18 Julho 2017
Visto por dirigentes como “pessoa perigosa”, goleiro revive o trauma dos ataques racistas, escreve Breiller Pires, jornalista, em artigo publicado por El País, 17-07-2017.
Foto: Reprodução/Internet
Eis o artigo.
Quando ainda era goleiro do Santos, em 2014, Mário Lúcio Duarte Costa, o Aranha, foi chamado de “macaco” por vários torcedores do Grêmio. Câmeras de televisão flagraram as ofensas racistas. O clube acabou punido com a exclusão da Copa do Brasil. No mesmo ano, o goleiro voltou a jogar na Arena do Grêmio. Passou a partida inteira sendo vaiado por uma expressiva parcela da torcida. Ao fim do jogo, afirmou que a manifestação, logo depois de ter sido alvo de injúria racial, reforçava o preconceito dos gremistas que o atacaram e que aquelas vaias não eram normais. Repórteres que o cercavam se comportaram como inquisidores. Alguns, lançando sorrisos provocativos, insinuavam que Aranha deveria reagir calado ao açoite.
Embora tenha aderido a campanhas educativas e dialogado com suas organizadas para abolir o termo “macaco” de cânticos que historicamente serviram para depreciar rivais colorados, o Grêmio jamais se assumiu, de fato, como culpado. Muitos torcedores e, sobretudo, dirigentes não conseguem enxergar Aranha como vítima. Para eles, o goleiro provocou o imbróglio que resultou na eliminação do clube de uma competição, quando, na verdade, ele apenas denunciou a prática abominável de injúria racial no estádio – com a qual, por décadas, o Grêmio, assim como a maioria dos clubes do Brasil, foi condescendente.
Novamente, o futebol reproduz a lógica de que toda vítima de injúria racial é culpada até que se prove o contrário. Aranha, agora como atleta da Ponte Preta, voltou à Arena do Grêmio neste domingo. Dirigentes gremistas chegaram ao ponto de destacar uma câmera no estádio para acompanhar cada movimento do goleiro no decorrer da partida. Nestor Hein, diretor jurídico do clube, justificou a postura dizendo que Aranha se trata de “uma pessoa perigosa e difícil”. Ainda relembrou uma fala discriminatória do goleiro, em abril, para chamá-lo de homofóbico. Retórica torpe e ignorante, como se o fato de uma pessoa já ter cometido ato preconceituoso redimisse seus agressores de comportamento igualmente reprovável.
Durante o duelo em Porto Alegre, Aranha foi vaiado outra vez, de forma acintosa. Depois da partida, disse que conseguia ver o ódio no rosto dos torcedores que o alvejavam. Generalizou ao declarar que “no Sul, as pessoas são assim”. Em seguida, o presidente do Grêmio, Romildo Bolzan, fez um pronunciamento para reforçar a ideia de que o clube é o verdadeiro prejudicado em toda história. “Nosso torcedor não esquece a injustiça que sofremos. A reação [vaias a Aranha] faz parte da cultura do futebol.” Para terminar, o presidente criticou o goleiro por não ter aceitado o convite do clube para um pedido formal de desculpas.
Na época, quatro torcedores do Grêmio foram indiciados pela polícia por causa dos ataques racistas a Aranha. Como punição, ficaram impedidos de frequentar jogos do clube. Antes do julgamento na esfera esportiva, dirigentes gremistas se mobilizaram para sustentar a tese de que o goleiro havia sido o responsável pelos xingamentos que sofreu. O então vice-presidente do clube, Adalberto Preis, acusou Aranha de ter protagonizado “uma grande encenação”. Já para Luiz Carlos Silveira Martins, o Cacalo, ex-presidente gremista, o goleiro fez “uma cena teatral depois de ouvir um gritinho”. Nos tribunais, a defesa do Grêmio argumentou que Aranha provocara a torcida do time ao fazer cera no gramado.
Ao longo de todo o processo, a queixa de Aranha foi desqualificada pelo Grêmio. Ele foi chamado de “macaco”, “encenador”, “mentiroso” e, agora, virou “pessoa perigosa”. Quem sofre tantas agressões, tem todo o direito de não aceitar um pedido – hipócrita, por sinal – de desculpas. Não, Romildo. As vaias a Aranha não fazem parte da cultura do futebol. Uma vítima de racismo jamais, em nenhuma circunstância, deveria ser hostilizada e vista como persona non grata no mesmo lugar onde gritos de “macaco” golpearam sua dignidade.
O Grêmio nunca foi vítima. Ao autorizar vigilância sob Aranha, tratando-o como criminoso que deve ter os passos monitorados, e qualifica-lo publicamente como “perigoso”, em que pese tudo o que passou, a diretoria do Grêmio cambaleia no limite entre a desonestidade intelectual e o mau-caratismo. A parte da torcida gremista que soube assimilar a lição deveria servir de exemplo para um clube que já acolheu importantes movimentos em favor da diversidade, tal qual a Coligay. Em meio a tanto rancor injustificado, dois torcedores apareceram com um cartaz de desagravo em solidariedade a Aranha, que agradeceu pelo apoio. A história tricolor, que atualmente conta com o suporte de movimentos que levantam a bandeira de diversas causas sociais, como a Tribuna 77 e a Grêmio Antifascista, não merece atitudes tão baixas quanto as de sua atual diretoria.
Um dia, os traumas irão, enfim, cicatrizar. Aranha, goleiro de primeiro nível, atleta consagrado em um esporte onde a imensa maioria fica pelo caminho, provavelmente terá orgulho ao olhar nos olhos dos netos e contar sua trajetória. O Grêmio, por completa falta de tato e sensibilidade de seus dirigentes, corre o risco de ficar para sempre marcado não apenas como o clube que achou normal chamar um negro de “macaco”, mas também como uma instituição covarde que não soube reconhecer o erro, encarar o racismo com a seriedade que merece ser tratado e dar a volta por cima.
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Grêmio e Aranha, uma história de racismo perverso e continuado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU