesso de retórica para passar a um campo muito mais fecundo de integração.
Nós precisamos construir na perspectiva de Hugo Chávez. Chávez propôs que a América do Sul estivesse integrada através de rede ferroviária, por exemplo. Necessitamos impulsionar a integração energética, necessitamos impulsionar políticas sociais, como faz Cuba, por exemplo, com a Operação Milagre ou com Barrios Adentro, ou com políticas de alfabetização. Felizmente, avançamos muito nesta década. É uma década ganha e, para a Bolívia, é uma década de ouro, como disse o vice-presidente Alvaro. Imagine, na Bolívia conseguimos, por exemplo, derrotar o analfabetismo em menos de quatro ou cinco anos. Conseguirmos reduzir a extrema pobreza para menos da metade. Conseguimos desenvolver políticas de saúde, por exemplo, que reduziram as taxas de mortalidade materno-infantil que estavam com indicadores dramáticos. Com a cooperação cubana e venezuelana, implantamos políticas sociais a favor dos incapacitados ou a favor dos não videntes ou das pessoas que tinham problemas com a visão. Trabalhou-se muito na integração de políticas sociais. Agora também necessitamos desenvolver políticas de integração industrial, de transferência tecnológica, de maior circulação de informação e conhecimento.
Falando em termos regionais e não apenas na Bolívia.
Sim, sim, regionais. Já se tornou insustentável, por exemplo, pensar que cada país terá uma comunidade científica para resolver de maneira autônoma os problemas da industrialização. Então, temos necessidade de maior circulação técnico-científica na região para poder compensar fragilidades ou para poder somar virtudes em termos de conhecimento.
Seu ministério patrocinou um documentário em seis capítulos, Invasão USA. Uma história da intervenção dos Estados Unidos na Bolívia (1920-2014). Por que um embaixador chegou a ter mais poder que um presidente?
É a constante do dominador e do dominado. Por isso, os documentários que, atualmente, estão tentando reconstruir a história da Bolívia. De alguma maneira, também corresponde a este processo histórico reinterpretar a história da Bolívia do último século. E o último século na Bolívia caracterizou-se por uma relação de dominação hegemônica secante dos Estados Unidos sobre a Bolívia. Fez-se crer que os Estados Unidos são o irmão maior do hemisfério e que, portanto, os Estados Unidos desenvolveram na América Latina uma política de cooperação para ajudar na resolução dos problemas dos irmãos menores. E na Bolívia consumiu-se em excesso esse mito de que a potência imperial é insubstituível, é invencível e, portanto, é necessária.
Com essa lógica, a Bolívia converteu-se em uma semicolônia durante 100 anos pelos Estados Unidos. Então, este conjunto de documentários narra as diversas maneiras como os Estados Unidos intervieram na Bolívia de maneira sistemática, modificando em determinados ciclos históricos suas estratégias de controle político, de controle territorial, de controle militar e de controle econômico. Estes são documentários que vão se constituir em uma espécie de emenda histórica. É uma anomalia que os nossos próprios historiadores na Bolívia tenham passado ao largo essa parte da história e não expliquem o papel dos Estados Unidos na construção da sociedade boliviana. E é tão estranho que não apenas os historiadores, mas também os intelectuais, os supostos intelectuais bolivianos, prescindiram desta variável para entender a Bolívia dos últimos 100 anos. E uma comunidade intelectual ou um conjunto de historiadores que não entendeu o que aconteceu a um país, não terá a possibilidade de resolver seus problemas.
Portanto, era impostergável revisar a história da Bolívia no âmbito da política exterior. Encarregamos um conjunto de compatriotas argentinos que estudaram a relação entre a Bolívia e os Estados Unidos. A conclusão é que tivemos um século de domínio hegemônico norte-americano que impediu o desenvolvimento da Bolívia, que fechou as possibilidades para que a Bolívia pudesse desenvolver seu poder econômico, social ou político. Não é que sejamos absolutos ao assinalar que os Estados Unidos são responsáveis por tudo. Mas são um dos atores hegemônicos sobre o qual pesa uma grande responsabilidade em relação ao que foi a Bolívia nos últimos 100 anos, e é disso que se trata.
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“Há, na América do Sul, uma gramática comum de políticas sociais e econômicas”. Entrevista com Juan Ramón Quintana Taborga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU