12 Mai 2018
“Apesar de vir de um ambiente aristocrático, Carlos [Mugica] soube escutar e soube ver. E justamente por isso soube se deixar converter pelos pobres. O que prometia ser uma promissora ‘carreira eclesiástica’ (foi secretário particular do cardeal) ficou de lado quando começou a colocar os pés no barro”, escreve o padre argentino Eduardo de la Serna, coordenador do Grupo de Padres em Opção pelos Pobres, em artigo publicado por Página|12, 11-05-2018. A tradução é do Cepat.
Carlos Mugica (Fonte: Página/12)
Há 44 anos, no dia 11 de maio de 1974, no bairro portenho de Villa Luro foi assassinado Carlos Mugica, um padre comprometido com os pobres, que chamava de “meus irmãos”. Era “estreada” a Triple A, uma espécie de esboço dos grupos de tarefas da ditadura, assim como também foi o rodrigazo e o levante do brigadeiro Orlando Capellini. O Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo (MSTM) havia sido dissolvido no ano anterior; seu assassinato freou qualquer tentativa de reunificação. O grupo de Capital Federal publicava um livro, El Pueblo, donde está?, e uma obra musical com a letra de Mugica, La Misa para el Tercer Mundo, acabava de ser gravada pelo Grupo Vocal Argentino. As duas obras praticamente ficaram em caixas ou baús ou foram queimadas. Começava uma longa noite.
Mas os pobres da “31” primeiro, junto com aqueles que tinham sido e continuaram sendo “relocados” ("Fuerte Apache”, por exemplo) mantiveram fresca sua memória, unida a do grupo de amigos e amigas de Carlos, padres, leigos e leigas. Desde então, até nossos dias, muitas obras voltam uma vez e outra a resgatar sua figura: a “missa para o Terceiro Mundo” foi reeditada, publicaram-se biografias, obras e até monumentos a sua pessoa. É claro que “negacionistas” há em todas as partes e a cada tanto reaparecem algumas escassas e falsas vozes que repetem que não foi a Triple A a responsável pelo assassinado de Mugica. Os dois demônios também existem na Santa Madre.
O grupo de “pastoral de villas”, como eram chamados então, também precisou enfrentar o avanço das botas: muitas vilas foram retiradas à força, com escavadeiras e fuzis, e muitos padres acompanharam “seus irmãos vileiros” ao exílio suburbano, outros conseguiram opor resistência ao despejo. A “31” resistiu uma vez e outra; a memória de Carlos continuava vigente, como quando o menemismo voltou a tentar e vários padres começaram uma greve de fome (1996).
Apesar de vir de um ambiente aristocrático, Carlos soube escutar e soube ver. E justamente por isso soube se deixar converter pelos pobres. O que prometia ser uma promissora ‘carreira eclesiástica’ (foi secretário particular do cardeal) ficou de lado quando começou a colocar os pés no barro, seja no chaco de Santa Fé ou no bairro 'Comunicaciones' (na realidade, em Retiro havia então várias vilas, uma ao lado da outra; a maior parte foi esvaziada para construir um terminal de ônibus e os depósitos de contêineres). A memória de Carlos permitiu a resistência.
O MSTM se propôs não falar como grupo de assuntos “intraeclesiais” (o celibato sacerdotal, um deles, tinha então grande transcendência), pois pretendiam expressamente – como se dizia – “ser voz dos que não têm voz” e que suas vozes não se confundissem, por exemplo, com uma espécie de “sindicato de padres”. Isto não impedia que a hierarquia os questionasse veementemente. A conferência Episcopal, um importante grupo de padres e até o arcebispo os enfrentaram decididamente (dom Aramburu, mais de uma vez, insistiu para que Mugica deixasse seu ministério e inclusive lhe exigiu que guardasse silêncio pelos ditos que certa imprensa atribuiu a Mugica, ainda que este nunca pronunciou). Quando – pouco antes de seu assassinato –perguntaram a Mugica se não tinha medo de que o matassem, disse: “O que me dá medo é que o arcebispo me retire da Igreja”, e quando Héctor Botán, então encarregado da “pastoral de villas” foi conversar com o arcebispo Aramburu sobre o assassinato, este lhe disse “agora não vá me dizer que Mugica não era montonero”. Ser voz dos sem voz o levava a entrar em confronto com os autores de seu silenciamento, sejam estes poderes políticos, econômicos e inclusive eclesiais.
Ao se deixar converter pelos pobres, Mugica viu com outros olhos o peronismo, e após ter participado “do júbilo orgiástico da oligarquia” pela derrubada de Perón em 1955, chega a voltar com o General no avião que o traz de regresso a Buenos Aires, em 1972. Seu compromisso com o peronismo não o levou a aceitar cargos partidários (rejeitou a proposta de candidatura a deputado pela Capital Federal), mas não lhe impediu de acompanhar o que acreditou que era o melhor para os pobres e – por sua vez – o que “a partir do próprio povo” se dizia e onde estava. Carlos tinha claro que “os pobres são o coração do povo”. É curioso que alguns questionaram o compromisso político de Mugica, mas não fizeram o mesmo com outros, como o próprio santo Cura Brochero, por exemplo.
Embora não fosse o porta-voz e nem o delegado do MSTM, Carlos era uma das vozes mais contundentes do grupo. Era a voz que precisava ser calada; e assim fizeram... mas fracassaram.
Sua voz segue ressoando, “agora, mais do que nunca”; e o eco de sua voz deseja ainda hoje continuar sendo silenciada; a direita – ontem e hoje – não suporta que se escute a voz dos pobres e que alguns a queiram repetir.
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Carlos Mugica. Uma voz para os de voz silenciada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU