06 Dezembro 2017
"O rumo dado à caminhada da Igreja a partir do Vaticano II, ou seja, a eclesiologia proposta por este Concílio, coloca o laicato como o sujeito da evangelização. Tal proposta se choca com a eclesiologia tridentina, que colocava o clero como principal agente da evangelização. Para que o protagonismo dos leigos possa avançar, a Igreja deve enfrentar o clericalismo", escreve Francisco Orofino, biblista, assessor de grupos populares e comunidades de base nos municípios da Baixada Fluminense, doutor em Teologia Bíblica na PUC-Rio e professor de Teologia Bíblica no Instituto Paulo VI, na diocese de Nova Iguaçu (RJ), em artigo publicado por Portal das Cebs, 2017.
A Igreja Católica lançou no Brasil o Ano do Laicato, que ocorrerá ao longo do ano litúrgico de 2018. Pode ser mais uma oportunidade de retomar o papel do laicato na Igreja “em saída”, como lembram certas falas e documentos. Volta-se, novamente, a falar do protagonismo dos leigos, dentro do modelo de igreja pedido pelo Vaticano II. Soltam-se muitas frases de efeito e reflexões sobre este protagonismo laical. Aponta-se o mundo secular e suas culturas como o campo específico do laicato.
Um ano voltado para o papel do laicato pode ser um momento de avanço pastoral. Os leigos são “o sal da terra e a luz do mundo” (Mt 5,13.14). Mas seria bom também que os leigos e leigas fossem o sal da paróquia e luz da Igreja. O Ano do Laicato bem pode ser um momento propício de os leigos e leigas questionarem o clericalismo que ainda trava a ação pastoral da Igreja. Na sua Carta ao cardeal Marc Ouellet, de março de 2016, o papa Francisco lembra que “olhar para o Santo Povo fiel de Deus e sentimo-nos parte integrante dele, posiciona-nos na vida e, portanto, nos temas que tratamos de maneira diversa. Isto ajuda-nos a não cair em reflexões que podem, por si só, ser muito úteis, mas que acabam por homologar a vida de nosso povo ou por teorizar de tal modo que a especulação acaba por matar a ação. Olhar continuamente para o povo de Deus salva-nos de certos nominalismos declarativos (slogans) que são frases bonitas, mas não conseguem apoiar a vida de nossas comunidades. Por exemplo, recordo a famosa frase ‘Chegou a hora dos leigos!’...mas parece que o relógio parou!”. O que se espera de um Ano do Laicato é que o relógio seja colocado de novo em movimento.
O rumo dado à caminhada da Igreja a partir do Vaticano II, ou seja, a eclesiologia proposta por este Concílio, coloca o laicato como o sujeito da evangelização. Tal proposta se choca com a eclesiologia tridentina, que colocava o clero como principal agente da evangelização. Para que o protagonismo dos leigos possa avançar, a Igreja deve enfrentar o clericalismo. Voltando à carta de Francisco: “Não podemos refletir sobre o tema do laicato ignorando uma das maiores deformações que a América Latina deve enfrentar – e para a qual peço que dirijais uma atenção particular – o clericalismo.” Na carta, Francisco retoma todo o esforço de denúncia deste desvio feito no Documento de Aparecida. No entanto, a palavra “clericalismo” foi censurada e eliminada do Documento (por exemplo, em DAp 100 b). Não há dúvida de que o Ano do Laicato pode ser uma boa oportunidade em denunciar e trabalhar a mentalidade clericalista presente ainda em grande parte do laicato latino-americano. O mesmo vale para a formação do clero, ainda presa ao modelo tridentino de formar “fora do mundo”, num regime de internato.
Para o Vaticano II, os fiéis leigos são “cristãos que estão incorporados a Cristo pelo batismo, que formam o povo de Deus e participam das funções de Cristo: sacerdote, profeta e rei. Realizam, segundo sua condição, a missão de todo o povo cristão na Igreja e no mundo” (LG 31; cf. DAp 209). Portanto, na eclesiologia do Vaticano II o Santo Povo fiel de Deus, leigos e leigas, deve viver as dimensões messiânicas inerentes ao sacramento do batismo. É preciso recuperar a consciência de que, pelo batismo, todos somos sacerdotes e sacerdotisas, profetas e profetisas, reis e rainhas. E exercer estas funções “na Igreja e no mundo”.
Exercemos nosso sacerdócio batismal formando a assembléia celebrativa. Esta congregação dos batizados e batizadas torna-se sacramento da presença de Deus. Como disse Jesus: “onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). É a assembléia celebrativa, congregada em nome da Trindade Santa, que pode dizer com toda força e convicção “O Senhor está no meio de nós!”. Nesta assembléia somos todos e todas co-celebrantes. Pelo batismo somos “consagrados para ser edifício espiritual e sacerdócio santo” (LG 10).
Exercemos nossa profecia batismal no serviço da Palavra de Deus. Leigos e leigas, no seguimento missionário de Jesus, têm a Palavra de Deus como fonte de sua espiritualidade. Esta Palavra é a alma da ação evangelizadora. Conhecer a Palavra é anunciar a Palavra. Desconhecer a Palavra é desconhecer o próprio Cristo. Nossa dimensão profética batismal nos leva a apresentar o Pão da Palavra, sendo necessária a interpretação adequada dos textos bíblicos presentes na liturgia, na catequese e nas várias frentes pastorais. Todo cristão batizado é agente da pastoral bíblica tendo em vista a animação bíblica de toda a pastoral (cf. DAp 248).
O batismo nos torna reis e rainhas. Um grande perigo é reduzir esta dimensão batismal régia à vivência da caridade. Todos temos que viver a caridade a partir das três dimensões messiânicas do batismo. A dimensão batismal régia nos torna a todos, leigos e leigas, co-responsáveis pela condução do povo de Deus, pela manutenção do patrimônio da Igreja e pela organização eclesial. Exercemos esta função régia ocupando cargos na administração ou na coordenação das comunidades, paróquias ou dioceses.
É inegável que houve substanciais avanços no protagonismo dos leigos dentro da vida eclesial. A formação teológica deixou de ser monopólio clerical, surgiram os ministérios, novas formas de organização e as responsabilidades pastorais. Também é certo que qualquer surto de reclericalização acontece em detrimento das conquistas leigas na vida da Igreja. Busca-se anular a participação dos leigos, calando-os e diminuindo-lhes os espaços de comunhão e participação. Como lembra Francisco em sua citada carta: “O clericalismo leva a uma homologação do laicato, tratando-o como um ‘mandatário’ limita as diversas iniciativas e esforços e, ousaria dizer, as audácias necessárias para poder anunciar a Boa Nova do Evangelho em todos os âmbitos da atividade social e, sobretudo, política. O clericalismo, longe de dar impulso aos diversos contributos e propostas, apaga pouco a pouco o fogo profético do qual a Igreja está chamada a dar testemunho no coração de seus povos”
Viver o Ano do Laicato significa enfrentar o desafio do clericalismo. Não adianta “empurrar” os leigos para as ações missionárias fora do ambiente eclesial enquanto o leigo for considerado “cidadão de segunda categoria” dentro da Igreja. Leigo comprometido não pode ser aquele ou aquela que trabalha obediente e calado nas obras da Igreja. Como lembra Aparecida: “A construção da cidadania, no sentido mais amplo, e a construção da eclesialidade nos leigos, é um só e único movimento” (DAp 215). Leigos e leigas para o mundo, tudo bem! Mas leigos e leigas para a vida da Igreja também!
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O Ano do Laicato. Artigo de Francisco Orofino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU