04 Novembro 2018
A ascensão e eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República retirou "das salas de jantar" e trouxe ao plano público um pensamento conservador que vinha fermentando no Brasil e encontrou no candidato do PSL seu porta-voz. A avaliação é do professor de ciência política da Universidade de Oxford Timothy J. Power, especialista em Brasil e diretor da Oxford School of Global and Area Studies.
Segundo Power, as mudanças em questões de costumes e direitos sociais nos últimos anos, como o casamento homoafetivo e a introdução de cotas raciais em universidades, tiveram um "efeito colateral": a reação de setores de direita que antes não manifestavam abertamente os seus pensamentos.
"Muitas pessoas se opunham a essas mudanças progressistas, mas não tinham uma voz para dizer isso. Bolsonaro articulava politicamente o que essas pessoas pensavam silenciosamente", disse o pesquisador em entrevista à BBC News Brasil. "Essa rejeição a esses avanços se dava nas salas de jantar, mas Bolsonaro abriu caminho para expressar isso abertamente."
Power estuda o Brasil há mais de 30 anos e é autor de dezenas de livros e artigos sobre o sistema político brasileiro, entre os quais Democratic Brazil Divided (Brasil democrático e dividido) e The Political Right in Postauthoritarian Brazil (A Direita Política no Período Pós-autoritário Brasileiro).
Ainda em 2016, o professor de Oxford já dizia considerar Bolsonaro competitivo e com chances de vitória em contraste com boa parte dos analistas políticos que, até mesmo a poucos meses do pleito, previam uma "desidratação" da candidatura.
Ele sustentava essa visão com o que via como crescimento de uma onda de direita e uma revolta contra a "política tradicional" no Brasil, impulsionada pelos escândalos de corrupção investigados pela Operação Lava Jato.
Power afirma que o PT contribuiu para a eleição do capitão reformado do Exército e declara que o partido terá de se reformular se quiser ter relevância nacional.
A entrevista é de Nathalia Passarinho, publicada por BBC Brasil, 02-11-2018.
Bolsonaro convidou Sérgio Moro para ser ministro da Justiça e ele aceitou. Que consequências isso traz para a Lava Jato?
Acredito que, depois de quatro anos de manchetes e avanços na investigação Lava Jato, ao aceitar esse cargo no Ministério da Justiça, o juiz coloca em risco alguns pontos de legitimidade dessas investigações. Então, me surpreende que ele tenha aceitado tão rapidamente esse convite. O PT vive dizendo, desde 2010, que a Justiça é parcial, que as investigações da Lava Jato tinham por objetivo de acabar com as chances eleitorais do partido em 2018.
Havia um obstáculo grande à eleição de Bolsonaro que era a figura do ex-presidente Lula. Ele foi preso e foi um obstáculo removido por ação direta do juiz Moro. E Bolsonaro venceu. Se Haddad perdeu a eleição por 10 pontos, com Lula teria sido mais competitivo. Agora, poucos dias após as eleições, Moro aceita o convite para ser superministro da Justiça. Isso reforça a narrativa do PT de vitimização pela Lava Jato. Então, coloca em risco a legitimidade das investigações e prejudica os juízes e promotores que vão continuar com as apurações.
E que mensagem Bolsonaro quer passar com a escolha de Moro?
Bolsonaro é um político. Ele diz que não é, mas qualquer político quer chamar para o gabinete os nomes mais aprovados pela população. Poucas personalidades gozam de muita popularidade e é inegável que Moro é um dos nomes mais conhecidos do Judiciário. É natural que seja feita essa sondagem. Então, o que me surpreende não é o convite, é a decisão de Moro de aceitar.
Bolsonaro ganhou a eleição porque existiam duas clivagens no eleitorado. Primeiro, uma rejeição a 'tudo o que está aí', do establishment, da classe política em geral. Ele se apresentava como outsider. Mas a segunda clivagem é o antipetismo, a rejeição ao partido e à figura do ex-presidente Lula. Para muitos antipetistas o Moro era um santo, um herói dessa luta contra o PT. Então, Bolsonaro está, de certa forma, consolidando esse laço antipetista.
A nomeação de Moro não pode significar um fortalecimento da Polícia Federal e do Ministério Público em investigações de corrupção?
É uma hipótese. A Polícia Federal vinha ganhando muita autonomia nos últimos anos. Não precisa de mais um impulso externo. O que Bolsonaro está fazendo ou promete fazer via medida provisória é juntar vários órgãos do governo federal, inclusive o COAF, para o superministério da Justiça.
O Moro é especializado na investigação de lavagem de dinheiro. Mas acho que a Polícia Federal já está bem sem essa necessidade (de reforço de autonomia). A indicação do Moro tem um valor maior simbólico do que operacional.
Que tipo de influência a presença de Moro pode ter na relação de Bolsonaro com os outros Poderes, em especial com o Judiciário e o Supremo?
Estou tentando ver um lado positivo. Acho que a presença do Moro no governo poderia evitar duas coisas. Primeiro, pode vir a evitar ataques diretos à independência do Judiciário e ao Supremo, porque caberia à figura do Moro defender o Judiciário. E talvez possa mudar um pouco o tom do Bolsonaro em relação à polícia e à violência urbana no Brasil.
Bolsonaro propõe um tipo de lei de Talião para o país inteiro. O Moro vem de outra tradição. Pode ser que ele tenha um efeito positivo ao sentar à mesa com outros ministros do governo que adotam uma visão mais linha-dura com relação à atuação policial.
Em 2016, o senhor já dizia que a candidatura de Bolsonaro era competitiva, numa época em que os outros especialistas não acreditavam que ele iria tão longe. Por quê?
Os astros teriam que estar bem alinhados para Bolsonaro se eleger, mas eu acreditava e ainda acredito que o Brasil passa por uma tempestade perfeita: crise econômica muito prolongada, uma crise política que se tornou mais aguda com o impeachment, a crise da corrupção e a crise da segurança pública. Então, todos esses fatores levaram o Brasil a uma crise multidimensional.
Esse tipo de crise favorece o surgimento de uma pessoa que se apresente como outsider. Ele não é um outsider propriamente dito, é um deputado federal desde 1990. Mas, em termos de política nacional, do Executivo, ele é um outsider. Se você era um eleitor brasileiro que queria mandar um basta para a classe política, não havia melhor opção que Bolsonaro.
Mas uma parcela do eleitorado se identifica com as ideias de Bolsonaro.
Sim, outro fator é a rejeição ao politicamente correto, à autocensura das pessoas, aos avanços em políticas sociais e de direitos humanos dos últimos governos. Muitas pessoas se opunham a essas mudanças progressistas, mas não tinham uma voz para dizer isso. O Bolsonaro falava abertamente. Então, muitos eleitores afirmavam que Bolsonaro articulava politicamente o que eles pensavam silenciosamente. É a mesma coisa que os eleitores americanos diziam do Trump. Quando comecei a ouvir esses comentários no Brasil também, percebi que ele teria uma chance de tocar nesse ponto de insatisfação.
O Brasil tinha o que os especialistas chamavam de direita envergonhada, uma direita que não se apresentava como tal publicamente, talvez por causa da memória recente da ditadura militar. Hoje, parece que temos uma direita orgulhosa. Como essa direita surgiu?
Primeiro, surgiu como uma reação à crise de segurança pública. É a versão brasileira da mano dura que a gente observa na América Central, nas Filipinas e em outros países. Isso torna mais legítimo o discurso anticrime. A nova direita acredita que são dois os grupos que prejudicam o Brasil: os criminosos e os defensores dos direitos humanos. Eles consideram os defensores dos direitos humanos como defensores de bandidos. Esse é um discurso do Bolsonaro há muitos anos.
De certa forma, o Bolsonaro inovou esse discurso no Brasil e esses 50 deputados que o seguiram para a Câmara ecoaram esse discurso. Se tornou mais legítimo dizer isso. Segundo, é o backlash (reação negativa) a avanços em direitos raciais, de minorias de gênero e direitos humanos em geral. Essa rejeição a esses avanços se dava nas salas de jantar, mas Bolsonaro abriu caminho para expressar isso abertamente.
A nova direita, que tem voz no PSL e no Partido Novo, vai sentir liberdade de expressar uma nova identidade. E o ponto de referência serão os 13 anos de governo do PT. Esses partidos vão se apresentar como a melhor manifestação de hostilidade a esse período.
Bolsonaro mandou mensagens distintas nas suas primeiras manifestações após a eleição. Ele manteve a crítica forte ao PT e o ataque a parte da imprensa. Por outro lado, disse que vai defender a democracia e as liberdades. O que essas primeiras falas mostram sobre como será o futuro governo?
De todas as candidaturas modernas à Presidência do Brasil, nunca houve uma pessoa menos controlada por marqueteiros do que Jair Bolsonaro. Ele não terceirizou a campanha dele como Lula fez em 2002. Para entrar no mainstream da política brasileira, ele mudou o tom e os símbolos do PT com muito sucesso. Isso foi uma terceirização do petismo para marqueteiros. O Bolsonaro não passou por essa fase.
Os filhos dele são os únicos assessores dele. É uma política familiar. Então, o Bolsonaro não tinha muita orientação e instrução por marqueteiros. Ele agia com base na forma como ele percebia o clima da campanha. Em momentos, ele recuava e elogiava as instituições e a Constituição. Em outros momentos, usava um tom mais agressivo quando se dirigia ao público. É o mesmo tom esquizofrênico do Donald Trump. O que ele fala no comício, retira no dia seguinte. Acho que teremos de nos acostumar com esse comportamento daqui para frente.
Pelo que se viu até agora, há algum indício de que Bolsonaro vá moderar seu tom? Ou vai manter o discurso inflamado?
Acho que a população gosta de políticos mais autênticos, então, quem erra bastante e é intuitivo não é necessariamente uma pessoa que não vai ter aprovação popular. Ele ganhou com folga a eleição e ele vai ser, ao meu ver, um presidente popular e bem avaliado nos primeiros anos.
O que as pessoas admiram no Bolsonaro é o estilo, a comunicação direta, a falta de autocensura. Bolsonaro hoje não deve nada a nenhum cacique partidário. Quem é o presidente do PSL? Quem é o presidente da Câmara que vai condenar o que Bolsonaro disser? Acho que ele vai manter o estilo intuitivo. Vai errar pelo caminho, mas também tende a crescer em popularidade com essa autenticidade.
E o que se pode esperar da relação entre Bolsonaro e Congresso?
Acho que Bolsonaro vai terceirizar a relação com o Congresso para alguns políticos profissionais que ele já está convidando para compor o gabinete. Ele deve se limitar a falar diretamente com a população. A gente já viu esse estilo com outros presidentes. Ronald Reagan era assim. Ele era bom comunicador, falava com a população e focava em princípios bem básicos: família, segurança, soberania nacional. Mas no dia-a-dia de política pública nua e crua, Bolsonaro não deve mexer.
Acho que vai ter uma bifurcação na aprovação do governo e do presidente. As pessoas vão começar a distinguir uma de outra. Uma coisa é o presidente, sua pessoa e sua fala com a nação. Outra coisa é o desempenho do governo e a relação com o Congresso. No primeiro mandato, Lula tinha aprovação 10 a 15 pontos percentuais maior que a aprovação do governo. Com o Reagan era a mesma coisa. Vejo um caminho parecido com Bolsonaro.
Para aprovar reformas impopulares, ele vai ter de lançar mão dos mecanismos tradicionais de negociação, do toma lá, dá cá?
Eu não vejo alternativa. A classe política pode tolerar essa esquizofrenia durante alguns meses ou um ano. A lua de mel funciona durante um tempo, mas pode ser que (sem estímulos) os líderes do Congresso se recusem a aprovar reformas radicais, como a reforma da Previdência.
Qual vai ser o papel do PT agora, como oposição?
Existem dois caminhos. Um deles é o voltado para o passado: focar no impeachment, a que eles chamam de golpe, e na prisão do Lula. A ida de Moro para o Ministério da Justiça confirma para eles a visão de que a Justiça era parcial e eles podem se atrair pela teoria conspiratória. Seria um caminho ruim para o partido. É muito difícil se recuperar de um discurso voltado para o passado.
O outro caminho é olhar para o futuro. PT tem de passar por um período de autocrítica e reflexão para lidar com o antipetismo no eleitorado. Fora do Nordeste, o PT quase não existe como força eleitoral. Ele tem que se perguntar: 'vamos voltar a ser um partido nacional ou vamos ser um partido regional baseado no Nordeste?'.
Cid Gomes e Ciro Gomes dizem que o PT elegeu Bolsonaro. Faz sentido essa afirmação?
O Bolsonaro, durante todo o ano de 2018, estava rezando para ter um segundo turno com o PT. Conseguiu e venceu. Se ele tivesse qualquer outro adversário no segundo turno seria uma eleição muito mais competitiva.
Haddad conseguiu 45% de votos, fruto da rejeição a Bolsonaro e da presença do PT no Nordeste. Mas qualquer outro candidato, especialmente um candidato nordestino, como Ciro Gomes, teria chances maiores no segundo turno.
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O que prevê para o Brasil professor de Oxford que enxergou força política de Bolsonaro já em 2016 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU