O seguimento de Jesus e a pretensão do nosso ‘ego’. Comentário de Adroaldo Palaoro

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13 Setembro 2024

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 24º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Marcos 8,27-35.

Eis o texto.

“No caminho perguntou aos discípulos: ‘quem dizem os homens que eu sou’”? (Mc 8,27)

O Evangelho de Marcos é chamado de “Evangelho do Caminho”. O “caminho” é a verdadeira escola do Mestre da Galileia, pois Ele está aberto às surpresas da vida e não se refugia no interior das sinagogas e espaços sagrados; no caminho Jesus deixa transparecer a sua missão; o caminho revela também o verdadeiro sentido do seguimento.

É no caminho que Jesus faz duas perguntas que deixam transparecer dois círculos: um exterior e um interior. O que se vê de fora e o que se vê de dentro. O que se vê com os olhos e o que se contempla com o coração. As duas perguntas deixam clara uma distinção entre a visão que a multidão tinha de Jesus e a dos discípulos, depois de um tempo de convivência com Ele. Os discípulos são chamados a ter um olhar mais profundo, capaz de mergulhar no mistério de Jesus, um olhar sem falsidade e sem interesse próprio; eles não devem se contentar com o que ouvem dizer, mas são movidos a tomar uma posição, uma decisão.

As afirmações de Jesus no evangelho deste domingo têm dado margem a interpretações deturpadas. Ele é claro: apresenta-nos as consequências do seu seguimento; Ele não está falando da “cruz patíbulo”, imposta pelos homens, mas da “cruz fidelidade” a uma causa em favor da vida, ou seja, estar pronto e preparado diante da resistência e perseguição daqueles que não se abrem à ousada proposta do Evangelho.

Quem vive radicalmente o Evangelho, mais cedo ou mais tarde, vai ser rejeitado, perseguido... Tudo o que aconteceu com o Mestre, acontecerá também com os seus discípulos.

Jesus não veio para complicar a vida dos seus seguidores, nem impor novas leis, ritos, penitências... que só alimentam medo de Deus e culpa doentia. Afinal, Ele veio para que todos tivessem vida, e vida em plenitude. Na sua mensagem, Ele proclamou uma palavra vital e sábia. Não é, certamente, uma palavra que satisfaça nosso ego, alimentando a ignorância e a inconsciência na qual ele se move; também não é uma mensagem que atrofia a vida e a liberdade da pessoa. Pelo contrário.

O texto de Marcos fala de “perder a vida (o ego) pelo evangelho”. Como entender isso? Não se trata, evidentemente, de nenhum tipo de fanatismo que faz do evangelho uma bandeira de sofrimento ou um ídolo ao qual “sacrificar” a própria vida.

“Salvar a vida” ou viver em plenitude só é possível quando permanecemos em conexão com aquela identidade profunda, com o “eu original”. Isso requer, obviamente, deixar de nos identificar com o “ego” de uma maneira absoluta.

Vivemos, interiormente, o eterno conflito entre o “ego” e o nosso “eu verdadeiro”. No mais profundo de cada um de nós habita uma pretensão básica de querer “ser deus” – “sereis como deuses” (Gen 3,5). É o pecado de raiz já dos nossos primeiros pais. É a tentação de querer ser outro, de não aceitar ser dependente, de não se aceitar como criatura, como humano (frágil e limitado).

Renunciar a si mesmo” é não deixar que o impulso para a vaidade, a soberba, o poder... predomine; não deixar que o centro seja o “ego”, mas a identificação com Jesus (“quem quiser me seguir...”). Isso implica em “descer”, humildemente, ao próprio húmus. Se a pessoa não renuncia essa pretensão de “bastar-se a si mesma”, não poderá seguir Jesus Cristo.

Portanto, o convite é este: “negar o ego” para fazer emergir o “eu sou”, nossa originalidade e verdadeira identidade. No encontro com o “Eu sou” de Jesus reacende-se o nosso “eu sou”, aquilo que é mais nobre, elevado e sagrado no mais profundo de nós mesmos.

E quando se manifesta o nosso “eu original”?

Quando nos sentimos genuinamente movidos por sentimentos de compaixão para com as pessoas necessitadas, esse é o nosso verdadeiro eu que está se manifestando. Quando começamos a sentir uma grande gratidão pelos inúmeros dons que a vida nos oferece, podemos ter a certeza de que isso não provém do nosso ego. O ego é completamente incapaz de sentir gratidão. Sentir uma gratidão imensa por todos os dons e graças da nossa vida é algo que brota do fundo do nosso ser.

Quando reconhecemos um momento de honestidade e sinceridade no nosso desejo de conhecer a verdade acerca de nós mesmos ou da realidade que nos cerca, esse é o nosso verdadeiro eu. Nos momentos em que agimos com uma coragem e valentia incomum e inexplicáveis, isso também brota de um impulso que provém das profundezas do nosso próprio ser.

Se alguma vez experimentamos a alegria tranquila de deixarmos de lado nosso ego, fazendo alguma coisa pelos outros, sem recebermos qualquer recompensa ou agradecimento, e sem que ninguém o saiba, então entramos em contato com o nosso verdadeiro eu. E quando nos sentimos invadidos por uma onda de assombro e deslumbramento, quer dizer que estamos deixando o nosso verdadeiro eu prevalecer.

O que está em questão é precisamente “salvar a vida”, ou seja, viver em plenitude, com sentido e inspiração. Pois bem, isso só é possível quando descobrimos nossa verdadeira identidade e nos libertarmos das armadilhas do ego que nos confundem e nos mantém no sofrimento.

O evangelho deste domingo não reforça nenhum tipo de voluntarismo egoico, nem trata da exigência arbitrária de um Deus que exige sacrifícios e mortificações. É uma questão de sabedoria ou de compreensão. E é isso que expressam as palavras de Jesus que fecham o relato: “se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga.

Pois quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de mim e do Evangelho, vai salvá-la”.

Uma consideração superficial destas palavras de Jesus deu margem a uma apresentação do cristianismo como a religião que enfatiza a dor, a renúncia e a negação da própria vida e da própria identidade.

Mas Jesus não buscou a dor e nem negou a vida. Suas palavras não são uma exaltação do sofrimento, mas expressam uma grande sabedoria: elas buscam “despertar” a pessoa para sua verdadeira identidade, para que assim ela possa assumir uma atitude acertada diante da vida.

O horizonte de toda pessoa é precisamente a vida e a plenitude. Isso é o que todos, sabendo ou não, buscamos. E buscamos isso em tudo o que fazemos e em tudo o que deixamos de fazer. Como acertar?

A verdade é que, nos ouvidos de muitas pessoas, a palavra “religião” soa como “negação”, “sofrimento”, “cruz”, “mortificação” ..., ou seja, como “negação da vida”. Diante deste grande equívoco, é preciso começar a reconhecer que tal visão não tem fundamento no Evangelho, mas em fatores alheios, de diferentes procedências, que chegaram a configurar o imaginário coletivo com matizes doloridos e angustiantes. Temas como o pecado, a culpa, o castigo, as “penas eternas” ..., rechearam os catecismos doutrinários, pregações moralistas e devoções estéreis, até os extremos difíceis de imaginar.

São muitos os cristãos que sofrem, feridos pela negatividade, pela rigidez, pela exigência; talvez humilhados pela culpabilidade, pelo medo, pelo perfeccionismo, pelo voluntarismo ou idealismo vazio, pelo excesso de cruzes inúteis, negações e sacrifícios impostos por uma educação religiosa repressora, restritiva e dominadora. Em suma, são muitos que estão feridos por uma religião tenebrosa, e acabam abandonando por pura necessidade de sobrevivência.  

Infelizmente, como no tempo de Jesus, há uma religião que desumaniza em vez de potencializar todos os recursos mais humanos; uma religião que massacra em vez de contagiar vida; uma religião que atrofia em vez de expandir a pessoa.

Muitas “autoridades religiosas” se transformam em implacáveis juízes, com a lei na mão, em vez de serem bons samaritanos. Fica cada vez mais patente dois estilos de religião: a que encarcera e a que liberta.

Qual delas determina nossa vida?

Para meditar na oração:

Orar é aproximar-me da “verdade que me faz livre”; livre para ser “eu mesmo”, chegar a ser aquilo a que sou chamado a ser.

Por isso a oração cristã é também descoberta do “eu”, da minha própria realidade pessoal, do mistério que a habita.

É nessa experiência divina que “descubro-me a mim mesmo”. Começo, então a descobrir o meu ser (único, original, sagrado...) quando “mergulho” no misterioso relacionamento com Deus e quando permito que o “mistério experimentado” se torne fonte de minha identidade. Mais ainda, saberei melhor “quem sou eu”, esquecendo-me de mim mesmo, aceitando perder-me, deixando que o Amor me liberte de meu pequeno e atrofiado “ego”.

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