20 Outubro 2017
Na noite entre 26 e 27 de março de 1996, sete dos nove monges trapistas que formavam a comunidade do mosteiro de Tibhirine, fundado em 1938, perto da cidade de Médéa, a 90 km ao sul de Argel, foram sequestrados por um grupo de terroristas. No dia 21 de maio do mesmo ano, após inúteis negociações, o autoproclamado “Grupo Islâmico Armado” anunciou a morte deles. No dia 30 de maio, foram encontradas as suas cabeças, cujos corpos nunca foram descobertos.
A reportagem é de Pierluigi Mele, publicada por Confini, 17-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A causa de beatificação desses mártires está em andamento. Em que ponto está? Conversamos a respeito com o padre Thomas Georgeon, postulador da causa.
Padre Georgeon, em 2013 você foi nomeado postulador para a causa de beatificação dos monges trapistas de Tibhirine, na Argélia, mortos pela violência do islamismo radical na primavera de 1996. A causa também diz respeito a outros 12 religiosos católicos, que, entre 1994 e 1996, foram vítimas da violência terrorista. Entre eles, está também Dom Clavérie, um expoente de destaque da Igreja da Argélia. Você, junto com os bispos da Argélia, nas últimas semanas, foi recebido pelo Papa Francisco. Como se sabe, o pontífice traz muito perto do coração essa beatificação. Algumas vozes vaticanas falam de uma virada positiva no caminho de beatificação. Isso significa que eles logo serão beatificados?
A Santa Sé acompanha essa causa há muito tempo e com cautela. Devemos respeitar o procedimento da Congregação para as Causas dos Santos. Ainda falta uma última etapa, que, esperamos, poderá levar à beatificação em breve. É verdade que a congregação, desde o início, sempre foi generosa e solidário no modo de tratar a causa e o postulador, e sou muito grato por isso.
O Papa Francisco nos recebeu com grande atenção e conhece bem a causa e os desafios que ela representa. O encontro foi muito positivo; para mim, o ponto mais bonito e significativo do encontro foi a pergunta do papa sobre o jovem muçulmano morto junto com Dom Clavérie. Se fosse possível, eu acho que o Papa Francisco o acrescentaria à causa! E aqui encontramos todo o sentido profundo e espiritual dessa causa: um martírio com os muçulmanos e não contra eles. Os 19 supostos mártires optaram por permanecer fiéis a um povo, a uma terra, a uma Igreja que sofriam. Mas o amigo de verdade não vai embora quando o outro sofre, mas fica perto dele e vive a compaixão.
Gostaria de acrescentar que nos encontramos diante de uma causa de santidade coletiva ou comunitária, redescoberta hoje pela Igreja (foi uma das intuições fortes de Chiara Lubich) e que, muitas vezes, na história da Igreja, foi um aspecto essencial do martírio. Os nossos 19 mártires, se fossem beatificados, seriam uma grande luz para a Igreja, testemunhas do diálogo mais autêntico entre cristãos e muçulmanos, testemunhas da Luz do amor de Jesus.
Não há dúvida de que essa beatificação também se situa em uma conjuntura complicada para o Islã, e a Argélia é terra de Islã. Existe o risco de ferir a sensibilidade islâmica? Em suma, como essa beatificação é vista no ambiente do Islã da Argélia?
O Papa Francisco nos pediu para sermos muito delicados, porque não se deve ferir, é preciso que a evocação desse caso seja uma oportunidade para olhar para o futuro. Mas, sem dúvida, sempre existe o risco de ferir a sensibilidade. Por isso, é necessário fazer catequeses apropriadas sobre o sentido cristão do martírio. Catequeses para os cristãos, mas também para os muçulmanos argelinos. O mártir é aquele que dá a sua vida pelos outros, e não aquele que se explode no meio da multidão para matar. O sentido da palavra “martírio” é “testemunho”. Nesse sentido, esses mártires foram testemunhas de Cristo e da amizade que pode criar laços estreitos com o outro, mesmo que não compartilhe a mesma fé. Não é o homem que converte o outro, só Deus pode fazer isso.
No contexto atual da Argélia, há um caminho de pacificação claro e o desejo do país de curar as feridas ainda abertas em todas as comunidades muçulmanas e cristãs (durante a década negra, de 1990 a 1998, fala-se de 200 mil vítimas). Parece justamente que uma eventual beatificação poderia ser a contribuição da Igreja para esse caminho. Obviamente, é preciso explicar bem o que é uma beatificação e que não se tratará de mostrar bons cristãos mortos por muçulmanos maus. Parece que o governo pode acolher bem a eventualidade de uma beatificação celebrada no país. Oposição sempre haverá, até mesmo na Igreja!
Voltemos a falar dos sete monge do Atlas. Recordemo-los com os seus nomes: Christian, Luc, Christophe, Michel, Bruno, Celestin e Paul. Eles vinham de experiências diversas, mas, na simplicidade da Trapa, uma vida de contemplação e de amizade com o Senhor, e, na humildade do trabalho deles, foram um sinal de esperança para aquelas populações da Argélia profunda. Qual era a visão deles sobre o Islã?
A visão deles sobre o Islã não era unitária! Christian, tanto pela sua história, quanto pelos seus estudos, era o mais envolvido na dinâmica do diálogo com o Islã. Quando ele foi eleito prior da comunidade, em 1984, ele tentou levar os seus irmãos ao seu caminho, mas nem todos compartilhavam a sua meta. Houve tensões. Alguns irmãos não estavam em Tibhirine por causa do Islã, mas mais pela radicalidade de escolha, pobreza, escondimento... E todos tinham as suas reservas em relação a uma teologia do diálogo conceitual demais. Eles preferiram escolher o caminho do diálogo da salvação, do diálogo espiritual e do diálogo da vida. O famoso “viver juntos” que custamos a viver hoje.
O Islã de que Christian falava, era um Islã particular, aberto ao diálogo, o dos sufis que iam ao mosteiro, mas que não representa o Islã em geral, menos aberto e menos desejoso de laços com os cristãos. Para Christophe, as suas relações com os fiéis do Islã tinham como objetivo aprender com eles o que o Senhor queria lhe dizer através desse contato. Eu não acho que ele se portava como alguém que quer ensinar. Michel alimentava-se dos encontros de oração com os sufis; o seu olhar sobre o Islã se assemelhava a um caminho compartilhado rumo a Deus, em que nos ajudamos mutuamente... Em suma, podemos entender a sua visão se falarmos de esperança. Esperança de que cada um pudesse entender qual era o projeto de Deus para todos os homens, isto é, levar à comunhão, à sua comunhão, entre todos os homens.
Parágrafo final do testamento escrito pelo Pe. Christian de Chergé (Foto: Moines-tibhirine.org)
Falando deles, não se pode deixar de falar do prior, Christian de Chergé, e do seu testamento escrito pouco antes de ser morto. Um documento extraordinário. “Se algum dia me acontecesse – e isso poderia ser hoje – de ser vítima do terrorismo que parece querer englobar agora todos os estrangeiros que vivem na Argélia, eu gostaria que a minha comunidade, a minha Igreja, a minha família se lembrassem de que a minha vida foi DOADA a Deus e a este país”. Assim escreveu Christian no seu testamento. Uma sintonia com a Igreja das periferias, tão cara ao Papa Francisco. Uma Igreja que não faz proselitismo, mas se coloca em amizade humana com os pobres da Argélia. Entendi bem a visão eclesiológica de Christian?
Sim, a palavra verdadeira é “amizade”, encontrar o outro na sua diferença, para se enriquecer mutuamente. Ir rumo a Deus e ir rumo ao outro é uma coisa só, e eu não posso fazer outra coisa, dizia o Pe. Christian. A mesma gratuidade é necessária, e não se pode seguir em frente sem se despojar e sem risco. Uma coisa que chama a atenção é o desejo dos irmãos de não caírem em um comunitarismo que excluísse o outro. Para eles, havia uma consciência de uma presença a ser vivida lá onde Deus os havia chamado: o serviço da oração e do encontro, uma visitação de amizade. Nada de transcendental... mas uma casa na casa do Islã. Uma pequena sala amiga que se abre àquilo que une. Christian não acreditava muito no diálogo teológico. Para ele, o diálogo era, acima de tudo, existencial, isto é, a vida com os vizinhos e as pessoas do país, por meio da partilha das atividades cotidianas e da acolhida ao mosteiro.
A Argélia sempre foi um “laboratório” histórico do diálogo entre o cristianismo e o Islã. Um diálogo que, no século XX, teve grandes protagonistas: Luis Massignon, os Irmãozinhos de Charles de Foucauld, o cardeal Duval (grande amigo do Papa Paulo VI), sem esquecer os padres dominicanos do Cairo e, mais perto da Itália, o padre jesuíta Paolo Dall’Oglio. O que o “Espírito de Tibhirine” pode trazer hoje ao diálogo entre Islã e cristianismo?
Tibhirine é um silêncio que se tornou Palavra. Seria preciso saber o que é realmente o “espírito de Tibhirine”. Ninguém conhecia Tibhirine antes... pobres monges que viviam nas montanhas da Argélia... Além disso, “Deus escolheu o que é loucura no mundo para confundir os sábios; e Deus escolheu o que é fraqueza no mundo para confundir o que os fortes”, como diz São Paulo. Esse é o primeiro sinal... Não devemos ter medo da nossa fragilidade, da nossa pequenez, devemos aceitá-la e vivê-la, porque é lá onde Deus se revela a nós e nos revela diante dos outros.
Parece-me que o espírito de Tibhirine é uma espécie de encargo espiritual que todos nós recebemos: buscar o rosto de Deus no outro, mesmo que creia diferentemente de mim. Dar sentido de novo para a diferença no cotidiano das nossas vidas. Se ignorarmos o outro, então crescerá o comunismo, porque se pensará que o outro é apenas um perigo e que é melhor nos trancarmos entre nós, cercados por aqueles que se parecem conosco. Mas eis que os irmãos de Tibhirine nunca se curvaram sobre si mesmos, nem mesmo nos momentos mais perigosos. E, talvez, um último pensamento que eles nos deixam: uma vida sem Deus não tem sentido.
O mosteiro de Tibhirine era um “sinal na montanha”. A Ordem de vocês pensa que o tempo do retorno ao Atlas está maduro?
Infelizmente, o tempo ainda não está maduro. Por diversos motivos, em primeiro lugar, eu diria, porque existe um peso conhecido de herança que não é pequeno. Obviamente, por parte das pessoas dos arredores, assim como por parte da Igreja da Argélia, há uma expectativa, um desejo de ver os monges voltarem para Tibhirine. A nossa Ordem tentou enviar uma comunidade para a Argélia. Eu fui um dos monges que tinham se disposto a voltar para lá. Depois de alguns meses, em 1998, eu entendi que ainda era cedo demais. Era necessário dar tempo ao tempo. Alguns irmãos permaneceram, com grande coragem, em Argel até 2001. Depois, a tentativa foi concluída por causa da impossibilidade de habitar no mosteiro por motivos de segurança. De 2001 a 2016, graças à tenacidade e ao imenso trabalho do padre Jean-Marie Lassausse, o mosteiro permaneceu vivo, tornando-se meta de peregrinação para os cristãos e para os muçulmanos. Há um ano, a comunidade do Cremini Ne tentou viver no mosteiro, para garantir uma continuidade. É difícil, e não se sabe como isso vai acabar. Mas o mosteiro continua sendo propriedade da nossa Ordem e... quem sabe, um dia, será possível ver monges vivendo novamente lá.
Última pergunta: vocês pertence à ordem de Thomas Merton. Uma figura extraordinária da espiritualidade do século XX. Um homem de contemplação, mas também de profecia sobre a história do homem. Então, eu lhe pergunto: por que a Trapa pode ser um sinal de profecia no mundo?
Eu acho que já somos um sinal de profecia mesmo sem querer! Somos chamados a viver com autenticidade cada vez maior a nossa vocação e a nossa consagração, levando em conta as exigências do presente, de modo a sermos testemunhas da oração assídua, de sobriedade, de unidade na caridade. Eis o resumo das palavras do Papa Francisco ao nosso Capítulo Geral do dia 23 de setembro passado. Todos os elementos da nossa vida devem convergir para criar um espaço no coração do mosteiro e no coração de cada um onde Deus e Cristo possam ser descobertos como o verdadeiro centro da vida. Isso requer a gratuidade que falta tanto no nosso mundo. Mas mostrar que a união com Deus leva à unificação da vida em Deus é uma verdadeira missão no mundo e na Igreja de hoje. É por isso que as pousadas dos mosteiros estão cada vez mais cheias de pessoas que procuram como chegar ao encontro com Cristo para dar um autêntico significado para a vida. O mundo de hoje às vezes se assemelha a um deserto moderno, e nós tentamos viver uma vida comunitária de comunhão, onde, assim como para todos os homens, há quem sofre e quem luta... Profecia de comunhão!
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Mártires por Cristo e amigos do Islã: monges de Tibhirine, beatificados em breve? Entrevista com o padre Thomas Georgeon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU