07 Novembro 2017
“O rito da Eucaristia prevê uma sequência em que a fração de pão produz as partículas para a comunhão da assembleia. Ainda hoje, é disseminada a práxis de ‘nutrir a assembleia’ com as partículas já consagradas e de utilizar, também sobre o altar, ‘partículas’ já fracionadas. A ‘transubstanciação’ e a ‘centralidade do tabernáculo’ – junto com a práxis da assembleia comungar depois do fim da celebração – influenciaram largamente essa distorção.”
A análise é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 02-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como se sabe, o Concílio Vaticano II, na sua constituição litúrgica, entre as sete indicações que dá para a Reforma da celebração eucarística, indica a retomada da “participação mais perfeita” na Eucaristia, mediante a “comunhão sob as duas espécies” (SC 55). Muitas vezes, lê-se essa afirmação de modo menor, como se se tratasse de uma simples “recomendação pastoral”.
Na realidade, a “virada pastoral” que o Vaticano II exige, requer que se entenda essa indicação à luz da “inteligência per ritus et preces” que o número 48 da Sacrosanctum concilium estabelece como critério fundamental de interpretação da “participação ativa”.
Esse horizonte de compreensão – que elabora uma nova noção de “ação simbólico-ritual” e uma nova práxis participativa – introduz não só práticas, mas também teorias necessariamente novas no corpo eclesial, cujo impacto iniciamos apenas hoje a apreciar também no âmbito da teologia eucarística.
Neste breve texto, gostaria de me deter sobre as consequências que esse novo modo de pensar introduz na clássica doutrina eucarística da “transubstanciação”. A presença do Senhor ressuscitado no meio dos seus é pensada de um modo muito mais amplo e complexo do que a grande mas limitada teoria da “presença substancial sob as espécies do pão e do vinho”.
Um esclarecimento de fundo deve ser oferecido acima de tudo sobre a relação que se instaura entre uma práxis ritual e a sua interpretação teórica. Devemos reconhecer, de fato, que as inúmeras “controvérsias eucarísticas” – que marcaram a reflexão eclesial – produziram efeitos sobre a práxis não lineares. De fato, com o objetivo de evitar erros doutrinais, frequentemente introduziram indiferenças ou unilateralismos rituais. Identificamos apenas alguns deles:
- a concentração sobre a “presença substancial sob as espécies” distraiu profundamente das outras formas de presença do Senhor, na Palavra, na oração, na assembleia (cf. SC 7);
- a “presença substancial sob as espécies” reduziu o peso da “presença eclesial” do corpo de Cristo, que continua sendo sempre o principal efeito da celebração eucarística;
- a atenção à “substância” levou a uma prática dos acidentes que oscila entre indiferença e ritualismo, correndo o risco de perder a lógica simbólica das sequências rituais;
- a própria celebração da Eucaristia sofreu com a invasão de uma leitura intelectualista da presença, que reduziu a relevância de gestos, sequências e coerências internas à ação ritual;
- por fim, mas talvez in primis, a separação entre “sacrifício” e “comunhão” – fruto do conflito com a tradição protestante – não beneficiou uma compreensão unitária do rito eucarístico e das continuidades entre sacrifício e banquete.
Podemos considerar especialmente este último ponto para tentar ilustrá-lo melhor com alguns exemplos.
O modo como tentamos sair desses embaraços, há pelo menos 50 anos, ainda é hesitante e balbuciante. Este é um fato inevitável: a própria linguagem com que propomos as “novas aberturas” é afetada por um léxico muitas vezes velho e inadequado. Se, de fato, examinarmos os “ritos de comunhão” das nossas celebrações eucarísticas, poderemos identificar claramente pelo menos três limiares problemáticos:
- A irrelevância da “fração do pão”
O rito da Eucaristia prevê uma sequência em que a fração de pão produz as partículas para a comunhão da assembleia. Ainda hoje, é disseminada a práxis de “nutrir a assembleia” com as partículas já consagradas e de utilizar, também sobre o altar, “partículas” já fracionadas. A “transubstanciação” e a “centralidade do tabernáculo” – junto com a práxis da assembleia comungar depois do fim da celebração – influenciaram largamente essa distorção.
- A “forma” da comunhão sub utraque
A recuperação de uma práxis de “comunhão sob as duas espécies” também ocorreu, principalmente, com uma baixa consciência da “qualidade” da relação com pão e vinho. As duas “matérias” não são simplesmente “espécies” de uma substância que está contida, embora integralmente, “sob cada uma das duas”! Ter acesso a pão e vinho como corpo e sangue de Cristo não significa receber “uma espécie imersa na outra”, mas ter acesso ao único pão partido e ao único cálice compartilhado, como mediação do Corpo e Sangue do Senhor.
Esse ato comum, com toda a sua ressonância íntima e familiar, reestrutura a filialidade e a fraternidade eclesial, com um poder imediato irredutível a outros gestos. A interferência da “transubstanciação” nessa recuperação é muito pesada e não por culpa da noção em si mesma, mas por culpa de uma recepção intelectualista e ritualista da tradição, que encontrou nessa formalização teórica um formidável aliado.
- A procissão de comunhão
A forma mais espiritual de comunhão deveria ser uma alegre procissão ao altar de toda a assembleia. Movimento, canto, ritmo são as condições dessa experiência espiritual: uma compreensão da Eucaristia que se concentra apenas na “substância” corre o risco de considerar tudo isso ou como indiferente ou até mesmo como distração do essencial. Essencial parece ser apenas “redobrar” a ação de graças individual, quase na indiferença em relação à ação comunitária.
A transubstanciação, portanto, opera uma inevitável redução da mediação ritual da presença do Senhor, concentrando o coração do rito apenas na “fórmula de consagração sobre a matéria”. As sinetas que ainda hoje tocam nesse limiar são o testemunho do efeito de distorção que a grande teoria operou sobre a tradição. Compreender que o rito eucarístico experimenta a “presença” na sequência ritual inteira – na reunião, nos ritos de entrada, na liturgia da palavra, na profissão de fé, na oração por todos, na apresentação dos dons, na solene anáfora eucarística, nos ritos de comunhão e nos ritos de despedida – exige uma abordagem mais rica e articulada com respeito à relação formal entre substância e acidentes.
O centro da Eucaristia não é uma “consagração do pão e do vinho”, mas sim a escuta da palavra e a oração anafórica que deságuam no rito de comunhão. Essa compreensão ampla da Eucaristia precisa de uma “teoria da presença” mais ampla. Ou, melhor, poderíamos dizer que a “transubstanciação” só pode “ver” a consagração e é, em certo sentido, o produto teórico desse ângulo visual. Enquanto uma perspectiva mais ampla de experiência da presença do Senhor deve saber produzir uma teoria mais articulada, mais rica e mais dinâmica.
Um exemplo final pode ajudar a compreender o que está em jogo nestas reflexões. Todos temos experiência da práxis eclesial católica, que celebra os ritos de comunhão utilizando “partículas” já partidas ou, melhor, confeccionadas antecipadamente à fração do pão e, muitas vezes, já consagradas e simplesmente distribuídas a partir do tabernáculo, no momento do rito de comunhão.
Sem entrar em todas as questões que essa práxis propõe, gostaria de levantar uma reserva sobre a “forma redonda” da partícula. De fato, considero que, enquanto é totalmente natural que o pão eucarístico seja redondo – e, com efeito, a hostia magna é sempre redonda – não se compreende por que se considera que a partícula também deve ser redonda. Talvez por imitação “em miniatura” do pão inteiro.
Mas é preciso reconhecer que a forma redonda da partícula corre o risco de apagar uma experiência elementar da relação entre o Senhor e a sua Igreja. Ele a encontra como aquela “plenitude” que é dada a cada um por mediação da comunidade. Cada um recebe o corpo de Cristo não simplesmente de modo “direto”, mas “através da Igreja”. Por isso, o único pão, partido, é oferecido “como fragmento” a cada pessoa, que pode reconhecer o Corpo de Cristo no Senhor e na Igreja.
Essa verdade é hoje mediada pelas mentes, mas não pelos corpos. A partícula deve ser um fragmento, não um inteiro em miniatura. O fragmento pode ter qualquer forma, mas não a redonda, que é forma do inteiro. Em vez disso, os corpos, com base em uma utilização unilateral também da noção de transubstanciação, consideram que têm contato “inteiro” com o Senhor e que também devem “dar graças” sozinhos, sem levar em conta que toda a Eucaristia é, justamente, ação de graças comunitário.
Para remediar essa distorção, no entanto, não é suficiente “confeccionar partículas não mais redondas”! Em vez disso, é preciso produzir uma “teoria da presença” que não se imunize à ação, às linguagens simbólicas e aos processos rituais. Para chegar a produzir os fragmentos/partículas mediante a fração de pão – ou seja, para recuperar o sentido primário de uma elementar sequência ritual, que sequer sabemos ver – não precisamos apenas de rubricas mais adequadas, mas de teorias teológicas mais fiéis à riqueza da tradição, com a multidão das suas linguagens corpóreas e com a fineza das suas sequências rituais.
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O paradoxo das partículas redondas: transubstanciação e inteligência ''per ritus et preces''. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU