29 Janeiro 2018
Chacina de Fortaleza segue um padrão macabro: como boa parte dos homicídios no país, ocorreu em uma área pobre da cidade, vitimando sobretudo jovens e, em sua maioria, negros e pardos.
A reportagem é de Yan Boechat, publicada por Deutsche Welle, 28-01-2018.
Passava da meia noite quando o grupo de homens armados com coletes táticos, fuzis, pistolas e balaclavas apareceu no Bairro de Cajazeiras, uma área pobre da periferia de Fortaleza. Surgiram de três carros, estacionados nas proximidades de uma casa de shows popular por ali, o Forró do Gago. Chegaram atirando. A primeira vítima foi um motorista de um aplicativo de transporte que levava uma passageira para a festa que agitava a rua Madre Teresa de Calcutá na madrugada do último sábado (27/01). Ordenaram que o homem saísse do veículo e o executaram sem nada dizer.
A passageira tentou fugir, mas também foi atingida. Em seguida, caminharam 50 metros atirando em qualquer pessoa que estivesse na rua. Um vendedor de cachorro quente foi morto na porta da casa de shows, e seu filho de 12 anos, que o ajudava, atingido na perna. Os homens entraram no Forró do Gago atirando a esmo, escolhendo as vítimas aleatoriamente. Após 10 minutos de tiroteio, mais 12 pessoas estavam mortas e outras dez feridas. Foi a maior chacina da história do Ceará, um estado que vive uma epidemia de violência sem precedentes em sua história.
Apesar de inédita em sua dimensão, a chacina de Fortaleza segue um padrão macabro na espiral de violência sem controle que matou mais de 60 mil brasileiros apenas no ano passado e dizimou mais de meio milhão de pessoas ao longo da última década. Como boa parte dos assassinatos no Brasil, ela ocorreu em uma área pobre da cidade, vitimando em sua maioria jovens e, provavelmente, negros e pardos.
Assim como em todo o país, os crimes estão ligados, em diferentes estágios, à disputa pelo controle territorial entre facções criminosas que nacionalizaram suas ações a partir do Sudeste, principalmente em direção aos estados do Norte e do Nordeste. Repete, também, o ciclo de ações e reações violentas que caracterizam as regiões em que o Estado é ausente ou omisso.
"Apesar de sua dimensão assustadora, as mortes no Brasil são extremamente concentradas, tanto em faixa etária, quanto raça e localização geográfica”, diz Renato Sérgio Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Assim como em Fortaleza, a maior parte dos homicídios no Brasil ocorre em áreas periféricas, com taxa de renda média, baixa escolaridade e Índice de Desenvolvimento Humano semelhante ao de países da África Subsaariana. Além disso, há uma concentração endêmica de homicídios entre negros e pardos. "Os números assustam a qualquer um, mas a noção de que os homicídios são algo que atinge toda a sociedade brasileira de forma equânime é algo que não corresponde à realidade”, diz ele.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública desenvolve uma pesquisa anual com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre os homicídios no Brasil. Batizado de Atlas da Violência, o estudo consegue dar uma dimensão clara das diferenças entre as vítimas da violência no Brasil.
Apenas em 2015, último ano tabulado até o momento pelo Atlas, 41 mil homens negros e pardos foram assassinados no Brasil, enquanto o número de vítimas não negras e pardas (brancos, amarelos) chegou à casa de 15 mil. "Não conseguimos fazer uma distinção sobre classe, com base na renda, mas os números que temos e os outros estudos realizados com base neles mostram que há uma correlação entre pobreza e violência muito forte."
Fortaleza é um exemplo claro disso. O Bairro de Cajazeiras, onde o ocorreu a tragédia, tem um Índice de Desenvolvimento Humano comparado com o da República Centro Africana, um dos países mais pobres da África. De acordo com um estudo da própria Secretaria de Pública de Segurança do Ceará, a região em que Cajazeiras está inserida é uma das mais violentas de Fortaleza, que, por sua vez, tem o título de terceira capital brasileira em número de homicídios.
Quase todos os bairros ao seu redor, onde se concentravam mais de 50% das mortes da cidade em 2012, data do último estudo, têm IDHs de nível africano. Nos bairros mais seguros, o Índice de Desenvolvimento Humano se aproxima de países do norte da Europa.
"A classe média não é vítima dessa epidemia de violência, quem está morrendo são os pobres e os negros, são os descendentes dos escravos, aqueles que sempre foram os párias dessa sociedade absurdamente desigual”, diz o sociólogo Jessé Souza.
Doutor em Sociologia pela Universidade Karl Ruprecht, de Heidelberg (Alemanha), Souza tem se dedicado a estudar a desigualdade no Brasil. Nos últimos 20 anos lançou mais de uma dezena de livros e estudos sobre o assunto.
Para ele, as vítimas da classe média na epidemia de violência brasileira são residuais. "É claro que há vítimas, mas elas são pequenas, não fazem parte dessa população que esta morrendo, dessa geração toda que está se matando entre si ou sendo morta pelas forças de repressão que trabalham exatamente para manter a pobreza, a ralé, como eu defino essa parte da população, longe da classe média e da elite”, diz ele.
Jessé Souza acredita que a extrema desigualdade da sociedade brasileira e a consequente violência que a marca são resultado das heranças escravocratas do país. Para ele, o Brasil jamais discutiu os 350 anos de escravidão e seus impactos na sociedade de uma maneira profunda. "O que vemos é uma repetição do status quo do escravismo, em que 20% da sociedade brasileira pretendem subjugar os outros 80% e manter as benesses de se ter mão de obra a preço vil para executar serviços que ela considera vil”, diz ele. "Como não ter violência?”
Souza diz não ter se aprofundado no estudo das organizações criminosas, e não entende exatamente sua dinâmica. Mas acredita que o surgimento das facções e sua penetração das áreas mais pobres do país têm relação direta com a profunda desigualdade brasileira. "Eu não tenho elementos para analisar essa questão a fundo, mas obviamente é uma forma de defesa de uma classe”, diz ele.
Bruno Paes Manso estuda há quase duas décadas as dinâmicas da criminalidade no Brasil. Jornalista e hoje pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Bruno passou a se interessar profundamente pelo assunto quando começou a perceber a redução abrupta dos assassinatos em São Paulo. Até os anos 2000, São Paulo era a campeã brasileira em assassinatos.
Em 1999, o estado paulista registrava mais de 15 mil homicídios, quase o dobro do Rio de Janeiro. Tinha 44 mortes por 100 mil habitantes, ocupando a quinta posição entre os estados do país. A partir daquele ano iniciou uma redução abrupta dos homicídios, até se tornar o estado do país com o menor índice de mortes por 100 mil habitantes do Brasil em 2015, com 12 mortes por grupo de 100 mil. Em números absolutos os homicídios despencaram para cerca de 5 mil mortes. "Fiquei obcecado em entender o que estava acontecendo”, conta Bruno, na época repórter do jornal O Estado de S. Paulo.
A resposta encontrada por Bruno e por outros pesquisadores da violência estava naquela que seria a maior organização criminosa do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC). Nascido após o massacre de 111 presos na Penitenciária do Carandiru pela Polícia Militar de São Paulo, o PCC surgiu com ideais de justiça e autodefesa. A ideia era unir o mundo do crime contra o chamado sistema e impedir que situações como o Carandiru voltassem a ocorrer.
"Houve uma pacificação nas cadeias, já não era permitido oprimir o mais fraco, havia uma espécie de sistema judicial que controlava a vida no sistema prisional”, conta Bruno. Logo, o PCC passou a também atrair bandidos que estavam nas ruas. Uma irmandade do crime nascia em São Paulo e logo ela se tornou hegemônica nas ruas da cidade e de todo o estado.
"O código de conduta das prisões foi para as periferias. Já não se podia ajustar as contas com um inimigo sem o aval do PCC, já não se podia roubar determinadas áreas sem o aval do "Partido”. O resultado foi uma redução profunda nos crimes de vingança que marcaram toda a década de 80 e 90 em São Paulo. Agora, para matar era preciso de autorização.
Foi a partir de meados da primeira metade da primeira década do ano 2000 que o PCC iniciou um processo de nacionalização que viria a custar a vida de dezenas de milhares de brasileiros.
O grupo passou a focar seus esforços no comércio e distribuição de cocaína. Para expandir o mercado, passou a se aliar a facções locais, que por sua vez tentavam repetir localmente o sucesso do grupo em São Paulo. As facções cariocas, em especial o Comando Vermelho, que já haviam iniciado um processo de nacionalização, se sentem ameaçadas. Logo uma disputa de poder começa a se dar em áreas de grande crescimento do consumo de drogas, como no Norte e no Nordeste do país.
"Esse é um período de expansão econômica e do consumo, é o momento em que o Brasil passa a se tornar o segundo maior consumidor de cocaína e derivados do mundo”, conta Bruno, que atribui à estratégia do governo em concentrar em prisões federais os líderes regionais do crime em um incentivo à nacionalização. "As redes de contato se ampliaram”.
Em 1999 o Sudeste brasileiro produzia 26 mil cadáveres ao ano, enquanto o Nordeste tinha pouco mais de 8 mil homicídios registrados. Cerca de dez anos depois, a região conhecida por suas praias paradisíacas e pelo grande sertão já contava mais mortes que a parte mais industrializada do país. Em 2016, foram quase 25 mil assassinatos. Boa parte deles, dentro da dinâmica um dia experimentada por São Paulo.
Foi exatamente o que aconteceu na madrugada do último sábado no bairro de Cajazeiras. A chacina, com características de um ato de terror para intimidar a população local, foi reivindicada pela organização criminosa ligada ao PCC no estado, os Guardiões do Estado, ou, G.D.E.
A área onde ocorreram as mortes é controlada pela franquia do Comando Vermelho no estado. No sábado mesmo, pouco mais de 12 horas após os assassinatos, membros do CV, presos em uma das cadeias de segurança máxima do Ceará, enviaram um vídeo pelas redes sociais prometendo vingança.
Só neste primeiro mês de 2018, quase 300 pessoas já foram mortas no Ceará. Ao que tudo indica, os números vão continuar a crescer.
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A epidemia de assassinatos no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU