Um pastor diferente?

Mais Lidos

  • Esquizofrenia criativa: o clericalismo perigoso. Artigo de Marcos Aurélio Trindade

    LER MAIS
  • O primeiro turno das eleições presidenciais resolveu a disputa interna da direita em favor de José Antonio Kast, que, com o apoio das facções radical e moderada (Johannes Kaiser e Evelyn Matthei), inicia com vantagem a corrida para La Moneda, onde enfrentará a candidata de esquerda, Jeannete Jara.

    Significados da curva à direita chilena. Entrevista com Tomás Leighton

    LER MAIS
  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

24 Abril 2015

Ser chamado pelo nome é ser reconhecido. Por isso Jesus, o Bom Pastor, chama cada um por seu nome, convidando-nos a confiar nele, a passar através dele, a escutá-lo, a seguir o seu exemplo e a viver com ele a sua Páscoa, a fim de conhecer a Vida.

A reflexão é de Marcel Domergue, sacerdote jesuíta francês, publicada no sítio Croire, comentando as leituras do 4º Domingo do Tempo de Páscoa. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.

Eis o texto.

Referências bíblicas:
1ª leitura: «Em nenhum outro há salvação» (Atos 4,8-12)
Salmo: 117(118) - R/ A pedra que os pedreiros rejeitaram tornou-se agora a pedra angular.
2ª leitura: «Seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é» (1 João 3,1-2)
Evangelho: «O bom pastor dá a vida por suas ovelhas» (João 10,11-18)

Um pastor, mas não como os outros

A figura do pastor representa o que, para os homens da Bíblia? Os chefes religiosos, claro, mas também os chefes políticos. Política e religião estão assim estreitamente ligadas. O «pastor» é o que governa e conduz a todos por bons caminhos. É a autoridade exercida com vistas ao bem comum. Tendo dito isto, devemos notar que o pastor vive do seu rebanho. Explora-o e tira dele o seu lucro. Sabemos o que acontece com os criadores quando o leite não alcança preço favorável. Há uma dependência mútua, portanto, mas o objetivo do pastor não é o seu rebanho e sim ele mesmo. Tanto que vemos criadores passarem de uma espécie a outra, quando a rentabilidade está em jogo. Além do mais, este pastor de que fala Jesus não é nem mesmo o proprietário do rebanho, mas um «mercenário», pago para se ocupar das ovelhas. O que coloca uma distância suplementar entre ele e os animais dos quais se ocupa. É preciso observar, enfim, que, no evangelho, o pastor está no singular: é único, para um rebanho de múltiplos animais. Cada um destes traços tem a sua importância, e veremos como o Cristo, quando fala do «bom pastor», modifica-os até invertê-los. Isto nos leva a mudar a nossa maneira de ver Deus: à força de utilizarmos a metáfora real (Deus como Rei dos reis, Cristo-Rei, etc.), acaba que representamos Deus como sendo um patrão autoritário e até mesmo arbitrário; um soberano que nos quer manipuláveis a seu «bel prazer». Um ‘Deus’ que tem algo a ver com os maus pastores de que fala Ezequiel 34, texto que serve de pano de fundo ao evangelho de hoje e que faríamos muito bem em reler.

Cada um por si e todos em conjunto

Não apreciamos muito ser comparados a um rebanho. Há aí um lado gregário que parece nos fazer desaparecer no anonimato e, ainda mais, tendo ovelhas que se atiram ao mar uma atrás das outras - como o pano de fundo. Jesus, no entanto, inverte esta imagem: o bom pastor conhece cada uma das suas ovelhas e as chama cada uma pelo nome (versículo 3, fora da leitura). Para ele cada ovelha não constitui um objeto substituível, mas uma personalidade singular. Por isso não abandona a ovelha que está ferida, doente ou que se tenha perdido (ver Ezequiel 34,16 e Lucas 15,4-7), quer se trate de um problema físico, mental ou moral. Para o Deus Uno cada um de nós é único e ninguém deve se perder. Mas, então, por que falar em rebanho (cf. o Salmo 95,7 entre outros)? Porque tudo o que somos, tudo o que se constitui como particularidade nossa deve ser depositado no fundo comum para construir um só corpo, à imagem do Deus que é União (Trindade). Aqui, o uno e o múltiplo reconciliam-se, como explica Paulo em 1 Coríntios 12. Assim, o rebanho de que fala a Bíblia não é um rebanho como os outros, em que todos os animais são intercambiáveis. Resulta daí que a autoridade do Bom Pastor, ou do próprio Deus, não tem nada a ver com o que costumamos tomar como o conteúdo desta palavra. Trata-se de uma autoridade que funda e que faz crer, é a autoridade de um «autor», do «autor dos meus dias». Sabemos, por outro lado, que a meta do exercício desta autoridade é a nossa liberdade, para além das limitações que a «natureza» e a vida nos impõem.

O pastor que dá a sua vida

Este «bom pastor», decididamente, não tem nada a ver com os pastores comuns. Os pastores vivem do seu rebanho, enquanto, ao contrário, o Cristo está falando de um pastor que não é outro senão ele mesmo, que dá a sua vida por suas ovelhas. São palavras que fazem alusão à Páscoa que estava por vir. Jesus, um dia, dirá aos discípulos: «Tomai e comei, esta é a minha carne que será entregue por vós… Tomai e bebei; este é o meu sangue que será derramado por vós.» Já no capítulo 6 do evangelho de João, lemos: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna [...…] e permanece em mim e eu nele…» (54-56). Não é mais o rebanho que alimenta o pastor, mas é o pastor que, com a sua própria carne, alimenta o rebanho. Aliás, tudo o que consumimos não é um alimento de verdade, porque só nos proporciona um sursis à morte, a sua suspensão temporária. Pois, a Eucaristia significa tudo isto. Faz de nós um só «rebanho» certamente, um só corpo, mas repartir, tomar e comer deste pão só pode produzir fruto, se absorvemos também a sua Palavra. Qual palavra? Em 1 João 3,24, lemos que “quem guarda os seus mandamentos permanece em Deus e Deus nele” (são as mesmas palavras do capítulo 6). E o mandamento do Cristo é que nos amemos uns aos outros, «não com palavras nem com a língua, mas com ações e em verdade». Deveríamos nós também nos dar em alimento para os nossos irmãos? Pois é isto mesmo que está dito em 1 João 3,16.

Leia mais