27 Março 2018
Seus olhos se iluminam. “Isto é emocionante”, sussurra com a voz embargada. Vira o rosto e começa a caminhar lentamente, em silêncio, acariciando o muro construído com 30.000 placas de pórfiro da Patagônia, onde foi esculpido algo mais que o nome das vítimas do terrorismo de estado que assolou o país entre 1969 e 1983. Ao chegar ao Parque da Memória, alguns minutos antes, um senhor o reconhece e, diante da visão atônica e incrédula dos que o acompanhávamos, abraça-o e começa a chorar desconsoladamente. “Pablo Iglesias, encontrar você aqui, em um 24 de março, é incrível”, disse, enquanto suas lágrimas se fundiam em um mágico gesto de irmandade e solidariedade.
A reportagem-entrevista é de Pablo Gentili, publicada por Página/12, 26-03-2018. A tradução é do Cepat.
Iglesias sente o que sentiu desde o início de um dia que provavelmente recordará por muitos anos: as fronteiras entre Espanha e Argentina se tornam imperceptíveis quando lutam por seus direitos, por sua dignidade e quando estão dispostos a edificar seu futuro exigindo Memória, Verdade e Justiça. Para milhões de argentinos e argentinas, o último dia 24 de março foi histórico. Para Pablo Iglesias, também. Poucas horas após aterrissar em Buenos Aires, foi abraçar as Mães da Praça de Maio. Taty Almeida o recebeu e lhe ofereceu o que seria um dos momentos mais emocionantes do dia, ao expressar sua admiração por Podemos e pelos jovens militantes que constroem a democracia na Espanha e na Argentina. Ali, na sede da Mães da Praça de Maio Linha Fundadora, Pablo gritou seu primeiro “30.000 detidos-desaparecidos: Presentes. Agora e Sempre”. Gritaria muitos mais, levantando o punho, banhado em lágrimas.
Em que Podemos contribuiu com a democracia espanhola?
Podemos é a tradução eleitoral mais completa de uma mudança na estrutura cultural da Espanha, que se torna visível a partir das mobilizações de 15 de novembro de 2011. O 15M é o sinal da crise de legitimidade de um sistema político que, durante 35 anos, havia demonstrado ser enormemente estável e, em alguns aspectos, exitoso. A crise econômica que se inicia em 2008 faz com que boa parte dos consensos que tinham funcionado como base desse sistema político desmoronem.
O 15M é um movimento de impugnação a este sistema e à elite de políticos e banqueiros que o sustentavam. Nosso papel foi importante na hora de utilizar as caixas de ferramentas que, há muito tempo, carregávamos como militantes da esquerda espanhola, com olhos latino-americanos, entusiasmados com os processos que eram vividos na América Latina, desde fins dos anos 1990.
Além disso, a experiência que alguns de nós adquirimos na televisão, em programas como La Tuerka, nosso trabalho em técnicas de comunicação política, assim como o fato de eu me tornar analista de muitos programas televisivos, permitiu que ensaiássemos uma nova linguagem política que pretendia transcender a narrativa tradicional da esquerda. Também, claro, conectar-se com essa nova estrutura cultural que o 15M havia colocado sobre a mesa.
A emergência de Podemos fez saltar pelos ares um sistema bipartidarista, no qual o Partido Popular e o Partido Socialista se alternavam no poder. Por outro lado, mudou as estruturas de governo na Espanha. Nós, junto com outras forças aliadas, estamos governando as principais cidades do país: em Madri, em Barcelona, e também em Cádiz, Zaragoza, em La Coruña e em comunidades autônomas. Conquistamos mais de 5 milhões de votos nas eleições gerais. Ganhamos as eleições na Catalunha e em Euskadi [País Basco], o que reconfigurou o mapa eleitoral espanhol em apenas quatro anos. Erramos algumas vezes e nem sempre conseguimos os objetivos que havíamos proposto. Contudo, contribuímos para reescrever a história política contemporânea de nosso país.
Pablo caminhou junto com as Mães e Avós pela Avenida de Maio. Observa com admiração a procissão multitudinária que lentamente se aproxima da Praça. Olha com surpresa quase hipnótica os cartazes e faixas, as imagens, performances e expressões artísticas que transformam esta marcha em um canto da vida. As colunas, as bandeiras e os lenços brancos se multiplicam em cada passo, exigindo justiça pelos que não estão e pelos que virão. “Aqui, respira-se luta”; “30.000 companheiros não puderam vir”; “30.000 vezes justiça”; “As vítimas dos voos da morte não se afogaram. Santiago Maldonado, também não”; “30.000 somos todos”; “Nenhum genocida solto”. Pablo recebe abraços, tiram milhares de fotos dele. Não para de sorrir. Não para de dizer que não consegue acreditar. Não para de se perguntar como é possível que, 42 anos após o golpe, a cada dia 24 de março e a cada dia do ano, o povo argentino decida gritar que não está disposto a esquecer.
Na praça, irá se encontrar com Estela de Carlotto e lhe repetirá, com respeito e admiração, que está muito emocionado. Caminha de braço dado com Estela, misturando-se entre os convidados e representantes dos organismos de direitos humanos. “Gostamos muito de você e apoiamos suas lutas”, disse-lhe Estela, apoiando-lhe a mão no ombro. E acrescenta: “Vocês vão dar continuidade quando nós já não estivermos, lá e aqui, vão dar sequência”. “Não, vocês sempre estarão”, disse Pablo, enquanto acaricia o rosto de Estela e volta, pela milésima vez, a chorar. Antes de subir ao palco da praça e ser aplaudido pela multidão, encontra-se com Sergio Maldonado. Quer lhe dizer mil coisas, mas sua garganta estremeceu. Abraça Sergio assim como gostaria de abraçar Santiago.
Podemos tem muitos argentinos ou filhos de argentinos entre seus quadros. Alguns de seus principais dirigentes são argentinos, como o eurodeputado Pablo Echenique, que é rosarino, e Gerardo Pisarello, vice-prefeito de Barcelona. Além disso, muitos de seus militantes ou dirigentes são filhos de desaparecidos. O próprio Gerardo é filho de Ángel Pisarello, um destacado advogado radical, desaparecido em 1976. Contudo, além disso, Podemos talvez seja a única formação política europeia que faz uma reivindicação e avaliação positiva do peronismo. E os que as fazem não são os argentinos que participam do Podemos, mas, sim, dirigentes e intelectuais espanhóis que expressaram seu reconhecimento ao peronismo com movimento político nacional e popular, inovador e democrático.
Um peronismo espanhol. Não parece um pouco raro tudo isto?
(Sorri) Para nós, a América Latina foi um laboratório político. É verdade que alguns companheiros foram capazes de fazer uma investigação muito leiga do que significou o peronismo. Uma contribuição sobre o popular que era muito difícil de compreender para uma esquerda que normalmente se movia nas geografias ideológicas da Guerra Fria. Sem dúvida, nesta compreensão, tem ajudado muito a leitura da obra de Ernesto Laclau. Há especialmente dois companheiros que são os peronistas do Podemos: Iñigo Errejón e Rafa Mayoral. Curiosamente, nenhum dos dois é argentino. Em suas aproximações chegaram a leituras diferentes, a partir da admiração e do estudo da articulação política do popular na Argentina. Esta visão teve muita influência entre nós que sempre buscamos fórmulas teóricas que nos permitam superar os bloqueios e dificuldades da esquerda tradicional. A escola argentina foi fundamental para nós. Garanto a você que eu retorno desta viagem com um pedaço cada vez maior da Argentina no coração e em minha capacidade de compreensão.
Hoje, 24 de março, você viveu um dia muito especial e emocionante. Como foi este dia?
Tocou-me muito emocionalmente. Eu sou neto de um condenado à morte. Meu tio avô foi fuzilado. Meu pai esteve na prisão. Minha mãe militou na clandestinidade. Desde pequeno, com meu pai, a Argentina era uma referência política e cultural. As primeiras canções que eu escutava cantar com sua guitarra falavam da Argentina, da ditadura, da repressão. Depois, quando comecei a militar, uma de minhas primeiras companheiras era argentina. Aos 14 anos, a Argentina já era para mim uma referência política e emocional enorme. Além disso, era um país que irradiava testemunhos e mensagens que serviam para nos compreender e compreender nossa realidade. O primeiro filme que vi, quando garoto, e que me trouxe o que representava a repressão, foi La noche de los Lápices, de Héctor Olivera. Não havia um filme parecido a esse na Espanha, onde também havia ocorrido uma brutal repressão.
Depois de todas essas experiências, chegar agora à Argentina foi uma oportunidade política e emocional que vivi com o coração na garganta, a cada minuto. Há uma relação política e humana entre Argentina e Espanha que ainda não desenvolvemos suficientemente. Fico muito ofendido todas as vezes que escuto as elites de meu país mencionarem a América Latina com discursos que expressam uma patética nostalgia do colonialismo.
De que modo?
Há uma relação entre o popular, uma relação na qual Martín Fierro e Dom Quixote se encontram. Mas, também, uma relação política de exílios, de idas e voltas, exilados republicanos espanhóis que acabam na Argentina, exilados da ditadura de Videla que chegam na Espanha, exilados econômicos, muitos galegos e de outras regiões que chegam na Argentina. Tudo isto faz com que entre nossos dois países haja vínculos de irmandade muito especiais. Na verdade, não entendo como não vim antes.
O que mais lhe marcou no dia de hoje?
Quando escutava “30.000 companheiros e companheiras desaparecidos: Presentes”, não pude deixar de pensar nos milhares de espanhóis e espanholas que continuam enterrados nas valas de meu país. Não posso deixar de pensar na imensa dívida da Espanha com a memória histórica e com a memória democrática. E no muito que a Argentina ajudou a Espanha nesse sentido. Hoje, vi um povo reivindicando sua memória, mas com projeção de futuro. Hoje, vi que isto não é apenas o retrato de um momento obscuro e terrível da história passada, mas também algo educativo, que tem a ver com a consciência das novas gerações. Tem a ver com esses meninos e meninas com seus jalecos brancos, visitando o Parque da Memória. Com eles, que são os herdeiros da luta pelo direito à verdade e à justiça. Esta é uma tarefa pendente que temos na Espanha.
Antes, falamos de renovação política. Essa vontade de renovar não só se expressou no surgimento do Podemos, como também em uma força extremamente conservadora como é Cidadãos.
Absolutamente. Se déssemos uma aula sobre o conceito de “revolução passiva” de Antonio Gramsci, Cidadãos poderia representar um conceito muito útil para que nossos alunos entendessem do que se trata. De fato, Cidadãos existia desde muito tempo atrás, mas com uma composição muito modesta, de âmbito catalão, como força contrária ao independentismo. Depois do 15M, o dono do Banco Sabadell sustenta que é necessário ter um Podemos de direita, um Podemos dos bancos. Isso é Cidadãos. Uma força política muito lampedusiana: é necessário mudar algo na política espanhola para que nada mude. Algo que possa se associar com o significante “renovação”, com o significante “nova política” ou “transparência”, mas que não gere medo. Algo que represente a necessidade de mudar algumas coisas, mantendo intocável o status quo.
Sempre se ataca as forças progressistas e de esquerda por sua suposta incapacidade de apresentar propostas concretas para enfrentar os problemas que preocupam as pessoas. Entretanto, quando se analisa a atuação legislativa do Podemos, observa-se que vocês apresentaram muito mais projetos que o PP e Cidadãos juntos. Também mais projetos que o Partido Socialista. No entanto, isto não livrou vocês da acusação de que o Podemos só faz críticas e denúncias ou que só apresenta uma visão ideologizada das coisas. Como enfrentam isto?
Nós já somos governo. Administramos cidades importantíssimas como Madri e Barcelona, cujos orçamentos são muito maiores que os de alguns ministérios e de algumas comunidades autônomas. Onde nós governamos, os resultados podem ser vistos. Nós geramos superávit, nós pagamos as dívidas, nós administramos nossas cidades, deixando-as muito mais atrativas para o investimento nacional e estrangeiro. Inclusive, com os critérios de gestão e eficácia que definem nossos adversários, com suas próprias regras, nós os superamos, governamos melhor. Demonstramos que somos uma força que não só é capaz de vencer as eleições, que não só é capaz de formar governos, como também de governar bem, com resultados econômicos, sociais e culturais inquestionáveis. E se governamos bem em cidades, em comunidades autônomas, também podemos governar bem o país.
Para alcançar este objetivo, além de governar bem, precisarão enfrentar o poder dos meios de comunicação.
Sim, é verdade. No entanto, embora todos saibamos que o árbitro está comprado, a melhor estratégia para jogar a partida talvez não seja ficarmos o tempo todo denunciando que o árbitro está comprado. A partir de uma realidade óbvia como esta, que a estrutura de propriedade dos meios de comunicação é a que é, que a realidade dos meios de comunicação públicos e privados é a que é, saímos para jogar na quadra convencidos de que temos que vencer a partida. Isto implica, por uma parte, uma política de meios alternativos criativa e audaz. As redes sociais são cada vez mais importantes, assim como desenvolver a capacidade de comunicação dos agrupamentos políticos. O partido político pode se tornar um meio de comunicação e, ao mesmo tempo, podemos reforçar espaços de comunicação alternativos, procurando dirigir bem nossas intervenções nos meios de comunicação tradicionais.
Como atuam?
Temos percebido que vamos muito melhor quando fazemos intervenções ao vivo, a partir dos meios de comunicação. Porque ao vivo, ainda que às vezes procurem tornar as coisas difíceis para você, o espectador escuta e recebe sua mensagem de forma aberta. Sempre há muito mais dificuldades para se editar, ocultar ou modificar o que você disse. Por isso, temos que treinar e trabalhar muito nos poucos espaços que nos abrem. Sabemos que esses espaços serão muito menores que os de nossos adversários políticos, mas devemos assumir que, ainda que seja difícil, contamos com a vantagem de ter razão no que estamos dizendo.
Qual seria a tradução prática desse conceito?
Continuamos pensando que é mais fácil convencer dizendo a verdade, que convencer mentindo.
Portugal é o único país da Europa que hoje tem um governo de esquerda. Isto foi possível graças a uma aliança política ampla, baseada em acordos e princípios mínimos, mas imprescindíveis para enfrentar a direita e reconstruir democraticamente o país. Por que isto não foi possível na Espanha?
Nós tentamos até o final. Há algumas especificidades da conjuntura espanhola que complicaram esta possibilidade. O Partido Socialista português teve algo acima de 30% dos votos e realizou um acordo com dois partidos, o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda, que tinham em torno de 10%. Não acordaram um governo, mas, sim, um programa de governo. Quem governa é o Partido Socialista. O PC e o Bloco lhe dão apoio parlamentar. Concordamos com o governo português e gostaríamos de poder fazer algo parecido na Espanha com o Partido Socialista. Acontece que a força eleitoral do Partido Socialista e a do Podemos é muito parecida. Continuamos convidando o Partido Socialista a fazer uma moção de censura ao governo de Mariano Rajoy, na qual nós votaríamos no candidato socialista à presidência do governo, mediante um acordo com forças políticas catalãs que nós também estivéssemos de acordo em fazer. No entanto, o Partido Socialista, até o momento, preferiu que governe a direita, que chegar um acordo conosco.
O Podemos sabe que para governar deveremos entrar em acordo com um partido que não temos nada a ver em muitas coisas. Por isso, precisamos de um programa que, assim como no caso de Portugal, estabeleça de forma clara nossos acordos. Em definitivo, assim como fizemos acordos com o governo de algumas cidades e em algumas comunidades autônomas, podemos fazer acordos para governar o país. Acreditamos ser importante que se reconheça que os votos do Podemos não podem valer menos que os do Partido Socialista. Estaremos dispostos a fazer um governo de coalizão em torno de um programa comum.
No sábado [24/03], enquanto visitava o Parque da Memória, Pablo Iglesias sustentou atônito: “Tenho a idade de muitos dos meninos e meninas que foram sequestrados pela ditadura argentina, a idade dos netos e netas recuperados”. Pablo Iglesias nasceu em 1978 e completará 40 anos no dia 17 de outubro.
Figura rara na política espanhola, Iglesias e seus companheiros do Podemos derrubaram a muralha que as elites constroem para proteger seus privilégios: convencer as pessoas que de aqueles que defendem os interesses de uma casta de ricos indolentes podem defender também os interesses e os direitos dos mais pobres e desamparados. Assim, com o impulso do chamado movimento dos indignados, tomaram a política por assalto, a partir das universidades, rompendo um traço negativo que, com persistente frequência, parece acompanhar os intelectuais quando decidem representar o povo.
Se é raro que um intelectual de esquerda possa ter êxito na política, é muito mais que tenha êxito como comunicador. Pablo Iglesias ganhou fama em programas televisivos de debates ou entrevistas, como Fort Apache e La Tuerka.
É tímido e retraído. Fala de forma pausada e muito suavemente. Às vezes, sua voz é imperceptível. No entanto, diante das multidões possui uma oratória poderosa e vibrante.
Sua agenda no país inclui reuniões com personalidades políticas e dos direitos humanos, visitas a organizações e um encontro com expatriados espanhóis, além de sua participação na mobilização do dia 24. Ali foi aplaudido.
A Faculdade de Jornalismo e Comunicação Social da Universidade Nacional de La Plata lhe concederá, nesta segunda-feira [26/03], seu prestigioso Prêmio Rodolfo Walsh. Às 12h30 pronunciará sua primeira conferência do dia na capital provincial, onde será recebido pela deputada Florencia Saintout, decana da Faculdade.
À tarde, Nicolás Trotta, reitor da Universidade Metropolitana da Educação e o Trabalho, UMET, lhe concederá o título de Doutor Honoris Causa da instituição, uma distinção que já foi recebida por dirigentes como Lula, Pepe Mujica e, na última sexta-feira, por Rafael Correa. Na cerimônia, que começa às 18h, na UMET, também receberá o Prêmio Latino-Americano e Caribenho de Ciências Sociais do CLACSO. Pablo Iglesias visita o país com uma ampla delegação de dirigentes do Podemos e da fundação partidária 25M. Será na UMET, na terça-feira, 27, onde acontecerão as Jornadas de Cultura com Memória, coordenadas por Federico Severino, diretor da Fundação 25M.
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"Para nós, a América Latina foi um laboratório político". Entrevista com Pablo Iglesias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU