30 Agosto 2018
Após Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus, a teóloga francesa Anne-Marie Pelletier pede que repensemos radicalmente nossa visão da instituição.
"Não é uma questão de entrar na lógica das relações de poder, que de fato está muito ativa dentro da Igreja. Pelo contrário, significa que nós, como cristãos, devemos conhecer o que demandamos da instituição, a fim de cumprir fielmente a missão confiada por Cristo", escreve Anne-Marie Pelletier, teóloga e biblista francesa, professora do Collège des Bernardins e vencedora do Prêmio Ratzinger 2014, em artigo publicado por La Croix International, 29-08-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Neste momento em que as profundezas da vergonha parecem sem fundo e porque o Papa Francisco chamou a nós, o "povo de Deus", precisamos acabar com o nosso silêncio!
Em primeiro lugar, precisamos fazer isso para enfatizar alto e claro, particularmente para aqueles cristãos que se sentem devastados pelos eventos, que há apenas UM sacerdote ou “sumo sacerdote”, como a Carta aos Hebreus diz, e como igualmente o expressa a Lumen Gentium.
E este Sacerdote nunca estará faltando na Igreja, não importa quais provações possam surgir. Vamos todos reler o que o Evangelho de João diz sobre o “Bom Pastor”!
A instituição - particularmente o sacerdócio ministerial - não é a coroa sagrada da Igreja.
Devidamente entendida e dentro de seus limites, a Igreja institucional é um serviço humilde para a atualidade, responsável pela presença sacramental de Cristo para o povo batizado.
Isso é completamente diferente do que o mundo poderia pensar tendo como base para o seu entendimento os "príncipes da Igreja".
Esta é a questão principal. Está aí a necessidade fundamental hoje de reexaminar radicalmente a nossa eclesiologia.
Na opinião de muitos, uma das causas dos crimes de pedofilia e abuso de autoridade é uma maneira muito deficiente, desequilibrada e arrogante de entender o poder sacerdotal.
Uma teologia tradicionalmente piramidal da Igreja tem reconfortado a identidade do padre como um cristão da elite que domina as outras pessoas batizadas, mantendo a jurisdição sobre as vidas dos outros.
O senso de onipotência que emana disto inevitavelmente leva a excessos e remove quaisquer barreiras ao jogo das fantasias de algumas pessoas.
Essa realidade agora precisa ser corajosamente desafiada. Primeiro nos seminários, mas também pelos cristãos que nem sempre estão isentos de ter uma visão sacralizada do papel sacerdotal, que o Evangelho de fato repudia.
Nesse sentido, não podemos mais nos apegar a uma eclesiologia desenvolvida e implementada exclusivamente por padres.
Precisamos imaginar uma Igreja com várias vozes que evidentemente incluirá as vozes das mulheres. Elas têm um relacionamento diferente com o poder do que os homens, o que poderia inspirar de forma útil a igreja institucional.
Da mesma forma, também é necessário dar uma olhada mais de perto na questão do celibato eclesiástico. Como podemos falhar em ver que sua justificativa está quase sempre intimamente ligada à visão problemática da Igreja sobre a sexualidade, quaisquer que sejam as perspectivas que a “teologia do corpo” possa oferecer?
Como ignorar o fato de que o celibato é adornado com um prestígio quase místico que certamente reforça o papel perigoso e exagerado do padre, enfatizando ainda mais sua singularidade na comunidade cristã?
Da mesma forma, a cegueira de uma parte da hierarquia eclesiástica à gravidade dos crimes cometidos é uma realidade muito perturbadora que também precisa ser questionada.
De qualquer forma, parece que todos os membros da instituição são necessariamente afetados em maior ou menor grau pelos atuais eventos, embora seja verdade que esses eventos estejam ligados a uma ordem eclesial problemática, o que ajuda a incentivar uma lei de silêncio culpável.
Sendo assim, e dadas as manobras intra eclesiais que estão contribuindo para a crise, nós, como leigos, precisamos afirmar fortemente que sentimos uma grande necessidade do ministério do Papa Francisco.
No atual mundo incerto e ameaçador, ele permanece a mais alta autoridade moral capaz de tomar uma posição diferente das perigosas ideologias e políticas nacionalistas de retirada e exclusão que continuam alimentando o ódio no mundo e obscurecendo o futuro da comunidade humana.
Para a Igreja, o Papa Francisco também continua a ser o pastor essencial, que, com excepcional firmeza, dá consistência ao sacerdócio dos batizados. Em Gaudete et Exsultate, ele fez isso novamente, abrindo o conceito de santidade, permitindo-nos redescobri-lo como a vocação de todos e inseparável do batismo.
Ele é também a pessoa que insistiu com vigor que a misericórdia é toda a mensagem do Evangelho, o que permitiu que o seu discurso transcendesse as fronteiras da Igreja.
Portanto, a misericórdia é o que devemos implementar em nossa relação com o mundo em lugar de uma estreiteza moralizante que desfigura a mensagem do mundo católico.
Não é uma questão de entrar na lógica das relações de poder, que de fato está muito ativa dentro da Igreja. Pelo contrário, significa que nós, como cristãos, devemos conhecer o que demandamos da instituição, a fim de cumprir fielmente a missão confiada por Cristo.
Seremos corajosos o bastante para lembrar aqueles que navegam em águas turbulentas que, se pedirem a renúncia do Papa Francisco, será necessário também “descanonizar” o Papa João Paulo II por seu relacionamento com o padre mexicano Marcial Maciel, e os Legionários de Cristo?
É claro que há um problema!
É verdade que a obstinação do Papa Francisco desde a sua eleição em invocar e comunicar “a alegria do Evangelho” pode parecer totalmente irreal no presente. Mas é isto que nos permite mergulhar fundo o suficiente no Evangelho, exatamente, para enfrentar a situação atual.
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Repensando a Igreja com múltiplas vozes. Artigo de Anne-Marie Pelletier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU