Por: Cesar Sanson | 28 Outubro 2013
“Reduziram o tom da soberba, da certeza de suas eleições e popularidades, tidas por garantidas. Mas, no geral, os governantes não fizeram quase nada. Assustaram-se. Desfilaram promessas e complacência por um lado, e por outro determinaram a mais dura repressão às ruas”. O comentário é de Bruno Cava em artigo publicado no seu blog, 27-10-2013.
Eis o artigo.
Em junho, a terra tremeu. Forças subterrâneas e míticas, até então mantidas escravas e domesticáveis, atingiram o ponto da eclosão. Os protestos disseminados em larga escala plantaram dinamite nos corações e mentes. Desobstruíram forças, desataram conflitos, desencadearam possibilidades. Nascidos de pressões insuportáveis, pelas quais se movem e vivem as tensões sociais, políticas e econômicas do novo Brasil e os “custos do progresso”. Foi como se placas tectônicas tivessem se mexido, transmitindo abalos em vários níveis, mudando a paisagem, reconfigurando os espaços e a temporalidade da política brasileira. A relação de força entre direitos vivos e direitos mortos mudou na medida da potência, que as manifestações e sua auto-organização conseguiram reunir.
Em questão de meses, se conquistou a redução da passagem de ônibus. Obteve-se certa moratória na remoção das favelas, um recuo — tímido, porém perceptível — nas operações higienizadoras de choque de ordem. A aldeia Maracanã, do lado do estádio homônimo, foi reocupada. Multiplicaram-se fóruns, assembleias, mídias alternativas, frentes de autodefesa da multidão: defesa física, jurídica, midiática. Foram ocupadas casas legislativas e exigidas as aberturas das “caixas pretas” dos transportes, da saúde, do lixo, da segurança pública. A campanha Cadê o Amarildo trouxe a periferia ao centro da percepção, nomeou a brutalidade da “pacificação” e, em seu nome, reafirmou o propósito de outra cidade, outra paz, outra alegria. Além da investigação levada adiante, graças à mobilização popular, o judiciário determinou a indenização de um salário-mínimo por mês para a viúva de Amarildo e seus seis filhos. O governo do estado recorreu da decisão, para não pagar nada.
Os governantes prometeram pacotões de saúde, mobilidade urbana e educação. Foi esboçada uma miniconstituinte para a reforma política, logo esquecida. Prometeu-se uma reforma da polícia, uma mudança geral de postura no tratamento dos manifestantes. Reduziram o tom da soberba, da certeza de suas eleições e popularidades, tidas por garantidas. Mas, no geral, os governantes não fizeram quase nada. Assustaram-se. Desfilaram promessas e complacência por um lado, e por outro determinaram a mais dura repressão às ruas.
O medo acionou ciclos histéricos de criminalização. À direita, o campo tradicional das elites, era de esperar-se. Seu medo quase mitológico, talvez topológico, de que a terra se junte ao céu e o morro acabe abatendo-se sobre o asfalto. O temor da invasão bárbara dos favelados, o eterno retorno da “guerra de raças”, a liquidação universal de todas as violências de classe. Esse medo tem mesmo muito a ver com o racismo, e está incrustado no processo civilizatório brasileiro.
O paradoxo veio da esquerda. Se, noutros tempos, lutou na ditadura, agora não só a promove, como é a própria. O medo diante do esfacelamento de um consenso de que tinha tanta certeza. Embora tentem se tranquilizar projetando vitórias em primeiro turno, sabem como a qualquer momento outros 27 pontos podem mudar todo o cenário. Sentem o cheiro de lacrimogênio no ar. É também a perda da autojustificação em fazer o mal para alguns, em nome do bem para a maioria. A ideia de que ainda é a melhor solução disponível dentro das regras do jogo. Tornou-se neurótica. Se a direita acusa as manifestações de crime, de “violência pela violência” ou “violência gratuita”; a esquerda vai mais além, para agravar a acusação com um sentido político: seriam fascistas e ameaças à democracia. Não seriam apenas “bando de malucos quebrando tudo”, mas mascarados extremistas a serviço do golpe. Essa neurose tem a ver com a perda da própria boa consciência, forjada ao redor da percepção que, em última instância, apesar de tudo, ainda defendem os pobres.
A histeria da direita somada à neurose da esquerda provoca a escalada da repressão, generalizando a brutalidade nas favelas e periferias às ruas e praças ocupadas. O ataque aos manifestantes é indiscriminado. Basta estar na rua, no bar, voltando pra casa. É-se bombardeado com armas químicas, menos letais apenas para quem as experimenta através das imagens do JN. É-se agredido, humilhado, abusado sexualmente e cegado. Os bairros são varridos por pogroms, enquanto ativistas são levados para “passear” pela polícia. A polícia secreta deita e rola nas redes sociais, violando a correspondência e montando arquivos políticos sobre organizações, militâncias ou qualquer um com opinião firme no facebook.
Proíbem-se as máscaras, cuja maior ameaça, a eles, é propiciar que negros, pobres e favelados possam se juntar democraticamente e em segurança aos protestos. Chovem mandados de busca e apreensão com o intuito de intimidar as pessoas. À agressão indiscriminada segue a prisão indiscriminada, com base em tipos penais vagos e abstratos, sem provas, verdadeiras aberrações jurídicas produzidas por investigações ordenadas pela cúpula dos governos, a quem muitas instituições penais capitularam.
Em 15 de outubro, prenderam não só os tais black blocs, mas também black profs, black palhaço, um black carteiro (devidamente uniformizado) e até black pizzaiolo. O governo do Rio conseguiu o que nem o comissário Gordon, de Gotham City conseguira, que foi prender o Batman. Por sorte, nesse dia, fugiram o Saci, o V de Virgulino e o empregado da marinha mercante Jack Sparrow.
Em tempos de presos políticos, poucas vezes foi necessário afirmar o direito. O direito vivo que todos somos, enquanto potências de existir, agir, afetar e ser afetado. A potência configurada nessa comunidade heterogênea de direitos. Não seremos enterrados pela geologia da repressão. Os abalos continuam. Poucas vezes o estado e o direito estatal exprimiram tanto o antidireito, a ilegitimidade de suas histerias, neuroses, paranoias institucionais e violência de classe. Não se trata de uma luta do estado de direito x estado de exceção. Trata-se, isso sim, do poder constituinte contra todos os estados.
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O poder constituinte contra todos os estados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU