04 Outubro 2017
Sociólogo português afirma: Naomar Almeida, que acaba de se exonerar da UFSB, “foi o dirigente que levou mais longe o projeto de democratizar a universidade”, diz Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, em nota publicada por Outras Palavras, 03-10-2017.
Naomar Almeida Filho, reitor pro-tempore da Universidade Federal do Sul da Bahia, acaba de pedir a exoneração do cargo por razões que são esclarecidas na Carta Aberta que segue abaixo. A exoneração do Reitor Naomar, um dos mais brilhantes reitores da sua geração, representa um duro golpe para todos e todas que lutamos pela democratização e, mais amplamente, pela refundação da universidade de modo a prepará-la para os desafios do século XXI.
O reitor Naomar foi sem dúvida, do meu conhecimento, o alto dirigente universitário que levou mais longe e mais fundo o projeto de democratizar social, política, cultural e epistemologicamente a universidade. A universidade brasileira perde um dos seus mais inovadores dirigentes e essa perda reflete-se em toda a comunidade acadêmica brasileira e latino-americana e, de maneira muito particular, no Centro de Estudos Sociais e na Universidade de Coimbra, que tinham com a UFSB um convénio de cooperação muito vinculado às inovações que estavam a ter lugar no Sul da Bahia.
A Carta Aberta é muito eloquente quanto às razões da exoneração do reitor Naomar. É particularmente reveladora do modo como a degradação da democracia brasileira a que assistimos nos últimos tempos se vai repercutindo em toda a sociedade brasileira — inclusive naqueles setores que, por formação e missão, deviam estar mais imunes a tal degradação. Obviamente que uma parte significativa da comunidade acadêmica da UFSB está tão consternada e revoltada quanto nós com as razões que levaram o reitor Naomar a tal decisão. A nossa solidariedade para com eles e elas é total.
Peço a todos e todas que estiverem de acordo com os termos desta carta que a divulguem o mais possível. É um serviço que todos e todas prestamos à universidade pública brasileira, ultimamente tão anti-democraticamente atacada, para que ela siga na senda de renovação e de democratização que tornaram possíveis reitores com a qualidade cientifica, o espírito de renovação e a capacidade de inovação institucional que caracterizam o reitor Naomar.
Ao reitor Naomar manifestamos toda a nossa solidariedade e esperamos vivamente que as suas ideias e aspirações continuem a dar frutos noutras instituições, tanto no Brasil como no estrangeiro. Estamos certos que não lhe faltarão oportunidades para prosseguir a sua missão com o que todos e todas ganharemos.
Por Naomar de Almeida Filho
Itabuna, Porto Seguro, Teixeira de Freitas, 29 de setembro de 2017
Dirijo-me não apenas a estudantes, servidores técnico-administrativos e docentes, mas incluo na comunidade da UFSB membros da sociedade, representantes de movimentos sociais, familiares de alunos/as, lideranças políticas, apoiadores e parceiros de nossa instituição.
Hoje comuniquei ao Consuni minha exoneração do cargo de Reitor pro-tempore desta Universidade. Escrevo esta carta aberta com o objetivo de explicar as circunstâncias deste ato. Antes farei breve súmula dos antecedentes.
Assumi a Reitoria da UFSB em 2013. Convidei colaboradores do tempo em que fui Reitor da UFBA para compor a primeira equipe de gestão. Em conjunto, concebemos seu projeto político-institucional, elaboramos a Carta de Fundação e o Plano Orientador, realizamos prospecção do território, discutimos o modelo proposto com a comunidade regional, recrutamos os primeiros grupos de docentes redistribuídos e conduzimos os primeiros concursos de servidores docentes e técnico-administrativos. Reiterando o estilo de gestão com que conduzi o reitorado na UFBA, concentrei-me em aspectos conceituais, políticos e pedagógicos, delegando a outros dirigentes a dimensão administrativa, particularmente o gerenciamento do cotidiano e a gestão de pessoas.
Em quatro anos, apesar do contexto adverso, implantamos um modelo de universidade inovador em muitos aspectos: ampla cobertura territorial mediante a criação de uma rede de colégios universitários, regime letivo quadrimestral multiturno, modelo curricular flexível, em ciclos de formação, fortemente integrado à educação básica, com base em pedagogias ativas mediadas por tecnologias digitais. Além disso, o modelo de integração social que praticamos buscou promover ampla inclusão étnico-social, respeito à diversidade de saberes e engajamento da sociedade na governança institucional, com representação política efetiva nos órgãos consultivos e deliberativos da Universidade.
A partir de 2015, frente ao agravamento da crise política e subsequente redução do financiamento da universidade pública brasileira, sofremos profundo desgaste interno, intensificado pela suspensão de novos concursos federais, fomentando incerteza e angústia na comunidade universitária. Não obstante, honramos nosso compromisso com a população sul-baiana ao acolher anualmente o mesmo número de estudantes desde o início de nossas atividades. Ainda naquele ano, mobilizando mais de três mil participantes de todos os segmentos sociais, conseguimos realizar o evento mais marcante de nossa curta história, o I Fórum Social do Sul da Bahia, que elegeu o Conselho Estratégico Social da UFSB. No ano seguinte, iniciamos cursos de pós-graduação e mantivemos a oferta de vagas de graduação, dando prioridade aos Colégios Universitários. Assim, consolidamos as licenciaturas interdisciplinares e implantamos os primeiros Complexos Integrados de Educação, principal ajuste ao nosso projeto original.
Ao priorizar a missão social da Universidade, promovendo o protagonismo dos conselhos sociais em todos os planos e mantendo abertura de vagas de graduação – possibilitada pela grande dedicação de uma parcela de docentes, gestores e servidores –, definimos com clareza os rumos da UFSB como uma universidade socialmente referenciada. Atos de hostilidade e agressão, inicialmente concentrados num pequeno grupo, começaram a aparecer em nosso cotidiano, replicando a deterioração do ambiente político nacional. Ações de evidente sabotagem, inclusive de dentro da equipe de gestão, criaram obstáculos à nossa agenda de integração social. Esse movimento conseguiu, por exemplo, cancelar o Congresso Geral da UFSB previsto para o ano passado (inviabilizando o II Fórum Social neste ano), além de boicotar tanto inovações curriculares de maior potencial inclusivo e quanto a articulação com a educação básica.
Concluída a eleição dos decanos das unidades universitárias, tomei a iniciativa de recuperar a pauta deliberativa que estava bloqueada, solucionando mais de dois terços das pendências identificadas. Nesse momento, membros da equipe gestora revelaram seu distanciamento da orientação político-institucional do projeto. Alguns desses movimentos revelaram oportunismo, ameaçando desestabilizar a gestão da universidade, comprometendo a própria viabilidade institucional do projeto da UFSB. No contexto de definição das regras de seleção para o segundo ciclo, um membro da administração central, sem prévio conhecimento e avaliação da equipe gestora, propôs conceder a todos os estudantes atualmente matriculados no BI-Saúde acesso ao curso de Medicina, de modo escalonado.
A tabela abaixo apresenta dados reais do alunado do BI-Saúde 2014-2016 (incluindo estimativas de migração inter-cursos a partir de 2017). Notem que o suposto básico dessa proposta é o cancelamento de entradas no BI-Saúde, por seis anos seguidos, já no próximo processo seletivo. De fato, a proposta atrasa e reduz a oferta de vagas no segundo ciclo para as turmas seguintes à de 2014, prejudicando particularmente as coortes de estudantes que entraram no BI-Saúde entre 2015 e 2017. Em 2018, após a entrada dos 57 estudantes não classificados do ano anterior, restarão apenas 23 vagas para a turma concluinte de 2016. Mantendo-se o patamar de oferta de 80 vagas, observe-se, em vermelho, o déficit anual provocado pelo escalonamento da entrada nos anos seguintes daqueles que não se classificaram no processo seletivo do respectivo ano de conclusão do primeiro ciclo.
O déficit cresce proporcionalmente, favorecendo os poucos que entraram primeiro e prejudicando aqueles que se agregariam posteriormente. No caso em pauta, com o aumento da turma de entrada no BI, já em 2019 anular-se-ia a entrada para a turma de 2015.2, com um déficit de quase 100 vagas. Nessa proposta, os últimos estudantes da turma de 2017.2 somente entrariam no curso de Medicina em 2026, nove anos depois.
Pelo exposto, tal proposta infligirá danos severos ao projeto da UFSB e ao modelo pedagógico da universidade e, por extensão, ao movimento pela promoção da saúde, ao SUS, ao projeto político de uma universidade socialmente inclusiva, e à educação superior pública. Além disso, confronta pontos centrais do modelo de ensino-aprendizagem da UFSB. Nesse aspecto, destacam-se valores cruciais capazes de gerar efeitos formativos da maior importância para o campo da Saúde: responsabilidade política, compromisso social, autonomia, honestidade e sobretudo ética.
Enfim, a proposta em questão é um flagrante desrespeito à lógica do planejamento anteriormente pactuado na universidade, podendo resultar num grande engodo, criando problemas de difícil solução. Ainda acreditando na natureza humana, espero que tenha sido apenas um ato impensado, com a boa intenção de efetivamente resolver dilemas e atender demandas de nosso bravo e engajado corpo discente. Porém o lançamento dessa proposta num lance de oportunidade revela uma séria questão de responsabilidade, talvez explicável pelo contexto atual da nossa universidade, debatendo-se numa crise interna, alimentada por intrigas e manobras. Mobilizam-se insatisfações, ansiedades, ressentimentos, infelicidades, deslocamentos, projeções, fomentando um ambiente de ódio, hostilidade, incompreensão e rancor.
Além disso, a sequência de movimentos que geraram este fato precisa ser entendida no plano micro-político. Na semana passada, abriu-se um processo eleitoral para o primeiro Reitorado. Esse processo tem mera aparência de legalidade, mas é claramente ilegítimo. Restrito aos segmentos que convencionalmente compõem a comunidade universitária, docentes, servidores e estudantes, ao excluir a sociedade do território como quarto ator nos processos de escolha de dirigentes, o processo confronta princípios e valores da Carta de Fundação da UFSB. E de legalidade tem somente uma casca, talvez uma camuflagem, porque não segue regras e normas da democracia de alta intensidade que a duras penas temos tentado consolidar na instituição; não segue o Estatuto da Universidade nem as normas do Conselho Estratégico Social aprovadas pelo Conselho Universitário.
Que tipo de política estariam praticando os que promovem esse golpe? Certamente a de mais baixo nível, incompatível com a dignidade da instituição milenar da Universidade. Qual a diferença disso para a trágica, lamentável e vergonhosa crise política do país, depois do triste espetáculo de um impedimento presidencial injusto, embora protegido pelo manto da legalidade? Processo dito democrático, porque seus atores foram eleitos por voto popular? Desde quando a democracia prescinde da ética? Fins escusos justificam os métodos da traição? Meios podres para finalidades ainda piores?
Me entristece demais constatar o grave impacto negativo da cultura política instalada no país: negociação de cargos, compra de votos, tráfico de influência, corrupção que não se faz somente com malas de dinheiro; cargos, favores e privilégios também servem como eficiente moeda de troca. Será que nossa instituição educadora se encontra distante dessa realidade? Será que atos dessa natureza, favorecimentos e acordos escusos, não ocorrem nos campi universitários? Que efeitos pedagógicos lances de oportunismo, ambição e desonestidade terão sobre nosso alunado e sobre a sociedade, nesta instituição? Desmontar um projeto contra-hegemônico de universidade crítica, popular, transformadora? Desconstruir uma proposta porque incomoda profundamente os que querem o mínimo legal, aqueles que pretendem ficar na zona de conforto para fazer um pouco mais do mesmo?
Ao apresentar o projeto da UFSB, nos mais diversos foros e audiências nacionais e internacionais, com frequência me perguntavam sobre a viabilidade política de um projeto como o nosso, já que propostas semelhantes foram duramente reprimidas em duas oportunidades na história brasileira. Também me questionavam como seria possível construir o novo com pessoas formadas nas velhas práticas, com matrizes mentais antigas. Creio que as respostas que dei foram equivocadas. Frente à primeira questão, dizia: não é mais o mesmo momento, os projetos anisianos enfrentaram ditaduras; hoje o Brasil é diferente, somos uma democracia que se consolida a cada dia. Com relação à segunda, disse e repeti: felizmente em nossa equipe temos pessoas honestas e leais ao projeto. Contamos com um grupo de gestão coeso e fiel, não temos o que temer. Em apenas três anos, o cenário mudou totalmente, pois no contexto nacional vivemos um claro retrocesso político, à beira do fascismo social, e no contexto local sofremos um duro golpe, disfarçado de legalismo.
A dirigentes que buscam um projeto individual, articulado a uma oposição raivosa, pessoas que manifestam ódio e fazem assédio moral enchendo minha caixa de mensagens, sigam em frente. Façam seus movimentos sinuosos, sub-reptícios e escusos, movimentos políticos de cartas marcadas e acordos já feitos, com sinais de conspiração traiçoeira tão evidentes que nem é preciso muita experiência de vida para detectá-los, mesmo nesta cena. Já que está assim, vão em frente e vejam até onde conseguem chegar, o que pretendem destruir e a quem podem enganar. Se é para remover do cargo este servidor público que se incumbe de uma função temporária de gestão, não precisam gastar tanta energia, realizar tanta conspiração, tantos jogos de sombras. É simples: a exoneração do Reitor resolve…
Gostaria de fazer uma citação ao Sr. Joelson Ferreira, agricultor, liderança dos assentados rurais, representante do Conselho Estratégico Social no Consuni da UFSB. Pena que ausente neste momento, neste Conselho. Joelson tem dito que falta grandeza nessa luta intestina, nessa luta contra a instituição, para lamentar que a baixa política se mostra na pequenez de conflitos que enfraquecem e dividem aquelas e aqueles que deveriam se engajar nas lutas sociais maiores. E novamente Joelson nos adverte que esta universidade não nos pertence, não é propriedade de docentes, servidores e mesmo de estudantes. É um patrimônio do sofrido povo do território que nos abriga e inspira, principalmente dos que nela não se encontram. Por esse motivo e por tantas outras razões históricas e políticas, postulo e defendo a intensa participação social na governança institucional das instituições públicas, sobretudo em universidades que, como a nossa, se definem pela democratização ampla de seus processos e pela grandeza de sua missão.
Estou concluindo esta comunicação. Vejam que é uma fala ponderada, refletida, pensada, mas com emoção. Pretendi mostrar que muitos se dedicam a diminuir o que fizemos, sem consciência da grandeza deste projeto, do que nossa Universidade pode representar para a população desfavorecida que precisa de educação para sua libertação política.
Somos todos responsáveis por nossas ações, porque a história está aí para nos julgar; às vezes demora, mas não costuma falhar. Dois companheiros que prezo muito, Álamo Pimentel e Fabiana Lima, costumam se emocionar ao falar da UFSB, já os ouvi várias vezes dizer que estamos fazendo história. Gostaria de refletir que, além de fazer história, nossa prática política nos obriga a também escrever a história, com atos e fatos e não como ficção. A sociedade sabe bem quem são seus interlocutores, a quem perguntar sobre o que está acontecendo na UFSB. Alguns de nós são interlocutores de maior credibilidade e por isso são mais solicitados a produzir narrativas que vão ressoar, se tornarão memória e serão registradas devidamente. Estou pronto para contar e registrar essa história. Nessa carreira de professor, tão recompensadora e apaixonante, que se constrói na permanente recriação dessa instituição que se chama universidade, narrar é uma tarefa para os retirados, os jubilados, aqueles que no Brasil se chama de aposentados, que são incumbidos de registrar as memórias que ressoam e se tornam história.
Nesta reunião do Consuni, prestei contas das articulações institucionais que, nos últimos dias, redundaram na garantia de liberação de todo o orçamento de 2017 e em novas vagas para concursos de servidores e docentes. Apresentei também um relatório do processo de recuperação de pautas, acima mencionado. O relatório se completa com minha carta de exoneração, já encaminhada ao MEC. Nessa carta, indico o fechamento de um ciclo de quatro anos de contribuição e expresso meu sentimento de missão cumprida. Não explicito os problemas internos da instituição, mas deixo claro o caráter unilateral dessa decisão, pois não se trata de cargo colocado à disposição da autoridade que me nomeou. Essa carta foi objeto de discussão com a equipe de gestão mais próxima, quando firmamos um pacto pela governabilidade a fim de que essa exoneração não traga prejuízos à instituição.
Gostaria de finalizar declarando que tomo essa decisão sem ressentimentos, sem rancor, com o desejo firme de que nossa jovem instituição cresça e consiga ser tudo o que para ela sonhamos. Continuo UFSB, nesse tempo de carreira que tenho, para consolidar alguns projetos em andamento, colaborando com o que puder para engrandecer nossa instituição. Agradeço a todas e todos os que têm ajudado a construir o que fizemos de melhor.
Despeço-me com saudações universitárias anisianas, esperançosas.
Sinceramente,
Naomar de Almeida Filho
Professor Titular
Universidade Federal do Sul da Bahia
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A exoneração do Reitor da UFSB: a Universidade brasileira golpeada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU