06 Dezembro 2018
"O uso de CRISPR em pesquisas em linha germinal é um exemplo típico dos problemas que envolvem as questões normativas em nível mundial. De fato, não há uma legislação internacional que regule a pesquisa, seja ela para curar e salvar vidas humanas ou não humanas, para produzir soluções biotecnológicas para a agroindústria e a pecuária, seja ela para a produção de tecnologias que possam ser utilizadas para a produção de armas biológicas, químicas ou de outra natureza".
O artigo é de Norton Nohama, filósofo, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Bioética da PUCPR e Membro da Comissão Estadual da Verdade do Paraná Teresa Urban, e Daiane Priscila Simão-Silva, docente do Programa de Pós-Graduação em Bioética e da Graduação em Biotecnologia da PUCPR, Pós-doutora em Bioética (PUCPR), Doutora em Genética (UFPR com período sanduíche no Department of Neurobiology, Care Sciences and Society do Instituto Karolinska, em Estocolmo, SE) e Mestre em Biologia Evolutiva e graduada em Ciências Biológicas.
Viver mais e melhor, este provavelmente é o desejo de todo mundo, um sonho distante e difícil que a biotecnologia promete trazer para bem perto de você. Mas afinal, há que distância estamos deste sonho? Ele é factível? Existem riscos? Que tipo de riscos? Estas são algumas das questões que vamos tentar aqui esmiuçar rapidamente.
Para tanto, nas próximas linhas vamos entender um pouco sobre o que é CRISPR e discutir alguns aspectos como os relativos ao conhecimento científico, os que envolvem pesquisa e desenvolvimento e claro, ética e sociedade. Afinal, será que como sociedade global estamos realmente cientes dos riscos e benefícios e preparados para fazer as escolhas que o futuro nos oferece?
Há apenas 6 anos (2012, em um artigo da Science) duas pesquisadoras, Jennifer Doudna da Universidade de Berkeley e Emmanuelle Charpentier, na época na Universidade Umeå na Suécia (atualmente no Instituto Max Planck de Biologia Infecciosa em Berlim), comunicaram ao mundo que haviam descoberto uma maneira de utilizar um recurso natural específico do sistema imunológico de bactérias e Archaea, denominado CRISPR, associado a uma endonuclease, a CAS9, como ferramenta molecular para edição gênica. Resumidamente, o mecanismo funciona assim: CRISPR localiza o gene alvo a ser editado e a CAS9 faz o corte na dupla fita de DNA, em seguida ocorre uma de três possibilidades: a correção de um gene defeituoso, o silenciamento da expressão do gene (knock-out) ou a inclusão de um gene que irá expressar uma característica que não existia anteriormente. Comparativamente às técnicas conhecidas até então, como Meganucleases, TALENS e Zinc-Finger nucleases, a nova descoberta se revelou um grande avanço da biotecnologia, tanto em decorrência da precisão genômica da ferramenta como pela facilidade, rapidez e baixo custo no processo de edição.
CRISPR em tese pode ser utilizado para edição de qualquer tipo de célula (em linhagem somática ou germinativa), do mais elementar organismo monocelular (procarionte) como vírus ou bactéria ao mais complexo dos mamíferos (eucarionte). A edição pode ser “in vitro” ou “in vivo”. No primeiro caso as células são retiradas do organismo, editadas e após reintroduzidas. No segundo caso, a edição é feita diretamente dentro do organismo.
O processo de edição, consiste em preparar CRISPR com a sequência alvo a ser localizada e a enzima CAS que fará o corte na dupla fita de DNA no ponto desejado, em seguida, a depender do que fora previamente programado, ocorrerá a substituição do gene alvo, o silenciamento do mesmo ou a adição de um novo gene. Em geral, quem faz o transporte, a entrega da ferramenta molecular pode ser um vírus ou uma bactéria que é inoculada na célula ou no organismo a ser editado. Os pesquisadores têm se utilizado muito a Streptococcus pyogenes (que causa infecção de garganta), de onde vem a enzima CAS9, mas existem outras CAS que também tem sido utilizadas para fins específicos, como por exemplo como marcador molecular.
Na pesquisa básica, os marcadores moleculares são uma ferramenta importante para que os pesquisadores possam localizar e estudar determinado gene de interesse dentro do DNA alvo. Se considerarmos que muito pouco se conhece sobre os 25 mil genes que compõe o DNA de nossa espécie, a longo prazo, esta talvez seja uma das funções mais promissora da técnica.
A descoberta rendeu às pesquisadoras Doudna e Charpentier um prêmio no Life Sciences de 2015, de US$ 3 milhões e talvez no futuro, um Prêmio Nobel. De lá para cá, uma disputa de milhões de dólares bem maior vem sendo travada nos tribunais americanos entre as pesquisadoras de um lado e do outro o cientista chinês Feng Zhang, que publicou a descoberta na mesma época, pelo direito de patente da técnica. Ao mesmo tempo laboratórios em todo o mundo correm para requisitar o direito de exploração comercial sobre possíveis produtos de CRISPR que ainda não existem, baseados em pesquisas ainda em andamento e que podem não chegar ao resultado desejado, alguns destes alardeados na imprensa como certos, apesar de ainda estarem longe de sair das placas de petri dos laboratórios e talvez nunca cheguem à fase de testes clínicos.
Razões para se ter grandes expectativas com esta nova biotecnologia não faltam. Os números são impressionantes: entre as doenças letais, por exemplo, estima-se que no mundo anualmente 32 milhões de pessoas desenvolvem algum tipo de câncer e 8,8 milhões delas morrem da doença todos os anos. São 14 milhões de casos novos todos os anos e em 2030 este número deve subir para 21 milhões de pessoas/ano, (OPAS/OMS, 2017), (BBC, 2016). O HIV já matou 39 milhões de pessoas das 78 milhões afetadas desde o início nos de 1980, (UOL Notícias, 2014).
Especialistas da ONU elaboraram uma lista de doenças prioritárias para pesquisa e desenvolvimento em 2018 em razão de as mesmas não disporem de drogas e/ou vacinas eficazes, associado ao alto potencial para causar uma emergência de saúde pública. Constam da lista: febre hemorrágica da Crimeia-Congo; doença do vírus ebola e febre hemorrágica de Marburgo; febre de Lassa; síndrome respiratória coronavírus do Oriente Médio (MERS) e síndrome respiratória aguda severa (SARS); infecção pelo vírus Nipah e doenças relacionadas aos henipavírus; febre de Vale do Rift; vírus zika e doença X (que seria a necessidade de se preparar para a possibilidade de surgimento de um patógeno desconhecido capaz de provocar uma epidemia). Além disso, estão em análise e poderão entrar na próxima revisão da lista: febres hemorrágicas virais, além da febre de Lassa; chikungunya; doenças causadas pelo coronavírus altamente patogênicas; enterovírus não polio (incluindo EV71, D68) emergentes; e febre grave com síndrome de trombocitopenia (SFTS), (OPAS - OMS, 2018).
Existem hoje mais de 7 mil doenças raras conhecidas, 80% delas de origem genética e para 95% não existe tratamento, sendo que 75% delas se manifestam ainda na infância. Em todo o mundo são entre 420 a 560 milhões de pessoas afetadas, algo entre 6% e 8% da população, (BBC Brasil, 2013). Entre as mais conhecidas estão: Anemia Falciforme, Distrofia Muscular de Duchene, Doença de Huntington, Doença de Tay-Sachs, Fenilcetonúria, Fibrose Cística, Hemofilia A, Síndrome de Marfan, Talassemia e a Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). A ausência de tratamento comumente é justificada como decorrente de dois fatores intimamente relacionados: as dificuldades próprias no campo da pesquisa (a maior parte destas doenças são poligênicas e multifatoriais) e o alto custo no desenvolvimento da cura ou tratamento, o que faz delas economicamente inviáveis. Três casos recentes comoveram e marcaram o debate mundial: a morte do físico Stephen Hawking e dos bebês Charlie Gard e Alfie Evans, o primeiro com ELA, o segundo com Síndrome de Miopatia Mitocondrial e o terceiro diagnosticado com uma doença neurodegenerativa severa associada com epilepsia em estado semivegetativo há mais de um ano.
Noticiários recentes dão conta de que experimentos em fase clínica com humanos utilizando CRISPR para tratamento de câncer e HIV, entre outras enfermidades já soma, somente na china, 86 pacientes. Destes, vários foram a óbito e segundo os pesquisadores em decorrência do quadro clínico pré-existente. Reino Unido, EUA e outros países também se preparam para a fase de experimentos em seres humanos. Os resultados ainda são preliminares e insuficientes e tem suscitado sentimentos ambíguos: de um lado pesquisadores dos projetos envolvidos, médicos e pacientes pressionam por velocidade e agilidade, de outro lado, cientistas de várias áreas, incluindo bioeticistas, buscam debater as implicações técnicas, ambientais, sociais e éticas envolvidas.
Quando do início do Projeto Genoma Humano em 1990 - o maior projeto internacional em biotecnologia e do qual o Brasil e outros países em desenvolvimento foram excluídos, (Corrêa, 2002)-, muitos acreditavam que ao final a humanidade teria o conhecimento não só da solução para todas as doenças genéticas e adquiridas, mas também a condição de elevar a espécie humana à plenitude de suas capacidades e à perfeição. Seria o grande salto evolutivo da humanidade, depois de 7 milhões de anos desde que nosso primeiro ancestral surgiu na África, (Leakey, 1995). O homem finalmente iria não apenas dominar, mas principalmente, superar a própria natureza. Ao final, treze anos depois (2003), com 99% do código mapeado, algumas conclusões surpreenderam: a quantidade de genes encontrado (aproximadamente 25 mil genes) foi menos de um terço do que se estimava existir; apenas 3% são codificantes, os outros 97% não sintetizam proteínas e a ciência ainda hoje muito pouco sabe sobre o que fazem, que função desempenham, (Ferreira, 2016), chegou-se até a denominá-los por algum tempo de “lixo genético”. A conclusão mais surpreendente foi de que o código genético, diferentemente do que se pensava, não é como um programa de computador em que uma vez conhecidos os comandos e a sequência, seria possível reprogramá-lo a partir de qualquer ponto ou até mesmo programar um ser humano completo a partir do zero.
Quando olhamos as doenças sob a perspectiva dos genes, vemos que existem doenças que são monogênicas (envolvem um único gene, como a Hemofilia A e a Anemia Falciforme) e outras que são poligênicas (que envolvem vários genes, como por exemplo Alzheimer e Diabetes Mellitus). As doenças hereditárias são em sua maioria poligênicas. Também podemos classificar as doenças como monofatoriais ou multifatoriais. Alguns tipos de cânceres são monofatoriais e outros multifatoriais. Como regra geral grande parte das doenças, sejam elas hereditárias ou adquiridas ao longo da vida, envolvem tantos genes e são desencadeadas por uma variedade tão ampla de fatores, tanto internos ao organismo como ambientais que continuam sendo um desafio não apenas a sua compreensão e o desenvolvimento de uma cura, mas principalmente, a sua prevenção.
Para complicar um pouco mais a genética, até bem pouco tempo acreditava-se que os genes eram os únicos responsáveis na definição das características fenotípicas do organismo, características estas que serão transmitidas hereditariamente para as gerações seguintes. No entanto hoje se sabe que a expressão gênica não apenas pode ser influenciada por fatores externos, relacionados ao meio ambiente, sem que o código em si seja alterado, como também pode influenciar a expressão gênicas dos descendentes, ao menos nas primeiras gerações subsequentes: é a chamada epigenética e os efeitos transgeracionais.
Também é bom lembrar que toda modificação nos genes é uma mutação, produza ela uma característica nova, uma adaptação que se revele como uma vantagem evolutiva ou uma doença, uma limitação ou incapacidade para a vida. CRISPR pode ser usada para corrigir uma mutação negativa, pode ser usado para silenciar um gene que expresse determinada característica que não se deseja e pode ser usado para acrescentar uma característica que não existia. As pesquisas em andamento avançam rapidamente nos três sentidos e cada um deles contém peculiaridades do ponto de vista ético. Algumas delas saltam aos olhos, outras são muito sutis e não são facilmente percebidas. Estas últimas em especial, convém olhar com a devida cautela para que no futuro não sejamos surpreendidos com “aquelas letrinhas miúdas no contrato que assinamos sem ler”, afinal, o pior mal é aquele que pode ser confundido com um bem.
Das 8,7 milhões de espécies que se estima existirem hoje em nosso planeta, apesar dos imensos esforços dos taxinomistas, apenas 14% das espécies terrestres e 9% das espécies aquáticas já foram catalogadas. Portanto, a maioria absoluta sequer sabemos quem são e que importância tem para a manutenção do equilíbrio do ecossistema global. Além do genoma humano, quase nada destas milhões de espécies tiveram o seu código mapeado. Ou seja, não apenas não sabemos quem são a maioria absoluta das espécies que existem em nosso planeta, como também não temos a menor ideia de que impacto a eventual introdução de uma modificação genética pode provocar individualmente nas mesmas, ainda que involuntária, quanto mais no meio ambiente como um todo, que aliás já está tão profundamente afetado pelo modo de vida da nossa sociedade contemporânea, (Mora et al., 2011).
Uma expressão curiosa dessa diversidade e pluralidade de vida pode ser vista dentro de nós mesmos. No corpo de um humano adulto jovem, com 1,70 m de altura e 70 kg, estima-se que existem aproximadamente 30 trilhões de células e mais 39 trilhões de bactérias e outros microrganismos, grande parte delas vivendo e compartilhando tarefas metabólicas e benefícios conosco - é a chamada microbiota -, sem essa simbiose construída ao longo de milhões de anos de evolução possivelmente nem elas e nem nós sobreviveríamos.
Estas duas ordens de grandeza, a imensidade de vida fora e dentro do nosso corpo nos leva a uma mesma reflexão em duas dimensões: a do indivíduo e a do ecossistema planetário. A primeira dimensão vai na direção de refletirmos se quando editamos uma célula de um organismo, mormente o humano, estaremos alterando apenas ele próprio ou também a microbiota que nele habita? A segunda dimensão vai na direção de refletirmos se quando editamos os genes um indivíduo, estaremos alterando apenas ele ou também a sua espécie e, se alterando a espécie, estaremos produzindo alterações no equilíbrio do ecossistema? Em sendo essa simbiose, esse equilíbrio afetado, o conhecimento que temos disponível nos permite compreender que impacto isso produzirá em ambos? Caso singular foi a pesquisa feita por Valentino Gantz e Ethan Bier utilizando CRISPR-CAS9: eles introduziram uma pequena modificação num gene chamado yellow (que produz indivíduos de cor amarela), em um macho de Drosophila melanogaster (também conhecida como mosca-da-fruta) e o cruzaram com uma fêmea selvagem que tinha alelo dominante, que produzia indivíduos de cor escura. Como o alelo do macho era recessivo, as fêmeas geradas deveriam ser selvagens, ou seja, de cor escura. A surpresa foi que o alelo do macho mudou o alelo da fêmea, e todas as descendentes eram de coloração amarela. Acabou-se assim com a variabilidade da característica da cor e se este individuo fosse solto na natureza, mudaria toda a espécie. Apesar dessa característica não expressar uma doença e não ter em si nenhuma letalidade, se a mesma fosse importante por exemplo para a camuflagem do inseto contra a ação de predadores naturais, levaria a espécie rapidamente à extinção, (Hebmüller, 2016).
O ato de pesquisar envolve inúmeros desafios, desde o básico e fundamental que é resolver um problema que afeta a sociedade e/ou o meio ambiente, passando pelos inevitáveis problemas de natureza normativa, burocrática e financeira, os de infraestrutura e tecnológicos, até aqueles que são inerentes à pesquisa propriamente dita. Embora todos eles tenham relevância, nos ateremos apenas a dois deles, ainda assim de maneira bastante superficial: as normativas e a práxis da pesquisa com edição gênica. Necessário destacar que este último envolve riscos específicos que dizem respeito ao processo em si (alguns deles transitórios e superáveis à medida em que a técnica vai sendo dominada e outros se revelam intrínsecos a ela e insuperáveis) e que equidistam do resultado, do produto final.
Um dos desafios que mais chama a atenção dos pesquisadores é que CRISPR não é, ao menos até este momento, uma ferramenta de ação rigorosamente seletiva, nem no nível celular, nem no nível do organismo como um todo; uma vez introduzido no organismo alvo, ele pode editar células de maneira não uniforme, gerando o chamado mosaicismo, que é quando um indivíduo passar a ter em seu corpo mais de um DNA. Além disso, a ferramenta eventualmente corta o DNA em local errado, são as chamadas edições off-target. Ambas podem produzir resultados imprevisíveis e potencialmente graves. Uma pesquisa feita em 2015 por LIANG, P. e outros colegas com zigotos tripronucleares (3PN) humanos chamou a atenção não apenas pelo resultado, mas sobretudo pelos aspectos éticos envolvidos. Os pesquisadores pretendiam entender melhor como ocorre a edição de genes através de CRISPR-Cas9 em células humanas. A conclusão foi que a eficiência da correção foi muito baixa, com ocorrências de mosaicismo e muitos cortes fora do alvo, (Liang et al., 2015). O uso de embriões humanos nesta pesquisa desencadeou uma manifestação do Comitê Organizador da Cúpula Internacional de Edição Genética Humana, assinada por alguns dos mais renomados cientistas da área, entre eles a própria Jennifer Doudna e David Baltimore, em favor de uma moratória internacional para o uso de CRISPR em embriões humanos, bem como a promoção de amplo debate com a sociedade acerca dos aspectos éticos envolvidos, entre outras recomendações, (Baltimore et al., 2015). Edward Lanphier, Fyodor Urnov e outros também reconhecidos cientistas publicaram na Nature artigo intitulado “Não edite a linha germinal humana - Modificações genéticas hereditárias humanas apresentam sérios riscos, e os benefícios terapêuticos são tênues”, (Lanphier et al., 2015).
Acerca das edições fora do alvo (off-target), Stephen Tsang, do Centro Médico da Universidade de Columbia e colegas realizaram pesquisa para avaliar tais cortes erráticos no uso de CRISPR em um organismo inteiro. Para tanto utilizaram dois camundongos que receberam um gene de correção de cegueira. O resultado foi a correção com sucesso da cegueira, mas além disso foram detectadas mais de 1.500 mutações não nucleotídicas não planejadas e mais de 100 deleções e inserções maiores. Chamou a atenção também o fato de que os algoritmos preditivos de detecção off-target que normalmente são utilizados pelos pesquisadores não conseguirem detectar estes efeitos colaterais, (Crew, 2017).
Em 2017 Puping Liang, em conjunto com outros os pesquisadores, buscando corrigir a β-thalassemia em embriões humanos, lograram resultados melhores, com redução substantiva dos cortes off-target, utilizando uma nova variante de CRISPR-CAS9 que denominaram de “Editor de Base”, (Liang et al., 2017). Nesta técnica o corte é feito apenas em uma das duas fitas do DNA e substituído apenas uma letra no par de base.
Vale notar que a proposta de moratória sobre pesquisas em linha germinal, marcadamente cautelares em vista dos potenciais efeitos transgeracionais negativos que possam acarretar, como bem salientam alguns cientistas como Gerge Church, pode não ser suficiente para proteger as gerações futuras de nossos erros no presente vez que a linhagem somática poderia sim afetá-las através dos efeitos epigenéticos, (Regalado, 2015).
O uso de CRISPR em pesquisas em linha germinal é um exemplo típico dos problemas que envolvem as questões normativas em nível mundial. De fato, não há uma legislação internacional que regule a pesquisa, seja ela para curar e salvar vidas humanas ou não humanas, para produzir soluções biotecnológicas para a agroindústria e a pecuária, seja ela para a produção de tecnologias que possam ser utilizadas para a produção de armas biológicas, químicas ou de outra natureza. Apesar dos esforços da comunidade internacional nas últimas décadas no sentido de estabelecer padrões éticos de conduta na pesquisa, como a Declaração de Helsinque (1964), a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (2001), da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005) e da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), todos eles tem caráter apenas recomendativo, de adesão voluntária, de modo que o cumprimento ou não destes dispositivos está subjugado às leis e normas internas dos países, que em regra tratam as questões de ética em pesquisa de maneira bastante diversa. Isso tem criado situações complexas e embaraçosas na pesquisa em geral e também com CRISPR. Muitas destas pesquisas são realizadas colaborativamente por pesquisadores de vários países, são as chamadas pesquisas multicêntricas. Ocorre que em cada um dos países participantes a legislação que trata da ética em pesquisa não é igual, alguns nem mesmo a tem, o resultado é que não raras vezes determinadas fases da pesquisa são direcionadas para serem realizadas nos territórios onde a legislação seja mais permissiva ou inexistente. As pesquisas com embriões humanos é um destes casos, a pesquisa com medicamentos é outro bem conhecido pelo seu histórico no continente africano. Em termos globais, o que sobra de efetivo são as propostas de moratória advinda da própria comunidade científica e os esforços no seu interior para criar mecanismos de autoregulação e autocontrole. Neste sentido recentemente dois grupos de cientistas, um sediado nos EUA e outro na Comunidade Europeia, motivados pelas questões bioéticas que envolvem a pesquisa de edição gênica, mormente com CRISPR, vem se organizando e tentando consolidar um movimento de debate em busca de um consenso e quem sabe, um instrumento, uma ferramenta que possa preencher este vácuo regulatório que nem os governos nacionais e nem os organismos internacionais como a ONU tem sido capazes de preencher.
De tudo que foi dito acima, e que certamente despertaram em você leitor várias dúvidas e reflexões, é chegado o momento de pontuarmos rapidamente mais algumas questões de natureza ética que tem frequentado os debates entre cientistas e que a sociedade pode, precisa e deve participar. Elegemos três pontos focais: os problemas inerentes ao processo de Pesquisa & Desenvolvimento; os problemas próprios da técnica CRISPR e os problemas relativos ao uso que se possa dar aos produtos advindos da biotecnologia de edição genética, mormente de CRISPR.
O processo de Pesquisa & Desenvolvimento, em qualquer atividade, é essencialmente a fase de construção do conhecimento aplicado. Nela, hipóteses são testadas, experimentos são submetidos ao confronto exaustivo com a realidade, muitos resultados são descartados até que um seja considerado satisfatório. Como vimos, CRISPR tem problemas como o mosaicismo e os cortes fora do alvo, entre outros, que precisam ser superados para que a técnica possa ser considerada eficiente e segura. O problema surge quando a pesquisa aplicada avança muito rapidamente, antes mesmo de a pesquisa básica ter tido o tempo necessário para preencher as lacunas de conhecimento e alcançado o domínio da técnica. Esta inversão tem potencial para gerar efeitos colaterais que, a exemplo da Talidomida, podem vir a ser percebidos somente muitas décadas mais tarde, com um custo humano inaceitável. No caso de CRISPR, podemos fazer seguinte reflexão: a técnica está sendo aplicada em pesquisas nos mais vários espectros da vida animal e vegetal, desde a edição de vírus e bactérias até os organismos mais complexos. Se considerarmos que há circunstancias relacionadas, por exemplo, a idade, sexo, condições ambientais, etc que podem determinar que algumas expressões gênicas no fenótipo ocorram apenas em idade avançada, como é o caso do Alzheimer, ou do sexo, como o câncer de mama; se considerarmos que existe o risco de propagação desses efeitos indesejados em linhagem germinativa e se considerarmos que o ciclo de vida de determinadas espécies, como a humana, é substancialmente longa e não favorece o estudo e acompanhamento de efeitos tardios ao longo de três ou quatro gerações, há que se refletir sobre se o desenvolvimento acelerado da pesquisa aplicada, da maneira como vem sendo implementada, antes mesmo de se superar os hiatos de conhecimento, representa um benefício na direção da obtenção (diga-se, absolutamente sem nenhuma garantia) da cura de uma infinidade de doenças e na solução para a fome no mundo ou se os riscos próprios do processo são de uma ordem de grandeza tal que seria mais prudente investir primeiro na construção conhecimento, através da pesquisa básica, na integração deste conhecimento com outros advindos das várias áreas que fazem interface e podem contribuir na consolidação de um caminho aceitável, onde os riscos sejam melhor conhecidos e compreendidos, e portanto passiveis de serem controlados, para somente após avançar na pesquisa aplicada.
Podemos dizer que a ferramenta molecular CRISPR trouxe consigo ao menos três fatores diferenciais em relação às demais técnicas de edição gênica em uso: é muito mais fácil de aplicar, muito mais precisa e muito mais barata, o que tem possibilitado o crescimento exponencial da pesquisa no mundo todo, inclusive em laboratórios de biossegurança de Nível 1. Isso tem o lado bom, porque amplia, democratiza e acelerada a construção do conhecimento, mas por outro lado os cuidados com biossegurança podem não ser compatíveis com os riscos envolvidos em cada pesquisa. Se somarmos a esta potencial fragilidade de segurança biológica à já frágil regulação internacional da pesquisa, o resultado é que os riscos de liberação acidental ou proposital de organismos que possam provocar efeitos diretos ou secundários deletérios, seja para os seres humanos, seja para o meio ambiente, se ampliam na mesma proporção. Convém aqui lembrarmos, a título de referência, as imensas dificuldades não apenas estruturais e financeiras dos países e da própria OMS/ONU no enfrentamento da ameaça do Vírus Ebola, mas sobretudo para o desenvolvimento de uma cura ou ao menos um tratamento eficaz. Isto nos faz refletir se a pesquisa com edição gênica, inclusive CRISPR, necessita de um instrumento internacional efetivo de regulação e acompanhamento científico, técnico e ético e, em caso afirmativo, como fazê-lo sem que isto resulte como efeito colateral, em barreiras à Pesquisa & Desenvolvimento.
Há que considerarmos também os riscos relativos ao uso que se possa fazer de CRISPR, sejam eles relacionados ao desenvolvimento de armas biológicas, seja para a construção de uma sociedade baseada numa eugenia negativa, seja para o agravamento de uma estrutura global que privilegia a repartição desigual dos benefícios do desenvolvimento.
CRISPR, mais do que um avanço importante do conhecimento, capaz de produzir o que de melhor a humanidade pode fazer em favor de si mesma e deste pequeno planeta, é um chamamento ao debate e à reflexão acerca de que valores, que ética será capaz de conduzir este enorme potencial do conhecimento humano a um mundo melhor. Precisamos nos perguntar sobre quais são os limites da ciência e da sociedade? O que de fato a ciência pode fazer e o que de fato a sociedade deseja? Que ser humano, que sociedade e que mundo estamos semeando para as gerações futuras? Existe uma fronteira ética que nem a ciência e nem a sociedade devem ultrapassar? Se não formos capazes de construir coletivamente (como sociedade global) estas respostas, que não são fáceis e nem simples, mas são necessárias, corremos o risco de condenar as gerações futuras e o planeta a uma ruptura evolutiva biológica, civilizatória e moral em proporção inimaginável.
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CRISPR: entre a esperança e a agonia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU