04 Outubro 2017
“No acatamento da regra eleitoral, o peronismo raiou por cima de seus adversários. No século XX, foi o proscrito, como antes o radicalismo... mas, por mais tempo e submetido a repressão e silenciamento mais feroz. Na conjuntura atual, será necessário perceber o que faz a direita macrista, em sua estreia com legitimidade democrática”, escreve Mario Wainfeld, em análise da obra El siglo de Perón. Ensayo sobre las democracias hegemónicas, de Alain Rouquié, publicada por Página/12, 28-09-2017. A tradução é do Cepat.
“Borges era argentino, mas um argentino universal. Perón também, mas por outras razões. Todo o mundo sabe que Perón era o marido de Evita. Mas, além disso, Perón foi o criador do peronismo, o que não tem nada de tautológico...
A frase está no início do livro El siglo de Perón. Ensayo sobre las democracias hegemónicas de Alain Rouquié, publicado recentemente por Edhasa. Escorregadia ironia e até um grau de simpatia pelo objeto de estudo. Toda (apenas) a que pode se permitir um acadêmico francês por seu objeto de estudo.
Advertências prévias: esta nota pretende estimular a leitura do texto. Contém spoilings sobre o conteúdo, totalmente irrelevantes, porque o melhor do estudo é seu percurso e não o ponto de chegada.
Rouquié conhece a argentina, a visitou “n” vezes, escreveu livros marcantes sobre o papel das Forças Armadas nos anos 1980. Esbanja um tratamento pessoal cavalheiresco, fala castelhano com fluidez e agrado. Preside a Maison de l’Amerique Latine, encravada em Paris, em um edifício tão senhorial que parece da Recoleta.
El siglo... atravessa a saga do peronismo, de sua irrupção até agora. A ambição temática atravessa as presidências de Juan Domingo Perón, Isabel Martínez, Carlos Menem, Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner. Também os intervalos de perseguição, proscrição, convivência com os rivais que o venceram a partir de 1983.
Uma clássica interrogação central estrutura (trata de responder, vamos) o livro: o que formula no subtítulo, a esquiva categorização do movimento.
Navega outro enigma clássico: os motivos da perduração da estranha criatura passando de um século para o outro. Sua “resiliência” que se sustenta segundo passam os anos.
O autor propõe uma comparação entre o peronismo com outras “democracias hegemônicas” contemporâneas: Venezuela, Bolívia, Equador, até Rússia. A pretensão, às vezes, deslumbra, às vezes, fica curta, eventualmente derrapa, sempre motiva a repensar. O trajeto se parece a essas viagens turísticas nas quais os viajantes param em uma cidade desconhecida, diante de uma ruazinha ou uma capela ignorada. Ou revisitam locais que conhecem e os veem de outro ângulo.
O ensaio combina narrativa histórica, análise comparativa, entra na teoria política. A crônica é seu ponto mais elevado. Toca o cume ao se referir ao período que vai de 1945 a 1976, aquele em que Perón foi eleito presidente três vezes, em eleições livres. Ocupa mais da metade das páginas e nenhuma sobra. A passagem pelos mandatos de Menem, Kirchner e Cristina é mais apurada, simplifica, aprofunda menos.
Rouquié analisa os contextos históricos, explora a psicologia dos protagonistas. Recupera debates de todo tipo, toma posição, muitas vezes determina, não se “casa” com nenhuma tradição histórica deste país. “A lenda peronista de meio milhão de manifestantes”, no dia 17 de outubro, comenta. Não acredita nela, defende: foram dezenas de milhares. Uma “manifestação pacífica e digna”, arbitra.
Toma posição também a respeito do número de desaparecidos, sem incorrer nas argumentações ad hominem, sem se distrair mais que em um punhado de linhas.
Descreve com acuidade a barbárie antiperonista posterior a 1955, reprova o fato de a Revolução Libertadora ter revivido Perón, que no segundo mandato vinha perdendo (a seu ver) o favor das massas. Os exemplos são uma mostra, não trataremos de sintetizá-los, nem de replicá-los.
Rouquié encara a prolongada vigência do peronismo em diferentes estágios e épocas. Falha ou não consegue descrever as causas da perduração. “Maleabilidade”, “adaptabilidade”, não ser “um conteúdo, mas, ao contrário, um estilo de fazer política” são descrições isentas de novidade..., mas não explicações. Talvez seja impossível transcender o evidente, desentranhar o que vai além.
Rouquié descarta, com categórica elegância, o rótulo “populismo”. Não o considera um substantivo, como pretendem (isto corre por conta deste cronista) intérpretes de segunda classe, acadêmicos, desanimados para o estudo, opineitors e painelistas de toda laia. “Rótulo pejorativo”, “alcunha infamante (...) que diz, de fato, mais daquele que a utiliza que daquele a qual se aplica”. Todas as vírgulas desta coluna correspondem a El siglo de Perón.
“Democracia hegemônica” é seu fio de Ariadne para tipificar a longa, diversa, contraditória saga dos governos justicialistas. As “metamorfoses da fênix”. Democracia porque sempre chega à mercê do voto e busca se relegitimar por esse meio com frequência. “Hegemônica” porque é anti-institucionalista, desloca-se “na cornija”, ainda que, reconhece Rouquié, entregou o poder quando foi vencido em eleições livres. A tipificação se estende a outros regimes da América do Sul e Europa.
Pensa-se que força as analogias para enquadrar a todas as experiências peronistas nessa categoria. Para calçá-las na mesma forma, descarta diferenças importantes, apara as arestas, abre mão de fatos. A delimitação aplica em certa dose ao menemismo. E muito particularmente ao kirchnerismo: exacerba seus defeitos, incorre em distorções fáticas. Nem registra que mudou a Corte Suprema, menos o modo notável e único que utilizou. Exagera a disputa com os meios de comunicação dominantes, fazendo eco de parte do discurso destes. Não os “quis amordaçar”, basta remeter-se aos arquivos escritos ou audiovisuais.
Falha ao descrever os “piqueteros” e os organismos de Direitos Humanos. São alguns dos erros mais sérios do volume, comentaremos outros no parágrafo seguinte. Por conta digamos que descreve a Avós da Praça de Maio como “uma filial” das Mães da Praça de Maio. Uma pintura equivocada que não dá conta da diversidade desses agrupamentos. Em relação aos piqueteros, fica excessivamente obcecado por Luis D’Elía, relegando os numerosos movimentos sociais, sobretudo os que se opuseram ao kirchnerismo.
Rouquié categoriza muito alto o mandato de Kirchner, “uma presidência tomada de êxitos em quase todos os terrenos”. Pontua a diminuição da pobreza entre 2003 e 2015, maior que em países vizinhos, produto de políticas sociais inclusivas e decididas.
Não nos delimitaremos muito nos hipotéticos desvios autoritários dos “peronismos de Perón” e do kirchnerismo, em particular. Retornemos a “Perón...”.
Rouquié reconhece o caráter “manso e bonachão” do dia 17 de outubro e que a Resistência peronista não derramou sangue, diferente daqueles que a perseguiam. Mas, descumpre uma de suas premissas quando acentua o caráter anômalo do peronismo dentro do sistema político. O louvável método comparativo exige cotejá-lo com seus adversários ou inimigos, segundo as épocas ou as batalhas.
A democracia argentina sempre transitou na cornija, habitualmente se derramou sangue... há que fazer a conta de quantos caíram de um lado ou de outro, sem se prendar tanto no cinco por um que não se confirmou na hora de contar as vítimas.
No acatamento da regra eleitoral, o peronismo raiou por cima de seus adversários. No século XX, foi o proscrito, como antes o radicalismo... mas, por mais tempo e submetido a repressão e silenciamento mais feroz. Na conjuntura atual, será necessário perceber o que faz a direita macrista, em sua estreia com legitimidade democrática.
O peronismo, interpreta quem isto escreve, não vem sendo mais hegemônico (usando a palavra como sinônimo de inclinado ao autoritarismo) que suas alternativas políticas. É um ponto de vista, enriquece discuti-lo com quem o expressa com vigor.
Uma abordagem tão ampla transita próxima do erro. Não falamos da perspectiva diferente de quem lê, mas da distorção de fatos.
Rouquié erra quando afirma que Eduardo Duhalde renunciou a possibilidade de ser candidato em 2003, quando assumiu a presidência provisória.
Confunde-se com diversas datas na abordagem dos anos 1970: adianta ou atrasa acontecimentos. Confunde o modo como se substanciaram indulto e anistias, durante a presidência de Héctor Cámpora.
Supõe, quase macarthista sem desejar, que “o círculo Carta Aberta” foi “criado por veteranos da luta armada”. Para tratar o kirchnerismo, segue muito aos editorialistas de La Nación, uma fonte pobre para quem utiliza com destreza as categorias de Max Weber.
A tradução lhe acarreta algumas más passagens. Sem ser graves, merecem uma menção. As unidades básicas se chamam assim e não “unidades de base” como desliza o autor.
Em francês, ancien pode significar “antigo”, mas também “ex”, caso se antepõe a um cargo público, por exemplo. Chamar “antigo ministro de Economia” a Amado Boudou é impróprio, quase gracioso. Tanto como recordar que o presidente Raúl Alfosín havia sido “antigo deputado federal” e não ex-deputado provincial.
Borges, que era argentino e universal, contou algo sobre um homem que tinha a virtude de conversar tentando não ter razão de um modo triunfal. Rouquié aspira ter, pretensão irrenunciável e impossível de se dar em 100%. Mas, interessa-lhe persuadir, sustentar o interesse, argumentar, encher até a borda um container de referências, perfis, sutilezas. Respeita seus destinatários, não apela a solidariedades mecânicas...
As discrepâncias motivam um trabalho com tantas arestas vêm com o produto, o leitor agradece a oportunidade de acompanhar um discurso informado, elaborado, rigoroso em média. É bem-vindo quando a cultura e a literatura políticas locais incorrem com esgotadora frequência no panfleto inconfesso, no dispêndio de epítetos, na falta de escrúpulos informativos, na cólera como substituto do desejo de convencer, em um vocabulário de 300 palavras.
Merci, monsieur. Fazer pensar é o trabalho dos intelectuais e é estimulante aprender daquele do qual se discorda, em algumas passagens do rico trajeto.
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Argentina. O marido de Evita e sua criação, segundo Rouquié - Instituto Humanitas Unisinos - IHU