03 Novembro 2017
“O fato de o próprio papa ter tomado papel e caneta e pedido formalmente que o cardeal Sarah retificasse todos os graves mal-entendidos oferecidos pelo seu comentário constitui uma passagem decisiva do pontificado de Francisco e da implementação do Concílio.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado na revista Adista Notizie, 04-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O caso da carta de 15 de outubro, com a qual o Papa Francisco pontualizou o conteúdo do motu proprio Magnum Principium, tem algo de exemplar para a história da Igreja dos últimos 50 anos.
De fato, depois de uma primeira fase de entusiasmo pela liturgia, o magistério eclesial pós-conciliar, a partir dos anos 1980, começou, cada vez mais, a se tornar desconfiado e quase a se desesperar com a liturgia e a reforma da Igreja.
Ou, melhor, foi se criando uma espécie de equação: assim como à Reforma litúrgica devia se seguir a reforma da Igreja, assim também a resistência à liturgia significava, para muitos, a restauração da Igreja pré-conciliar.
Especialmente a partir do início do novo milênio, sobretudo por iniciativa direta e coerente de Joseph Ratzinger – primeiro como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e, depois, como Papa Bento – lançaram-se as premissas desse “desespero litúrgico”: com a Liturgiam authenticam (2001), estabelecia-se o primado absoluto da língua latina sobre as línguas faladas; com a Redemptionis Sacramentum (2004), desconfiava-se da “assembleia celebrante”; com o Summorum Pontificum (2007), criava-se até um “regime paralelo extraordinário” foi criado em relação à liturgia reformada.
A tentativa de compreender essa tendência como “fidelidade ao Concílio Vaticano II” soava como retórica vazia, que escondia a remoção do próprio Concílio.
O Papa Francisco, embora mantendo um perfil baixo sobre a liturgia até alguns meses atrás, a partir de meados deste ano, compreendeu melhor que, nesse âmbito, escondia-se uma das oposições mais insidiosas não tanto ao seu pontificado, mas à implementação do Concílio Vaticano II, que parece ser o coração do seu pontificado.
Assim, depois de reiterar a irreversibilidade da Reforma litúrgica e a vaidade de toda tentativa de “reforma da reforma”, ele interveio com o Magnum Principium para reabrir o terreno da “inculturação” nas traduções dos textos litúrgicos.
A tentativa paradoxal e quase cômica com a qual o cardeal Sarah se opôs a essa justa retomada do Vaticano II chegou a propor, com a autoridade de prefeito da Congregação do Culto, uma interpretação “autêntica” do Magnum Principium, que gritava vingança ao céu, por contrariedade em relação ao texto oficial.
O fato de o próprio papa ter tomado papel e caneta e pedido formalmente que o cardeal retificasse todos os graves mal-entendidos oferecidos pelo seu comentário constitui uma passagem decisiva do pontificado de Francisco e da implementação do Concílio.
Ele estabelece que:
- deve acabar a tentativa de reduzir o Vaticano II a nada, como aconteceu muito frequentemente nesses últimos 30 anos, com a complacência de amplos setores da hierarquia;
- a autoridade das Conferências Episcopais não pode ser simplesmente passada por cima por parte do centralismo romano;
- a tentativa desajeitada de fazer com que os textos digam aquilo que se quer deve ser abertamente censurada, especialmente quando quem faz isso são autoridades que deveriam usar responsavelmente o seu poder;
- existe uma evolução do Magistério e que, nem no centro nem na periferia, pode-se acreditar que se está autorizado a continuar por inércia nas práxis anteriores;
- a retomada de um diálogo profundo entre Igreja e mundo, entre fé e cultura, é uma passagem pastoral vinculante, que ninguém, nem mesmo um prefeito, pode sonhar de evitar.
A carta foi endereçada apenas ao cardeal Sarah. Mas, na realidade, ela fala a todos aqueles que, no centro assim como na periferia, pensaram que poderiam simplesmente fazer como se nada tivesse acontecido, perpetuando um estilo eclesial tão irrelevante quanto autorreferencial, talvez disfarçando-se de “Igreja em saída”, o que, certamente, a Sarah, não podemos repreender de modo algum.
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Vaticano II com direito de resposta. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU