10 Março 2018
Em metrópoles segregadas, possível antídoto: uma psicanálise capaz de promover a circulação criativa e coletiva de libido; de instigar relações de engajamento na transformação, mediados por bons encontros, bons convites.
O artigo é de Daniel Guimarães, da Clínica Pública de Psicanálise, publicado por Outras Palavras, 08-03-2018.
Daniel Guimarães é integrante da Clínica Pública de Psicanálise, editor do site TarifaZero.org e ex-militante do Movimento Passe Livre. Nascido em Florianópolis, mora há dez anos em São Paulo.
Ainda pensando no que escrevi nos últimos artigos (aqui o primeiro), e que renderam uma entrevista ao Le Monde Diplomatique, sobre a hipótese de impactos psíquicos negativos em situações de isolamento – neste caso o isolamento espacial de moradores e moradoras da periferia a cada vez que as tarifas no transporte público aumentam –, recebo de um colega militante do Movimento Passe Livre uma notícia, publicada num site canadense sobre transporte público. Pedi a outro colega, como eu ex-militante do movimento, que a traduzisse. Pensei na mágica que é esta matéria ter aparecido agora. Esse meu amigo tradutor, um pouco mais cético, acredita ter mais a ver com a “mágica” dos algoritmos invasores do facebook. Mas, sei não, chegou via o outro colega, que sequer facebook usa! Estariam o facebook e seus cálculos onipresentes se intrometendo em nossas comunicações inconscientes? Deixa isso pra lá, por enquanto. A matéria, que relaciona mobilidade na cidade com saúde psíquica, diz, entre outras coisas, o seguinte:
Eliminar o preço da tarifa como barreira para se locomover pela cidade pode melhorar a saúde mental de idosos, reduzindo a solidão e a falta de participação na vida social, sugere um estudo no Reino Unido que acompanhou mais de 18 mil pessoas por mais de uma década.
Pesquisadores descobriram que o aumento do acesso ao transporte coletivo com tarifa zero levou a um crescimento de 8% de usuários entre pessoas mais velhas, e um declínio de 12% em sintomas de depressão entre aquelas pessoas que passaram a utilizar o sistema de transporte sem ter de pagar a tarifa.
Entre os sintomas de depressão que passageiros e passageiras reportaram terem diminuído estavam o “não aproveitamento da vida”, dificuldades para dormir, sentimento de infelicidade, solidão, tristeza, falta de motivação e sensação de que tudo demandava enorme esfroço, de acordo com relato da equipe da pesquisa na revista acadêmica Journal of Epidemiology and Community Health.
É certo que muitos fios soltam-se a partir dessa argumentação e merecerão atenção mais dedicada em outros textos. Por exemplo, o importante levantamento de dados que o Movimento Passe Livre São Paulo vem fazendo sobre a reestruturação destrutiva do transporte na gestão Dória, responsável por cortes significativos nas linhas de ônibus. Neste caso específico da notícia enviada pelo meu amigo, por exemplo, pensemos sobre a relação entre cidade, produtividade e população. Nossas cidades-mercado não são pensadas por e para pessoas que não estejam em um nível de alto rendimento produtivo. Crianças, loucos, velhos, pobres, estão fora das salas de reunião, de planejamento e execução. A vida social ao redor do mercado descarta como mercadoria ultrapassada todas essas pessoas. O estudo acima, pelo jeito, descreve efeitos revitalizantes para pessoas mais velhas que passam a ter o direito ao transporte e usufruem dele. E se pudesse ser assim para todos? E se políticas públicas gerais tivessem efeitos tão expressivos na saúde psíquica da população? E se essas pessoas mais velhas pudessem participar, ao lado das crianças, dos pobres e dos loucos, do planejamento espacial da cidade? Que efeito intrapsíquico e intrapsíquico-social-grupal isso traria? Por que não se permite produção de políticas públicas assim?
Lembro-me do título que o Antônio Martins, editor do Outras Palavras, sugeriu para o primeiro artigo: “Pulou a catraca e foi ao psicanalista”. E se não existisse tarifa, nem catraca? E se o psicanalista estivesse mais perto? E se a vida desse menos motivos para procurarmos psicanalistas? Bom, aí o buraco do sofrimento também é mais embaixo. Tema para outra sociedade lidar.
Além disso, trazendo para o texto anterior e para nossa questão local, brasileira e megalópoles apodrecidas, é preciso pensar os desencadeantes que fazem cidades terem centro e periferia. O que existe no centro e o que não existe na periferia? Por que essa distribuição não-espontânea no espaço é levada em consideração na descrição das classes sociais? Quais experiências são vividas de forma distinta por conta dessa distribuição não-espontânea e quais suas consequências intrapsíquicas individuais e coletivas? Por que não existem equipamentos públicos de excelência nas periferias? Por que começam a des-existir equipamentos públicos de excelência também no centro? O que acontece quando o sujeito que sofre, não só, mas também pelo isolamento e falta de perspectivas, não consegue chegar até os equipamentos públicos de saúde que ainda existem? Por que não existem dispositivos públicos de saúde psíquica na periferia? Bons espaços para poder não fazer nada, contemplar, com qualidade, sem perseguições, batidas, toques de recolher? Quais as relações entre o que é ideologicamente ofertado, induzido mesmo, e depois frustrado de forma que, também ideologicamente, o indivíduo seja culpabilizado por tais frustrações? Nesse meio de campo tem muito jogo pela frente ainda.
Françoise Dolto (1908-1988), psicanalista francesa, diferencia isolamento de solidão criativa e regenerativa. Ela percorreu um caminho de forte interesse pelas transformações psíquicas das crianças desde o começo da vida. Pediatra de primeira formação, sua atenção muito radical para as crianças que sofriam – ou para os pais que sofriam a partir de suas ansiedades em relação às crianças – a levou para esse lugar clínico que pensou as formas processuais da construção do psiquismo. Lançando mão de Henri Lefebvre, eu chamaria agora de produção do espaço psíquico. Esse é outro ponto a desenvolver em futuros textos: as diferenças que fazem Lefebvre variar suas concepções afetivas e políticas desde a noção de direito à cidade, passando pelo direito à vida urbana renovada, até chegar na produção do espaço. Uma ideia muito sintonizada com Dolto, que via, em todos e todas, desde sempre e independente da situação, um sujeito capaz de se fazer, em relação com o outro; e que era capaz também de dizer coisas do tipo, “o autista não é aquele que não sabe se comunicar conosco, nós é que não sabemos como nos comunicar com essa pessoa”.
Enfim. Na manhã deste sábado, dia 25, enquanto estou redigindo esse artigo, me deparei com o seguinte trecho de um livro dela, chamado justamente Solidão, e que recomendo muito para psicanalistas e para não-psicanalistas.
Sobre essa rede co-carnal imaginária, a memória antecipadora guia a dinâmica do desejo para a procura de uma repetição conforme ao funcionamento das necessidades do corpo do indivíduo da espécie. A satisfação repetitiva dessas necessidades não dá satisfação ao sujeito do desejo, a percepção do prazer não pode fixar-se se uma variante nova de percepção, não lhe acrescentar um elemento surpresa, significado para seus sentidos pela realidade, diferindo em algo de suas fantasias, o que estimula sua função simbólica a ligar essa descoberta no tempo do sentir-se de seu corpo a uma percepção sutil no espaço, simultaneamente percebida. Esse encontro sincrônico constitui um significado que dá significância ao desejo, dando-lhe um referencial de confiabilidade para esse novo sentido que orienta o sujeito a conservar sua lembrança como fantasia e a tender de novo ao seu reencontro na realidade. Assim, de fantasia de encontro a realidade nova em cada encontro, a rede de significantes simboliza para o sujeito ao mesmo tempo o sentir-se de seu corpo individualizado, cujas potencialidades ignoradas ele descobre, e os outros com quem ele desenvolve uma rede de linguagem.
Circulação criativa e coletiva de libido, seja onde for, estabelecendo novas relações entre si e o social. Relações de engajamento em processos transformativos, mediados por bons encontros, bons convites. Aí está a fantasia de encontrar a realidade sentida como algo que lhe pertence e algo sobre qual é também responsável. Transformar o mundo que nos forma, como canta a banda hardcore Colligere. É nesse ponto que paro, para continuar, num próximo texto, noutra encruzilhada: quando convocarei Françoise Dolto, Cornelius Castoriadis e Hélio Pellegrino para conversar sobre como a psicanálise pode contribuir com as transformações sociais de forma libertadora, ainda que — e isso é muito importante — não tenha um projeto particular nem para a sociedade como um todo, nem para as pessoas que se aventuram a procurar um psicanalista.
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A clínica pública e a produção do espaço psíquico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU