06 Fevereiro 2018
"Acredito que 'Comum', neste caso, neste país, é uma palavra que traz mais perdas do que ganhos associativos. É uma palavra que, a mim, soa como apaziguadora, como se pudesse sugerir um elemento mínimo de igualdade num país radicalmente desigual" escreve Daniel Guimarães, integrante da Clínica Pública de Psicanálise, editor do site TarifaZero.org e ex-militante do Movimento Passe Livre, em artigo publicado por Outras Palavras, 03-02-2018.
É bastante conhecida a ideia de que um dos pontos nos quais se ergue um trabalho analítico é a associação livre. Aposta numa espécie de perda de controle do pensamento conscientemente planejado, fissura por onde algo não previsto ganha espaço na fala e produz efeitos transformadores no sujeito que disse e naquele que escutou, testemunhando o que foi dito, fazendo daquilo uma lembrança coletiva. Bom, isso aqui é um texto, então não posso abrir mão do pensamento minimamente planejado. Mas os acontecimentos sociais interferem no planejamento, assim como formações do inconsciente interferem naquilo que julgávamos ser capazes de controlar por uma certa fantasia ideal de consciência.
Sigo assim essa aproximação com o Outras Palavras, comentando a experiência da Clínica Pública de Psicanálise a partir de acontecimentos sociais. Não é uma má ideia em absoluto, afinal, é nessa encruzilhada que estamos. Numa mesma semana vimos a maior liderança da esquerda brasileira ser condenada por um tribunal bem pouco sintonizado com a palavra “justiça”, vimos a polícia militar de São Paulo acentuar a repressão a uma manifestação do Movimento Passe Livre (repressão em escalada desde 2015) e processos de corrupção contra lideranças da direita serem arquivados.
Estamos numa situação em que a aliança entre estado e mercado está mais livre, com menos obstáculos. O Estado mínimo é o estado judicial e policial, que garante a continuidade da circulação de capital, enquanto bloqueia a circulação de pessoas desejantes. A tarifa do ônibus é R$ 4,00, mas as bombas e balas de borracha são tarifa zero. Manifestante algum paga antes de ser atingidos por elas. Em São Paulo não é mais permitido se manifestar.
Isso produz uma sensação de que não há diferença alguma entre o poder público e o mercado. Sensação perigosa, que nos faz flertar com o abandono das vias institucionais. Pois me pergunto como seriam coletados os impostos dos mais ricos se não pudéssemos utilizar de um instrumento com esta capacidade. De onde sairiam os recursos para reduzir a brutal desigualdade que, segundo a ONG Oxfam, fez apenas 1% da população, o topo do topo da pirâmide, se apropriar de 86% das riquezas geradas pelo trabalho da população entre 2016 e 2017. Por que haveríamos de deixar os ricos em paz e apostar apenas em formas de financiamento que passam por fora desse bolo que cozinhamos?
Um breve parêntese: me chama a atenção como o nosso radar de esquerda só captura movimentos da própria esquerda. Há quanto tempo não fazemos leituras sobre as forças e a capacidade de organização da direita? O esquerdocentrismo (vamos chamar assim por um instante) nos deixou míopes. Um olha a fraqueza do outro e nenhum olho sobre as movimentações dos setores conservadores interessados na vida total de mercado e no fim de qualquer processo democrático. Talvez para disfarçar o sentimento de impotência? Afinal, não há revolução alguma na ordem do dia. Se tivesse, provavelmente não teríamos força para sustentá-la. Para poder mudar o que quer que seja no quadro das coisas — eu chamaria assim: ampliar as possibilidades de sonho e vida popular de uma geração, sem expectativas sobre o que virá depois — também se enfrenta uma série de barreiras, muito antigas e poderosas. Isso faz com que o petismo não seja mais como em 1982 e faz com que a extrema-esquerda não pegue em armas, mas faça passeatas por políticas públicas, mesmo que verbalize radicalmente essas ações. O lado de lá é poderoso, mas ainda achamos que é satélite do Planeta Esquerda.
A questão que coloco aqui então é o que significa “público”, palavra que sustentamos no nome de nossa clínica não sem motivo. Como fazer para que público seja conceituado e praticado pela população Invertendo prioridades, como se dizia antigamente, recuperando essa palavra que se tornou uma tática a serviço de uma estratégia de mercado, anti-pública, portanto, como na própria Vila Itororó.
Insiro abaixo alguns trechos sobre essa questão do texto “O direito à cidade psíquica: a Clínica Pública de Psicanálise”
A Clínica Pública de Psicanálise fica na Vila Itororó. Canteiro Aberto, nas encruzilhadas entre o Bixiga, a Bela Vista e a Liberdade. Bairro de contradições, da classe média e dos cortiços, e de forte vida de rua. A Clínica é um pouco a consequência de um trabalho anterior de análise de militantes na Escola Nacional Florestan Fernandes, a escola de formação do MST, e chega ao Canteiro Aberto a partir do trabalho da artista Graziela Kunsch e sua relação com os moradores e moradoras da Vila expulsos/ removidos/ retirados à força ou por negociação. As famílias foram saídas para que aquele lugar viesse a existir não mais como moradia, mas para fins culturais, seja lá o que isso signifique. Transformação violenta e sem escuta na gestão Serra/Kassab e que ganhou novo estatuto na gestão da Secretaria de Cultura de Haddad, o que representou uma mudança de qualidade, ainda que em profunda contradição. De um espaço “cultural” de mercado de consumo, se bem o entendi, passou a ser pensado como um espaço público em aberto, um galpão utilizado de forma mais espontânea do que artificialmente construída – ou melhor, construída para um uso espontâneo e comunitário. A rigor, passava por fora do radar de prioridades daquela prefeitura e, talvez por isso mesmo, pode se tornar um espaço pré-figurativo num mundo sem futuro, apontando o que poderia/ deveria vir a ser o futuro centro cultural, uma vez que as casas da Vila estejam restauradas. Um lugar onde crianças jogam bola e andam de skate, coletivos propõem atividades diversas, sempre gratuitas por definição. Um futuro centro cultural sendo feito e pensado, criado, vivido, no agora. No sentido de que o povo é quem faz a montagem, o povo é quem faz o setting. Como ponto de partida, a Clínica seria um espaço de acolhimento para os ex-moradores e as ex-moradoras, para que pudessem se reencontrar, falar a respeito da mudança em suas vidas, pudessem desabafar, elaborar, quem sabe até, a partir dali, se re-organizar para lutar pelas suas antigas casas ou por novas formas de habitar o local. Em nome do “público”, foram expulsas. Em nossa dimensão de público, então, faríamos o caminho inverso, acentuando sua presença. Assim como Breuer – interlocutor de Freud no momento anterior ao processo que fez chegar à psicanálise – pensou seu tratamento nos anos 1880: aquele pensamento que fora silenciado, reprimido, separado da consciência e retornara como sintoma, agora seria enunciado, para que o sintoma fosse reconhecido. Se o sintoma social não for desfeito, apostamos, ao menos, que a transformação do sofrimento em história falada, não esquecida, evite o adoecimento inconsciente passado geração após geração.
A maior parte das família vive hoje espalhada em três prédios tipo CDHU, em apartamentos de pouquíssimos metros quadrados, sem espaços para brincadeira ou passeio ou o que mais a vida demandar. Pessoas que conviveram por décadas e cresceram juntas, agora estão separadas. A Clínica foi originalmente pensada como um espaço para que aquela história de mais uma vitória do mercado sobre a vida social não fosse esquecida. Dessa ideia chegamos a outras. Passamos a pensar a Clínica também como um espaço para militantes de movimentos sociais – pessoas que lutam por uma vida pública socializada e são reprimidas por forças ditas públicas – e para todos e todas na forma de um plantão nas manhãs e no começo das tardes de sábado. Uma proposta abertamente política, de fazer da psicanálise canteiro aberto de trabalho de elaboração para as vítimas de violência do Estado e do mercado. Uma forma de pensar a dimensão pública como espaço se não de reparação, ao menos de explicitação das contradições da nossa vida social.”
“Pública é a palavra de ligação. Público, conceito em disputa, ao mesmo tempo desgastado e em aberto. O deputado Rogério Marinho, do PSDB, relator da ‘reforma’ trabalhista, disse que o “excesso de tutela do Estado prejudica gestantes”. Ives Gandra Junior, presidente do Tribunal Superior do Trabalho, diz que trabalhadores podem se automutilar caso as indenizações por acidentes no ambiente do trabalho sejam “altas”… O sistema público de saúde está sob ataque, ao lado de tudo o que é da ordem do coletivo, comunitário. As praças públicas de São Paulo estão em processo de privatização. Os espaços de decisão política cada vez mais impossíveis de serem acessados, ao ponto de desistirmos gradativamente de ocupá-los. Talvez esteja próximo de se realizar o sonho de Margaret Thatcher, primeira-ministra inglesa nos anos 1980.
Conhecida também como Dama de Ferro, “Maggie” quis fazer do neoliberalismo não apenas uma forma tática de reajuste político que prioriza as leis do mercado em detrimento do Estado de bem-estar social, mas algo a transformar a alma das pessoas. A ponto de se tornar uma nova racionalidade que nos deforma, que altera a subjetividade e o jeito de governar, produzir e gerir os recursos, como argumentam Dardot e Laval, em A nova razão do mundo, livro que historiciza a construção do neoliberalismo desde a década de 1930, ironicamente apoiado na institucionalidade do Estado. Isso se desdobra no ideal da pessoa como empresa de si mesma, em concorrência permanente e incansável com as demais, fragilizando os laços sociais, esgotando as energias vitais e responsabilizando o indivíduo, na medida de seu próprio esforço, pela sorte e o azar do sucesso na vida, independente das circunstâncias históricas, de classe, de raça, de gênero.
O fim da história, neste mundo aparentemente sem futuro, é a impessoal e inconsciente forma empresa como referência para todas as demais relações – de amor, de trabalho, de saúde, de fé. Tudo garantido juridicamente por uma grande empresa responsável por todas — o Estado; organizado agora mais do que nunca como uma agência reguladora e não um mecanismo de equilíbrio das diferenças econômicas artificializadas pela lógica do mercado, cujos efeitos produzem menos sociedade e mais barbárie, como já foi dito há muito tempo.
O que significa, então, retomar, ressignificar a palavra “pública” e colocá-la como mediação entre Clínica e Psicanálise? Essa palavra que pode se referir ao mesmo tempo como a instância responsável pelo cuidado da própria população que a criou e sustenta. Uma forma de auto-cuidado, auto-preservação ativa, que mantém a dimensão de existência social, geração após geração. Público é o mesmo que Estado? Este mesmo Estado regulador da racionalidade neoliberal? Não. Mas o Estado ainda suporta a existência de aspectos de “não-mercado” e, num país como o Brasil, de raízes fortes coloniais, escravocratas, de desigualdades colossais, não me parece termos o privilégio agora de abrir mão de ampliar os aspectos públicos dentro do Estado.
Público significa ser de todos e todas? Isso, por consequência, pode justificar, por exemplo, a expulsão das famílias da Vila Itororó daquele espaço que agora será “de todos”? Público significa achatar as singularidades, ofertando serviços (como o linguajar do mercado se insere por todas as brechas!) equânimes para pessoas cujas demandas são diferentes? Poderíamos optar pela palavra Comum, ou Comunitário? Antonio Lancetti, psicanalista cuja história de luta pela saúde pública exerce forte influência sobre nossa Clínica, em seu livro Clínica Peripatética fez uma ponderação crítica ao termo “comunitário” justamente pelo traço “unitário”, nivelador, enquanto “Comum” abriria amplas perspectivas de compreensão e de co-existências. “Comum” também vem sendo utilizado como conceito de uma nova forma de instituir a democracia neste mundo distópico. Dardot e Laval definem o comum como “o público não-estatal, que garanta o acesso universal através da participação direta dos usuários na administração dos serviços”, que supera a divisão entre usuários e funcionários.
Mas a partir da aproximação entre o que estou chamando de aspectos públicos dentro do Estado e do público não-estatal dos franceses, há algumas ponderações que gostaria de fazer, pela escolha da palavra “público” e não “comum”. Acredito que “Comum”, neste caso, neste país, é uma palavra que traz mais perdas do que ganhos associativos. É uma palavra que, a mim, soa como apaziguadora, como se pudesse sugerir um elemento mínimo de igualdade num país radicalmente desigual.
Acredito também que o conceito explora muito pouco a dimensão econômica. Como podemos, no Brasil, abrir mão de um instrumento capaz de captar recursos e, através dele, inverter as prioridades de sempre, como se dizia durante o governo Erundina em São Paulo no fim dos anos 1980? Outro dia um rapaz veio até a Clínica e disse que, por muitos motivos diferentes, com variações e significações emocionais distintas, ele só podia estar aqui por ter o direito ao transporte garantido pelo passe livre estudantil. Política pública popular conquistado com luta, que responsabiliza, um pouco mais do que antes, os mais ricos pela sustentação da vida social.
Isso aponta para outra semelhança no que os autores franceses chamam de Comum e o que defendo como aspectos públicos do Estado: um circuito de participação política transformadora ativa, de baixo para cima. Há considerações a fazer sobre isso do ponto de vista clínico, com a cautela que a clínica demanda. A participação das pessoas que nos procuram no fazer da clínica pode acontecer de variadas formas. Desde a simples aceitação do convite de vir até a Clínica falar sobre a vida, realizando conjuntamente conosco esse momento analítico, essa situação analítica, até contribuir material-afetivamente para sua existência, ainda que não pela troca mediada pelo dinheiro. Como outro dia uma paciente o fez, ao nos trazer fatias de bolo para que nos alimentássemos no intervalo dos atendimentos. Ou quando um menino, que também vai até a clínica, desenhou comigo um campo de futebol de botão, para que jogássemos uma partida, e levou para sua casa o papel-campo e os próprios botões. A participação aqui parece requerer tempo, tempo para que o sujeito expresse sua relação com o cuidado deste espaço ou mesmo expresse um não querer cuidar dele, atacá-lo, divergir mesmo indo, sustentando algumas contradições internas e a própria independência. O tempo é da maior importância para instituir uma cidade, uma sociedade, uma realidade psíquica.
Nenhuma dessas ideias é nova, é bom que se destaque isso, para não cairmos novamente no discurso de mercado das novidades. Sem levar em consideração formas consistentes de redistribuição das riquezas acumuladas por muito poucos a partir do trabalho da maioria, não acredito ser possível instituir uma nova sociedade realmente democrática. E por ora, ao que me parece, não temos, independente de nosso pensamento mágico, de nosso sonho, outras instituições com a força suficiente pra faze-lo que não o Estado. Contradições.
Minha aposta é que possamos repensar, pela psicanálise, a singularidade dentro do comunitário-solidário, e que a esfera pública é a única capaz de dar sustentação e recursos para garantir a perpetuação desta experiência no tempo. E há algo de especial em uma proposta de transformação das coisas públicas que surge de uma experiência coletiva independente e comunitária, de baixo para cima; que não espera ou depende da sensibilidade e habilidade dos ocupantes provisórios do espaço governamental, sempre inseguro e sob suspeita. Aqui há uma prática instituinte, no sentido que Castoriadis o pensou, quando defendeu a existência de instituições a serviço da autonomia, no lugar das instituições a serviço do mercado e da burocracia. Para que não tenhamos de começar tudo sempre do zero, ou menos do que isso; para não depender apenas dos recursos libidinais desejantes – ou dos seus poucos recursos econômicos que sobraram após longas jornadas de trabalho mal remunerado – dos sujeitos ativos no processo, não devemos instituir formas redistributivas de arrecadação de recursos para custear trabalhos como esse, por exemplo?
Um espaço de trabalho psíquico, artístico, criativo, instituinte do que, já sendo, pode vir a ser a esfera pública popular, a partir do conhecimento dos efeitos deste mundo na vida psíquica compartilhada e trabalhada entre analista e analisando. Um fazer que trabalha no aqui e agora do sofrimento ou da alegria dos que nos procuram. Produzimos um momento e um espaço público de cuidado com o interesse de expandi-lo, talvez até mesmo a constituir, ou reconstituir, o sentido, o afeto público como um objeto interno que hoje não é mais tão facilmente reconhecido. A quantidade de pessoas que nos procuram revela a necessidade dessa expansão, a sua importância, a sua relevância como contribuição para a experiência de vida das gerações que agora vivem e das que virão. É uma forma de fazer que definiria como, tomando de empréstimo uma fala do cineasta Eduardo Coutinho, materialismo mágico.[1]
[1] “A pessoa se completa no que diz”, da série Encontros, da editora Azougue.
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A Psicanálise, o Homem Neoliberal e o Público - Instituto Humanitas Unisinos - IHU