31 Outubro 2017
Professor na Universidade de Roma e reconhecido pensador da política, Giacomo Marramao disseca, nesta entrevista – realizada por correio eletrônico –, a situação das democracias atuais, sua crise e desafios. Convidado pelo Programa de Estudos da Cultura da Universidade Nacional Arturo Jauretche, participará de conferências nos dias 2 e 3 de novembro. Em seus inícios, Marramao indagou na história do marxismo para, depois, se voltar aos paradoxos da secularização. Mais tarde, ocupou-se dos efeitos da globalização e da vivência social do espaço e o tempo.
A entrevista é de José Fernández Veja, publicada por Clarín-Revista Ñ, 27-10-2017. A tradução é do Cepat.
Enquanto se reprimia o referendo catalão, na outra ponta da península, o socialismo português conseguia o melhor resultado de sua história, mas com alta abstenção. Pouco antes, o alemão havia obtido o pior e o francês quase se autodissolvia. Como avalia este confuso panorama?
O primeiro aspecto a ser considerado é que a Europa se apresenta hoje, e não só do ponto de vista político, como um espaço de geometrias variáveis. Não pode surpreender, portanto, que em alguns países ou regiões possam se manifestar tendências favoráveis a forças de esquerda em relação à tendência mais geral favorável a forças moderadas, conservadoras ou explicitamente orientadas à direita. O fenômeno politicamente decisivo, no entanto, é o que representa a progressiva dissolução dos partidos tradicionais e o surgimento de movimentos de natureza distinta em relação àquelas tipologias que tínhamos nos habituado na segunda metade do século XX.
O segundo aspecto, ao contrário, é representado pelas pressões autonomistas favorecidas justamente pelas dinâmicas pós-nacionais desencadeadas pelas lógicas da União Europeia, uma entidade técnico-administrativa incapaz de se transformar em um sujeito político. A aceleração das pressões independentistas da Catalunha deve ser considerada a partir desta perspectiva pós-estatal ou, como prefiro defini-la, “pós-leviatânico” (pelo clássico de Hobbes, Leviatã). Neste contexto, o governo de Madri está cometendo o erro de se apoiar no Leviatã, incitando para posições radicais, inclusive, os catalães que tinham maiores dúvidas e inseguranças.
Que referências a filosofia política ainda oferece para tentar capturar a situação presente?
Reler os clássicos do pensamento político, de Platão a Aristóteles, de Hobbes a Spinoza, de Hegel a Marx, resulta hoje cada vez mais importante. Contudo, para decifrar os “sinais dos tempos”, para captar a lógica de nosso presente, devemos recorrer aos grandes teóricos da “conjuntura”, como Maquiavel e Gramsci. Um autor como Foucault é muito mais útil por sua análise do ordoliberalismo do que por suas sugestões acerca da biopolítica, um rótulo filosófico hoje em voga, que tomou o lugar do desconstrutivismo, dando lugar a um novo “jargão da autenticidade”. A biopolítica não parece ter muito a dizer sobre a nova revolução tecnológica surgida do cruzamento entre robótica genética e inteligência artificial e cuja onda expansiva está por nos alcançar com um impacto ao menos similar ao da globalização.
Você foi um dos primeiros a integrar a reflexão progressista ao polêmico pensador reacionário Carl Schmitt. Que atualidade confere a seu pensamento?
Comecei a estudar Schmitt a partir dos anos 1970. No ano acadêmico 1977-1978, dei o primeiro curso dedicado a ele, desde o fim da Segunda Guerra, em uma universidade italiana. E, em 1979, o trabalhei em relação ao marxismo em meu livro O político e as transformações, publicado em espanhol por Siglo XXI, na coletânea Pasado y Presente, dirigida por José Aricó. Estou convencido de que Schmitt, Gramsci e os intelectuais da Teoria Crítica de Frankfurt nos ofereceram as análises mais agudas sobre a metamorfose do “político” e acerca das lógicas do poder no período entreguerras. Quanto ao tema do “estado de exceção”, retomado em seus excelentes trabalhos por meu velho amigo Giorgio Agamben, que o vincula com Walter Benjamin e a tradição do direito romano, sugeriria diferenciá-lo claramente dos estados de exceção “formatados” das políticas atuais. Nelas, trata-se, na realidade, da criação artificial de situações de emergência orientadas à gestão estratégica do medo.
A filosofia política conserva algum papel ou foi deslocada pela chamada ciência política, a qual os meios de comunicação recorrem em busca de interpretações e opiniões?
O rótulo “filosofia política” nunca me agradou, embora uma das duas matérias que leciono leve esse nome. Por duas razões decisivas. Em primeiro lugar, porque filosofia e política se encontram em um campo de tensão mútua. Em segundo lugar, porque – como dizia Maquiavel – o conhecimento dos grandes textos do passado não serve para nada, caso não seja visto em relação à experiência direta dos fatos presentes. O que conta é o movimento de retroalimentação da “realidade efetiva” sobre a teoria ou sobre a lógica do conceito; a reversão das práticas políticas concretas sobre a filosofia.
Como entender a gravitação da palavra política do Papa Francisco, sobretudo entre o progressismo italiano, à luz de suas próprias investigações acerca do ocaso da presença da fé em nossas sociedades?
Em meus trabalhos, a partir de Poder e secularização e de Céu e terra, chamei a atenção sobre as interpretações unilaterais do “desencanto” segundo Max Weber. A racionalização do “mundo administrado” e a deflação simbólica dos partidos tradicionais estão produzindo, em uma heterogênese dos fins (ou diversa origem dos fins), uma necessidade de “grande política” que o Papa Francisco soube captar com extraordinária sagacidade. Impressionou-me muito que, nos últimos tempos, tenha insistido sobre um tema central de meus livros Passagem ao Ocidente e A paixão do presente: a necessidade de um “universalismo das diferenças” como única via para enfrentar os desafios da globalização e para canalizar um “reencantamento” pós-ideológico da política.
As democracias “sem povo”, segundo as definiu, seriam uma nova forma de oligarquia. Que movimentos, intelectuais ou sociais, poderiam se opor a esta deriva?
A crise da democracia não é uma simples crise de representação, mas, sim, uma crise que penetra completamente a forma democrática tal como a herdamos dos dois últimos séculos da modernidade. Se não repensarmos seriamente a relação entre o global e o local, rede e território, sociedade da comunicação e dominação oligárquica, nunca conseguiremos nos libertar da oscilação pendular entre elitismo pós-democrático e neopopulismo midiático. Este, diferente do populismo teorizado por meu lamentado amigo Ernesto Laclau, não se funda sobre a construção política do conceito de povo, mas, ao contrário, sobre sua desestruturação e sua redução à categoria de “audiências”, forma da mercadoria por excelência na época da indústria cultural e do capital global.
O único caminho para superar esta “síndrome do espectador”, com sua inevitável alternância entre subalternidade passiva e protesto estéril – tal como tentei demonstrar em Contra o poder –, é recolocar no centro a política como horizonte de sentido da ação individual e coletiva e como nexo entre as formas de vida e nosso ser em comum. Uma democracia despolitizada, sem paixão política, não só carece de condições para enfrentar o dramático problema da crescente desigualdade entre ricos que seguem enriquecendo e pobres que seguem empobrecendo, como também nem sequer está em condições de produzir sociedade. É o que começaram a compreender amplos setores de jovens (e não tão jovens) que, na Europa e em toda a América, estão abrindo passagem a novos movimentos que reivindicam uma radical estruturação das instituições democráticas.
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“Para captar a lógica de nosso presente, devemos recorrer aos grandes teóricos da conjuntura”. Entrevista com Giacomo Marramao - Instituto Humanitas Unisinos - IHU