15 Setembro 2018
“Não quero mais arriscar a minha vida aqui”, diz Valéria (nome fictício), que fugiu da crise na Venezuela há quatro meses para tentar recomeçar a vida no Brasil. “É lamentável. Mas prefiro voltar para os problemas de lá do que viver assustada e com medo de ser atacada aqui”, afirma a venezuelana à BBC News Brasil, pedindo para não ser identificada.
A reportagem é de Júlia Dias Carneiro, publicada por BBC News Brasil, 13-09-2018.
Valéria decidiu deixar o Brasil após o linchamento, na quinta-feira passada, de seu amigo e conterrâneo José Antonio González, de 21 anos, em Boa Vista, capital de Roraima. Ele estava em um mercado e foi acusado de ter furtado itens das prateleiras, num episódio que resultou em uma dupla tragédia, com sua morte e a do brasileiro Manoel Siqueira de Sousa.
Sob gritos de “pega, ladrão!”, o venezuelano saiu correndo e foi perseguido por um grupo de brasileiros. Manoel Siqueira de Sousa, que estava de bicicleta, conseguiu alcançá-lo e, segundo a Polícia Civil de Roraima, tentou imobilizar o venezuelano. González sacou uma faca e golpeou Manoel no pescoço, ferindo-o fatalmente.
Uma multidão revoltada espancou o venezuelano até a morte, e depois arrastou seu corpo até a frente do acampamento onde vivia – um conjunto de barracas precárias ao lado de um dos abrigos para venezuelanos em Boa Vista, o Jardim Floresta.
O episódio voltou a aumentar a tensão entre brasileiros e venezuelanos em Roraima, apenas três semanas após os ataques de moradores de Pacaraima a acampamentos formados pelos estrangeiros nas ruas da cidade, precipitado pelo assalto e espancamento de um comerciante por um grupo de imigrantes.
A cidade fronteiriça é porta de entrada para os migrantes que chegam ao Brasil por terra. De acordo com a Polícia Federal, de 2015 até agosto deste ano, mais de 75 mil venezuelanos procuraram a Polícia Federal em Roraima para regularizar sua situação migratória no Brasil, com pedidos de refúgio ou residência.
Assim como em Pacaraima, onde a violência levou mais de mil imigrantes a cruzarem a fronteira de volta para o país vizinho, o temor gerado pelo linchamento em Boa Vista levou novas levas de imigrantes a retornarem.
No fim de semana, quatro ônibus enviados a Roraima por uma igreja evangélica de Caracas deixaram a cidade com mais de 200 venezuelanos que viviam no entorno e dentro do abrigo Jardim Floresta, e deixaram o local em meio à tensão.
“As pessoas foram embora muito assustadas, chorando muito. Foram por medo. Não era o que queriam fazer. Era o que viram como alternativa”, conta a Irmã Telma Lage, coordenadora do Centro de Migrações e Direitos Humanos da Diocese de Roraima (CMDH), que atende venezuelanos que chegam ao Estado desde 2015.
“Todo mundo ficou com o coração partido de vê-los sair”, relata.
Após a violência em Pacaraima, o governo enviou reforços da Força Nacional para Roraima e publicou um decreto de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) autorizando a atuação do Exército na segurança pública da fronteira e da capital. Nesta semana, novo decreto estendeu o prazo para permanência das tropas até dia 30 de outubro.
Enquanto isso, o governo de Nicolás Maduro vem fazendo pronunciamentos conclamando venezuelanos a retornarem ao país e afirmando que estão deixando a Venezuela para serem “humilhados”.
De acordo com uma venezuelana recém-chegada ao Brasil, tem se disseminado entre os imigrantes em Roraima a informação de que o governo chavista está oferecendo incentivos. A BBC News Brasil não conseguiu contato com a Embaixada da Venezuela em Brasília nem com o Consulado em Boa Vista para confirmar a informação.
Valéria contesta a versão de que o amigo estivesse roubando e cobra evidências em vídeo. “Há venezuelanos que vieram roubar, mas ele não estava roubando”, afirma. “Ele foi comprar pão, e ainda tentou mostrar o recibo quando começaram a acusá-lo.”
“Não é justo. Viemos para cá atrás de uma vida melhor, para ajudar nossas famílias, e acabamos pagando pelos erros que alguns cometem”, lamenta.
Segundo Valéria, José Antonio chegara ao Brasil havia oito meses buscando trabalho para enviar dinheiro para que a mãe, doente, pudesse comprar comida e medicamentos na Venezuela. Vinha fazendo serviços de jardinagem e morava na rua, no aglomerado de barracas formado no entorno do abrigo. Ela o descreve como um rapaz amigável, prestativo. “Sempre que lhe pediam ajuda ele atendia. Ele era um menino, não merecia essa morte.”
Ela própria chegou ao Brasil há quatro meses, pelo mesmo motivo que “todos os venezuelanos”, segundo diz: fugir da situação de seu país, buscar uma melhor qualidade de vida para sua família e ganhar dinheiro para mandar para casa, ajudando os parentes que ficaram.
Segundo a agência da ONU para Migrações, 2,3 milhões de venezuelanos já deixaram o país, fugindo de uma inflação fora de controle e da falta de alimentos, remédios e produtos básicos.
Valéria vinha conseguindo reconstruir a vida aqui, ganhando diárias como faxineira e vivendo de aluguel com a filha e o marido. Chocada após a morte do amigo, está arrumando as malas para voltar. Já não tem coragem de mandar a filha para a escola, com medo de represálias, e está sempre na expectativa de poder ser “atacada e golpeada” apenas por ser venezuelana.
“Estamos todos aterrorizados de que aconteça algo”, diz.
A Polícia Civil de Roraima abriu dois inquéritos para apurar as circunstâncias de morte do brasileiro e do venezuelano. Em nota, transmite a versão da proprietária do mercado, que teria visto o venezuelano “pegando vários produtos das prateleiras e saindo sem pagar”.
A polícia acrescenta que as investigações iniciais do episódio “revelam que são muito comuns furtos nos supermercados daquela região praticados por venezuelanos e que após a criação do abrigo naquela área dos crimes desta natureza aumentaram exponencialmente”, sem, no entanto, amparar a informação em estatísticas.
Manoel de Sousa, de 35 anos, conhecido como Manel ou Manelzinho, era o caçula de seis irmãos e ganhava a vida como pintor. Sua cunhada, a faxineira Ana Cristina Coelho de Freitas, de 44 anos, afirma que quando ele derrubou o venezuelano, caíram no chão os itens que ele teria roubado do mercado: uma sacola de pão e duas latas de leite condensado.
Ela diz que Manoel morava na mesma rua do mercado, em uma casa simples com quintal aberto e um banheiro do lado de fora, e costumava ajudar venezuelanos que viviam nos arredores. Deixava tomarem banho no banheiro externo, descansarem sob a sombra de sua mangueira e oferecia água gelada.
“Ele tinha pena, né? Ajudava eles demais e acabou sendo morto pelo venezuelano. Acabou indo embora. Tomamos um choque. Ele era querido pelo bairro todo”, diz Cristina.
“E aí a população foi para cima e deu em cima do venezuelano. Eram mais de 20. O venezuelano não deveria ter matado o meu cunhado, nem ninguém deveria ter matado o venezuelano. Todos nós somos seres humanos”, diz.
A família vai participar de uma manifestação convocada para o próximo domingo pedindo um fim à violência em Boa Vista.
Segundo a Irmã Telma Lage, os dias seguintes às duas mortes foram de muita tensão no acampamento em volta do abrigo Jardim Floresta, onde José Antonio vivia.
Na madrugada de sexta para sábado, venezuelanos relataram que o acampamento foi atacado, e Irmã Telma reforça a versão, afirmando que uma moto passou pelo local fazendo disparos contra as barracas. A tensão continuou a aumentar no sábado, com a comoção gerada pelo enterro de Manoel de Sousa. Após o cortejo, ela diz que um grupo de brasileiros fez um protesto em frente ao abrigo.
“Gritavam ‘assassinos!’ ‘justiça!’, dirigindo-se às pessoas no abrigo. É claro que a situação é muito crítica, muito delicada, mas como podem acusar ou pedir justiça àquelas pessoas? Não se pode condenar um povo todo por causa de uma pessoa”, diz.
No fim de semana, ônibus enviados por igrejas da Venezuela chegaram à região do acampamento de madrugada e saíram levando cerca de cem pessoas, no sábado, e outras 104, no domingo. De acordo com o G1, os veículos teriam sido fretados pelo governo Maduro.
Ao ver os ônibus partindo, Irmã Telma diz que a sensação é de que o Brasil está falhando. “Quando não conseguimos garantir a segurança de pessoas que estão sob a nossa tutela, o Brasil está falhando”, afirma.
Ela lembra que o Brasil não é o país que mais recebe venezuelanos, estando longe de países como Colômbia, Peru e Equador. “Não estamos fazendo o nosso dever de casa como país que acolhe”, considera.
O cientista político Bruno Magalhães, pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, ressalta a importância de se filtrar os números e não confundir o fluxo de entrada no país com o número de pessoas que ficam.
A ONU estima que pelo menos 50 mil venezuelanos teriam se fixado no Brasil até abril deste ano, o que representa 2% do êxodo do país. Mais de 870 mil estariam na Colômbia, e cerca de 400 mil, no Peru.
Sobre os novos episódios de violência em Boa Vista, Magalhães destaca a reação desmedida dos moradores, que não apenas lincharam José Antonio González, como exibiram seu corpo diante do acampamento de venezuelanos, em sinal de ameaça.
“Por que está ficando tão habitual usar qualquer fagulha para invadir abrigos e expulsar pessoas?”, questiona.
Para Magalhães, a situação pode estar relacionada a uma “xenofobia latente” – em que a população se sentiria autorizada a cometer violência contra imigrantes por causa de precedentes estabelecidos pelo Estado. Ele lembra a tentativa da Polícia Federal de deportar 450 venezuelanos do Brasil no fim de 2016, que acabou sendo impedida pela Justiça.
De janeiro a novembro daquele ano, entretanto, o órgão já deportara 445 venezuelanos “após cobrança da sociedade roraimense”, como noticiou à época a DW Brasil. “Agora tivemos pessoas de Pacaraima expulsando venezuelanos. De onde tiraram esse exemplo?”, pondera.
Major Tássio de Oliveira, chefe da Comunicação da Operação Acolhida – ação conjunta do governo federal, ONGs e organizações internacionais – afirma que os episódios de violência causam preocupação. Mas diz que o trabalho da Força Tarefa Humanitária não pode ser pautado pelo clima de tensão.
Oliveira diz que duas linhas de ação prioritárias no momento convergem para reduzir a vulnerabilidade dos imigrantes que têm vivido nas ruas. A primeira é aumentar o número de vagas em abrigos, que de cerca de cinco mil deve passar a 6.500 com a construção de dois novos espaços; e a segunda é o foco na política de interiorização de venezuelanos para outras regiões do país.
A recente onda de violência em Pacaraima levou o governo a acelerar os planos. Até a semana passada, 1.507 venezuelanos foram transferidos para outros Estados. Nesta semana, outros 392 seguem em dois voos para cidades de Esteio e Canoas, no Rio Grande do Sul. À medida que esses imigrantes deixam os abrigos, as vagas são liberadas para outros vivendo nas ruas.
“Estamos trabalhando para dirimir os efeitos dessa crise humanitária, principalmente em Roraima, que é o Estado mais afetado. É claro que não vamos resolver os problemas em um passe de mágica, mas com planejamento e organização a situação está melhorando aos poucos. Estamos tirando as pessoas das ruas e obtendo resultados positivos com o processo de interiorização. Continuamos trabalhando”, diz Oliveira.
Pablo Mattos, oficial de relações institucionais da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), em Roraima, diz lamentar o episódio de violência e se solidarizar com as vítimas e seus familiares, mas afirma que por ora não haverá mudanças na estratégia de ajuda humanitária em Roraima.
“É difícil opinar porque cada pessoa tem sua razão específica para retornar ou não (para o seu país). Claro que sempre há coisas que podem ser melhoradas, mas a resposta brasileira tem sido um modelo de boa prática para a região, tanto na fronteira e no acolhimento quanto na interiorização”, considera.
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‘Estamos todos aterrorizados’, diz amiga de venezuelano linchado em Boa Vista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU