12 Julho 2018
Apesar das virtudes, autor Michael Haag não escapa da especulação ao narrar história irrecuperável.
O comentário é de Reinaldo José Lopes, jornalista, publicado por Folha de S. Paulo, 11-07-2018.
Maria Madalena
• Preço R$ 59,90 (344 págs.)
• Autor Michael Haag
• Editora Zahar
• Tradução Marlene Suano
Qualquer coisa que se queira escrever sobre Maria Madalena no século 21 é, em certo sentido, um exercício de pareidolia — aquele fenômeno psicológico que às vezes leva pessoas perfeitamente razoáveis a enxergar monstros ou santos num pedaço de pão ou nas nuvens do céu.
Com base no Novo Testamento, só é possível concluir três coisas (não muito informativas) sobre a moça: 1) Ela foi uma seguidora de Jesus; 2) Usava seus recursos para financiar as atividades do Nazareno; 3) Era considerada uma das primeiras testemunhas da ressurreição dele. Como escrever uma biografia de mais de 300 páginas a partir de colheita tão pobre?
É claro que o historiador britânico Michael Haag, autor do livro "Maria Madalena - Da Bíblia ao Código Da Vinci: Companheira de Jesus, Deusa, Prostituta, Ícone Feminista", sabe de tudo isso.
Inevitavelmente, portanto, sua obra não é um relato da vida da discípula de Cristo, uma história que, por definição, é irrecuperável para nós, mas uma análise de como os últimos 2.000 anos da religião e da cultura no Ocidente a usaram como um espelho, ou como uma tela na qual projetar expectativas e preconceitos.
Uma coisa é inegável: a estreia histórica de Madalena tem algo de iconoclasta. Junto com um pequeno grupo de outras mulheres mencionadas nos Evangelhos, como Joana e Salomé, ela teria rompido com a submissão feminina frequentemente exigida pela tradição judaica para seguir o Nazareno pelas estradas da Galileia e da Judeia. Essa participação das mulheres no movimento de Jesus era, por si só, um dos aspectos revolucionários da pregação dele.
Com a expansão do cristianismo primitivo pelo Mediterrâneo, porém, o papel de relevo das mulheres, ainda notável nas cartas do apóstolo Paulo (ativo até a década de 60 d.C.), diminui sensivelmente, e Maria Madalena desaparece do registro histórico.
E, no entanto, ela parece ressurgir com força total a partir do século seguinte, com a gênese do movimento gnóstico cristão.
Baseado na ideia de que o conhecimento secreto (e não a fé na morte e ressurreição de Jesus) é o caminho para a salvação, o gnosticismo elegeu Madalena como sua guru, retratando-a como a discípula favorita de Jesus, contra a qual se contrapõem Pedro e outros apóstolos supostamente obtusos, incapazes de compreender o que seria a verdadeira mensagem de Cristo.
Tudo isso, vale ressaltar, provavelmente não vem de informações históricas confiáveis sobre essas figuras, mas é, em essência, elaboração teológica e polêmica política entre os diferentes grupos cristãos.
O bom resumo da ascensão e queda do cristianismo gnóstico e do movimento dos cátaros (seita da França medieval que pode ser vista como um renascimento do gnosticismo e foi esmagada por uma cruzada) é o ponto forte da obra.
O irônico é que, apesar dessas virtudes do livro, o próprio Haag está longe de escapar completamente da tentação da pareidolia.
Em uma douta discussão sobre as variantes de manuscritos dos Evangelhos, por exemplo, ele aponta um detalhe intrigante: algumas das cópias mais antigas da Bíblia em grego, como o Códice Sinaítico e o Códice Vaticano, datados do século 4º d.C., não mencionam o povoado de Magdala, suposta origem do nome Madalena. Em vez disso, o nome usado nesses manuscritos é Magadan.
A partir desse enigma linguístico, ele propõe que o apelido de Maria viria do aramaico magdal, "torre". Jesus, conhecido por dar apelidos sonoros a seus seguidores (como Boanerges, "filhos do trovão", para os irmãos Tiago e João, ou Pedro, "a Rocha", para Simão), teria dado a ela o título de "a Torre" ou mesmo "o Farol", por analogia com os faróis que guiavam os barcos no mar da Galileia.
O epíteto seria mais um indício da importância da mulher no movimento de Jesus. Vale dizer que tudo isso não passa de especulação levemente baseada em filologia.
Da mesma forma, embora conheça os (fortes) argumentos históricos contra a ideia de uma relação conjugal entre Cristo e Maria Madalena, o escritor parece não resistir à tentação de deixar uma portinhola aberta para essa ideia —afinal, raciocina ele, se Jesus gostava de comer bem, beber vinho e de boa conversa, por que evitaria se casar?
Para esses pontos, vale ingerir o proverbial grão de sal antes, embora o livro, no geral, seja interessante e iluminador.
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