"O corpo central do discurso tem como tema o mandamento do amor ilimitado. É uma composição parenética, que devido à precisão da forma e da estrutura parece um poema didático, com cunho sapiencial. As frases se sucedem na forma de dísticos perfeitamente equilibrados, de acordo com a lei do paralelismo bíblico."
"A linguagem de Jesus é paradoxal e não deve ser entendida em um sentido regulatório. Ele não quer ditar regras de comportamento, mas indicar a atitude profunda do/a discípulo/a, que deve estar disponível a amar sempre, mesmo aqueles que o prejudicam. Obviamente não se trata de um mero sentimento de simpatia, mas de uma firme disposição para cumprir o preceito fundamental de evangelho, que envolve não apenas suportar o inimigo, mas o compromisso ativo de fazer o bem a ele. Com este amor universal e desinteressado é a realidade do reino que irrompe no mundo, para libertar a humanidade do egoísmo e do ódio."
Subsídio elaborado pelo grupo de biblistas da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana - ESTEF:
Dr. Bruno Glaab
Me. Carlos Rodrigo Dutra
Dr. Humberto Maiztegui
Me. Rita de Cácia Ló
Edição: Prof. Dr. Vanildo Luiz Zugno
Primeira Leitura: 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23
Salmo: 102,1-2.3-4.8.10.12-13
Segunda Leitura: 1Cor 15,45-49
Evangelho: Lc 6,27-38
O corpo central do discurso tem como tema o mandamento do amor ilimitado. É uma composição parenética, que devido à precisão da forma e da estrutura parece um poema didático, com cunho sapiencial. As frases se sucedem na forma de dísticos perfeitamente equilibrados, de acordo com a lei do paralelismo bíblico.
É possível distinguir duas unidades literárias: v.27-35: o mandamento do amor universal; v.36-38: a prática da misericórdia na vida comunitária.
v.27-31 abre com as palavras: “Mas eu digo a vós que me escutais”. Esta frase, que marca um afastamento dos quatro “ai de vós” anteriores, expressa a autoridade do ensino que Jesus está prestes a propor. Os ouvintes são todos aqueles nomeados no v.17. O mandamento do amor é marcado por quatro imperativos: amem, façam o bem, abençoem, rezem (v.27-28). O tema dominante é destacado na primeira prescrição: “Amai os vossos inimigos”, que, como é explicado imediatamente, são aqueles que odeiam, amaldiçoam, caluniam. Não se trata apenas de adversários externos, hostis aos cristãos, mas também de inimigos pessoais internos comunidade. Jesus ordena aos discípulos e discípulas que respondam ao ódio com o bem, à maldição com bênção, à calunia com a oração.
Ao mandamento do amor, formulado com os quatro imperativos (v.27-28), Jesus menciona quatro exemplificações referindo-se a uma atitude mais profunda, que vem do coração, a fim de destacar a disposição de responder ao mal com o bem (v.29-30). “A quem te bater numa face, oferece também a outra” (v.29a). O/A discípulo/a deve estar disposto/a a não reagir à ofensa, mas sim receber uma ainda maior. “e a quem tomar o teu manto, não impeças de levar também a túnica”. Lc inverte a ordem de Mt. A expressão, no entanto, resulta mais lógica para o leitor helenístico: quem segue Jesus é convidado/a a dar também sua túnica a quem leva seu manto externo. Jesus, portanto, inculca a renúncia até mesmo aos próprios direitos e a não resistir ao mal com o mal. “Da a todo aquele que te pedir e não reclames de quem tirar o que é teu” (v.30).
A linguagem de Jesus é paradoxal e não deve ser entendida em um sentido regulatório. Ele não quer ditar regras de comportamento, mas indicar a atitude profunda do/a discípulo/a, que deve estar disponível a amar sempre, mesmo aqueles que o prejudicam. Obviamente não se trata de um mero sentimento de simpatia, mas de uma firme disposição para cumprir o preceito fundamental de evangelho, que envolve não apenas suportar o inimigo, mas o compromisso ativo de fazer o bem a ele. Com este amor universal e desinteressado é a realidade do reino que irrompe no mundo, para libertar a humanidade do egoísmo e do ódio.
A regra de ouro (v.31) conclui este primeiro ponto: a lei do amor não se limita a excluir o mal, mas implica diligência para fazer o bem ao próximo. Este ditado, relacionado à sabedoria, não deve ser considerado como um regateio. É o bem dos outros que é desejado. A reciprocidade deve ser entendida como objeto de esperança.
v.32-35. Destaque para o tom sapiencial do discurso. É composto por três proposições no modo condicional (v.32-34), que ilustram com outros exemplos como o/a discípulo/a com prática de amor ilimitado não busca seu próprio interesse e a retribuição, mas imita a bondade gratuita de Deus. Deste modo, o amor cristão assume uma especificidade diferente da “profana”, na medida em que não se volta sobre si mesmo, ele não faz cálculos: ele ama primeiro sem esperar retorno, e então se mostra semelhante ao amor de Deus para com o ser humano.
O logion final (v.35) é uma sentença normativa, formulada de forma quiástica, que sintetiza o sentido dos três exemplos anteriores e relembra, a título de inclusão, o tema fundamental enunciado no início da perícope (v.27). Apenas imitando a bondade universal de Deus, os discípulos e discípulas se tornam “filhos do Altíssimo”, porque “Ele é bondoso para com ingratos e maus” (v.35). Egoísmo não deve obscurecer a prática do amor autêntico: quem segue Jesus pratica um amor original e criativo que expressa a essência do evangelho, permitindo irradiar no mundo a misericordiosa bondade de Deus.
Os versos finais ilustram a prática de misericórdia, por meio do perdão (v.37) e a partilha de bens (v.38). Do tema do amor universal, passamos agora às normas evangélicas sobre conduta do/a discípulo/a nas relações interpessoais dentro da comunidade. O agrupamento de frases nos v.37-38 constitui um desenvolvimento do v.36; e são introduzidos com quatro verbos imperativos (dois negativos e dois positivos).
“Não julgueis...” (v.37) não tem um sentido legal, mas refere-se ao comportamento normal na vida diária que não deve criticar o próximo. “Não condeneis...”: Jesus comanda evitar avaliação negativa e estar aberto ao perdão (“perdoai...”) por ofensas pessoais, em imitação do Pai, que mostra misericórdia para com todos. Os três verbos no passivo krithēte, katadikasthēte, apolythēsesthe (não sereis julgados, [...] condenados, sereis perdoados) implicam Deus como agente.
“Dai e vos será dado...” (v.38): a imitação do Deus misericordioso exige não só (negativamente) o perdão (v.37), mas também (positivamente) o dar.
A 1ª. Leitura, com os eventos relacionados a Davi e Saul, faz ver concretamente a magnanimidade de quem experimenta no cotidiano a presença do Senhor.