28 Novembro 2017
O enfraquecimento da atuação da esquerda como catalisadora política das demandas da população, em vez de ensejarem a consolidação de novos nomes que ganhem força nesse espectro, pode incorrer em novo erro com a insistência na candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à presidência da República, mesmo com a presença do petista no primeiro lugar nas pesquisas. Essa é a opinião do doutor em Filosofia e professor da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) Moysés Pinto Neto.
Continuar dependente de uma liderança carismática, diz o acadêmico, pode ser "um risco para a democracia, pois pode acabar mantendo a instabilidade institucional", analisa. No entanto, do ponto de vista partidário, o que o PT tenta fazer, segundo Moysés, é "uma gambiarra para o futuro". Na falta de uma renovação imediata, o PT "vai tentar ganhar tempo nessa inovação" para "ver se consegue formar novas lideranças e se reconstruir sem perder essa força", acredita.
A entrevista é de Lívia Araújo, publicada por Jornal do Comércio, 27-11-2017.
No entanto, a direita tampouco está conseguindo aproveitar suficientemente o momento para se consolidar como força política, disse Moysés, nesta entrevista ao Jornal do Comércio. "Há uma crise brutal da direita, porque ela não tem um candidato melhor que (o deputado federal Jair) Bolsonaro (PSC) para oferecer", critica.
Para o professor, o possível candidato do PSDB à presidência, Geraldo Alckmin, "quer se colocar como social-democrata, tentando vender essa ideia de um perfil moderado que vai aplacar os ânimos. E pode funcionar", prevê.
Como o senhor enxerga, de uma maneira mais ampla, o contexto das eleições em 2018, a correlação de forças no ano que vem?
Estamos passando, de 2013 para cá, por uma desconstrução do que se solidificou na nova República. É muito difícil fazer um prognóstico para as eleições, porque tudo se derrete muito rapidamente. O que mais parece constante é uma preocupação, por parte da população brasileira, em que as coisas irão para pior no sentido da desestabilização do estado de direito. Quando houve as manifestações em 2013, se postulava um aprofundamento dos mecanismos democráticos e dos direitos. Hoje, a liquidez do que acontece é tão intensa que há quem tenha receio de que algum tipo de promessa fácil da restauração da ordem possa substituir aquilo que é necessário para problemas difíceis. Há uma compulsão de restabelecer muito rapidamente uma ordem e uma segurança que não vão ser tão facilmente restabelecidas. E algum político demagógico pode beber dessa fonte, se aproveitar dessa angústia social, e é algo que está acontecendo no mundo inteiro.
Nesse sentido, há realmente a chance de chegarem ao poder políticos que implementem um viés mais autoritário?
Acho que não. O que estamos vendo, agora, são momentos de grande instabilidade que amplificam vozes mais sectárias, mas minoritárias na sociedade brasileira. Acho que vivemos uma explosão desse cenário agora, e a tendência é um arrefecimento dos ânimos, porque ninguém vai suportar viver em tanta alta voltagem como estamos vivendo agora. É claro que temos que estar atentos a essas manifestações, e não dá para subestimar a possibilidade de uma tragédia ocorrer devido a uma série de contingências mais ou menos aleatórias, que é como isso acontece. Mas não vejo como uma tendência majoritária. Na parte da população mais associada com o Bolsonaro, acho que é uma ameaça real colocada, mas chegou no pico antes do momento, não tem como se capilarizar, e existe um certo consenso em torno da democracia, de um mínimo de razoabilidade, enfim.
Qual o papel da atual configuração das redes sociais no agravamento desse quadro?
Redes sociais são um problema, temos que pensar nisso seriamente. Elas provocaram um aprofundamento democrático interessante, em um primeiro momento, mas foram substituídas por uma espécie de ditadura do algoritmo, no qual cada um fica preso no próprio imaginário. Isso vai aprofundando o sectarismo na sociedade, transbordando-o para a vida real, e, para isso, fornece uma lógica perigosa de formação política. É necessário que as pessoas que têm responsabilidade - jornalistas, professores, curadores, responsáveis por instituições educacionais, políticos - comecem a procurar limites nessa lógica de enfrentamento. É preciso que a gente comece a estabelecer filtros sociais e institucionais em relação a esses mecanismos de pressão das redes sociais. As posições mais matizadas acabam reprimidas por essas posições mais sectárias.
Voltando a 2013, o que esse marco representou para a esquerda?
Os protestos de 2013 são expressão de uma insatisfação generalizada com um certo padrão que se estabilizou ao longo da década de 1990 e 2000, que é um consenso tecnocrático em torno de certas pautas, certas maneiras de governar, formas de estabelecer a democracia e uma relação entre economia e oportunidades. Na América do Sul, boa parte dos países eram governados pela esquerda. Nos Estados Unidos, o governante era o (democrata Barack) Obama; na Espanha, o PSOE (Partido Socialista); na França, o François Hollande (do Partido Socialista). Foi uma ruptura interna de uma grande fatia da população que votou e acreditou em processos progressistas, mas não via uma resposta institucional de fato para dar vazão a problemas desse período, como a falta de horizonte de futuro, a falta de emprego etc.
E como foi a resposta da esquerda brasileira a essa ebulição?
No mundo inteiro, foi frustrante. Ela não conseguiu se conectar com essas lutas e dar uma resposta institucional a essas demandas. No Brasil, foi muito ruim, porque os ditos governistas da época partiram para uma confrontação das ruas. Ao invés de enxergar as ruas como uma possibilidade de legitimidade popular para implementar as reformas que sempre foram ditas impossíveis de serem feitas - justamente pela falta de legitimidade popular -, o governo encarou como um desafio e, com isso, acabou desperdiçando a chance e se ligando a oligarquias políticas. A resposta do governo de Dilma Rousseff (PT) foi frustrante, não se conectou com as pautas na rua. Propôs uma reforma política, mas não era isso que as ruas estavam demandando, e sim falando de educação, transporte, saúde, corrupção, direitos sociais.
Nesse contexto das eleições de 2018, como o senhor avalia o comportamento da esquerda?
Há quatro campos, pelo menos. O campo lulista, que beira até uma vitória no primeiro turno neste momento. Isso quer dizer pouco, mas é um capital eleitoral monstruoso. Depois, tem o campo do Ciro Gomes (PDT), que não é uma figura típica de esquerda, mas tem essa linha desenvolvimentista, inclusive nessa sequência desse projeto que o Lula tentou implementar; o da Marina Silva (Rede), que é controversa entre a esquerda, pois não é reconhecida como de esquerda, e a direita também não a reconhece como direita. E, por último, o do PSOL, que cogita o (coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) Guilherme Boulos ou a (vereadora de Belo Horizonte) Áurea Carolina. Mas não acredito que o PSOL vá apresentar uma força nessas eleições, pois acho que o partido se condenou a ser uma força meramente simbólica, de uma fatia minúscula do eleitorado. Não conseguiu dar o salto para se conectar com as pautas da maioria, o que poderia ter ocorrido por conta de 2013, com a candidatura do (deputado estadual fluminense Marcelo) Freixo, e mesmo nas eleições em 2014.
O Lula é uma possibilidade, mas tem a questão do risco jurídico de ele não ser candidato. O PT erra ao insistir tanto no Lula dentro de todo este contexto político?
Do meu ponto de vista, é um erro, porque isso nos mantém paralisados em uma cena que temos de superar, e tenho várias críticas, sobretudo, à incapacidade de renovação dos quadros políticos, de continuar dependente de uma liderança carismática, e um risco mesmo para a democracia, no sentido de acabar mantendo a instabilidade institucional. Nada garante que, se o Lula for condenado, ele não consiga uma liminar para concorrer, possa ser eleito, e, judicialmente, isso possa ser revertido. Em nível nacional, é absolutamente traumático para salvar a democracia acima de tudo. Mas, do ponto de vista estritamente partidário, como estratégia de sobrevivência, o PT está tentando fazer uma gambiarra para o futuro. É um partido em uma forte crise, ameaçado de perder muito da capilaridade que ganhou ao longo desses 30 anos de existência. Não tem uma renovação imediata, então vai tentar ganhar tempo nessa inovação, usando uma gambiarra que vai ligar passado e futuro para, nesse ínterim, ver se consegue formar novas lideranças e se reconstituir sem perder essa força.
Como a direita está aproveitando essa crise da esquerda?
Mal, muito mal. Assim como tem a crise da esquerda, considero que há uma crise brutal da direita, porque ela não tem um candidato melhor que o Bolsonaro para oferecer.
Mas Alckmin está tentando se consolidar como uma alternativa mais moderada, principalmente agora que a imagem do prefeito de São Paulo, João Doria, está mais frágil, não?
Ele quer se colocar como social-democrata.
O senhor acha que ele pode angariar votos da esquerda?
Acho que da esquerda não, mas o Alckmin está tentando ocupar o mesmo espaço que a Marina. Ou melhor, um espaço um pouco mais amplo e com uma adesão mais acentuada da centro-direita, mas se distanciando da extrema-direita, porque ele já viu que o Bolsonaro ocupou esse lugar, e viu que a estratégia do Doria não funcionou, pois o Doria está derretendo em termos de popularidade. Todo esse pessoal quer ocupar o lugar do pacificador, que vai aplacar os extremos. Não vejo o Alckmin indo para a esquerda, e sim para o centro, dizendo que não é radical no liberalismo, na privatização. Ele vai tentar uma candidatura mais ou menos tentando vender essa ideia de um perfil moderado que vai aplacar os ânimos. E pode funcionar.
Fala-se muito da eleição majoritária, mas o Congresso atual foi o mais conservador eleito desde a redemocratização. Em 2018, a tendência de voto em deputados e senadores pode sair um pouco desse viés, dado o que se viu em termos de corrupção e compra de votos?
Quero acreditar que sim. Esse é um ponto fundamental. Para o Executivo, não se elegendo Bolsonaro, qualquer coisa está bem. Agora, realmente existe uma política típica de uma cultura autoritária como é a nossa, de focar no Executivo e se perde de vista o Legislativo. Foi isso que aconteceu em 2014. A gente teve, simultaneamente, dois processos: de um lado, o pico da insatisfação e do ceticismo com os políticos, e, do outro lado, o pico do fisiologismo, que acabou formando o pior Congresso desde a redemocratização brasileira. Certamente, vai haver cotas moralistas, pessoas que vão surfar nesse neoconservadorismo que está crescente na sociedade brasileira, contra pautas de direitos humanos, gênero, igualdade racial, mas acho, também, que segmentos aliados com essas pautas, via movimentos sociais e organizações contingentes que já estão começando a se formar, de renovação da política, de ocupação da política, são duas coisas mais ou menos que podem andar juntas.
O que o senhor acha de projetos que custeiam formação política para novas lideranças? Serão bem-sucedidos em renovar o cenário das "dinastias" políticas?
Sim, tem dois movimentos para romper com isso. Tem uma espécie de reciclagem geracional da política, de colocar pessoas jovens, com novas ideias, desfazer arranjos familiares de passagem do poder. E, do outro lado, movimentos sociais que começam a perceber que se precisa de uma representação institucional, e, por mais críticas que tenha à democracia representativa, se sabe que é necessário ocupar esses espaços institucionais para que não aconteça o que aconteceu em 2014. Não sou totalmente otimista, porque acho que esse fetiche pelo Executivo é patológico na nossa sociedade, porém quero acreditar que vão haver essas organizações. Sei que agora está se formando uma frente cidadã, que está tentando reunir políticos de uma nova plataforma; tem o Vamos; o movimento Quero Prévias; o Muitos, em Belo Horizonte, que acho que vai se articular para fazer algo em nível federal; a bancada ativista em São Paulo também. Acho que as organizações podem dar um respiro a essa configuração que ganhou o Congresso nesse mandato.
Moysés da Fontoura Pinto Neto nasceu em Porto Alegre em 31 de outubro de 1980. Graduou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) em 2003. Fez especialização em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs) em 2005 e, em 2010, concluiu o mestrado em Ciências Criminais pela mesma universidade. Também pela Pucrs, fez doutorado em Filosofia, concluído em 2013. É conselheiro do Instituto de Criminologia e Alteridade (ICA). Foi professor e coordenador adjunto do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra-Canoas) de 2009 a 2011, professor substituto do Departamento de Ciências Penais da Ufrgs entre 2008 e 2009, e professor em diversos cursos de especialização na área de Ciências Criminais e Direitos Humanos. É editor do Panfleto Político-Cultural Rastros. Pesquisa nas áreas de metafísicas contemporâneas, ecologia, tecnologia, materialismos, biopolítica, pensamento de Jacques Derrida, psicanálise, ciências cognitivas e interfaces interdisciplinares acerca da violência.
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'Assim como tem a crise da esquerda, há uma crise brutal da direita'. Entrevista com Moysés Pinto Neto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU