28 Setembro 2017
À primeira vista, a autodenominada “correção filial” ao Papa Francisco, assinada por algumas dezenas de professores, ex-professores e clérigos, não parece merecer uma resposta. Nenhum dos signatários eram nomes familiares. O único bispo a assinar o documento original foi o bispo Bernard Fellay, que já está em cisma, e os argumentos foram aqueles que já ouvimos antes, embora a retórica tenha aumentado a um grau ofensivo.
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 27-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao ler o texto da declaração, eu imediatamente pensei em algo que o então cardeal Jorge Bergoglio havia dito aos seus irmãos cardeais nas reuniões antes do conclave de 2013, sobre o qual temos as notas que o cardeal Bergoglio escreveu a pedido do cardeal Jaime Ortega Alamino.
“Quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar, torna-se autorreferencial e, então, adoece (cf. a mulher encurvada sobre si mesma do Evangelho).”
O arcebispo de Buenos Aires disse:
“Os males que, ao longo do tempo, ocorrem nas instituições eclesiais têm sua raiz na autorreferencialidade, uma espécie de narcisismo teológico. No Apocalipse, Jesus diz que ele está à porta e chama. Evidentemente, o texto se refere ao fato de que ele bate do lado de fora da porta para entrar... Mas eu penso nas vezes em que Jesus bate de dentro para que o deixemos sair. A Igreja autorreferencial segura Jesus Cristo dentro de si e não o deixa sair.”
Essa imagem de Jesus que bate para sair foi poderosa, tão poderosa que seus colegas cardeais responderam elegendo-o o papa.
Infelizmente, a sua intuição, de que existe uma espécie de abordagem eclesiológica que quer Jesus guardado em uma caixa – eu quase escrevi “túmulo” –, que causa uma doença na Igreja e é uma distorção fundamental do espírito missionário essencial do catolicismo, essa intuição se perdeu nos redatores da correção filial.
A “notícia” de que algo estava vindo tinha sido anunciada antecipadamente pelo site extremista Rorate Caeli. Eles anunciaram alegremente que toda a agitação resultou na superação por parte deles do limiar de 14.000 seguidores do Twitter. Há paróquias maiores do que isso, eu pensei comigo mesmo. Esse é um café pequeno.
Mas, depois, eu dei um passo para trás e percebi que esse último ataque lateral contra o Papa Francisco fazia parte de um padrão. Parece que, mais ou menos todos os meses, alguém surge com um ataque semelhante e paralelo contra o papa, com graus variados de sutileza. Os quatro cardeais com as cinco dubia. A carta subsequente sobre as dubia do falecido cardeal Carlo Caffarra. A entrevista do Wanderer com o cardeal Raymond Burke.
É mais do que interessante que aqueles que tem afinidade com a tradicional missa em latim sejam tão proeminentes nas fileiras da oposição ao Papa Francisco. Essa missa, é claro, na realidade, era tradicional, mas a teologia moral que eles empregam contra a Amoris laetitia trai uma safra mais recente. Ela é reacionária contra a modernidade, mas também se opõe à abordagem mais holística da consciência e da tomada de decisão moral que encontramos, por exemplo, na Bíblia ou nos antigos manuais de teologia moral que surgiram a partir da Contrarreforma.
Os professores Todd Salzman e Michael Lawler mostraram os vínculos entre Francisco e Tomás de Aquino em um poderoso ensaio publicado aqui no National Catholic Reporter há um ano.
Para ser claro: quando o Papa Francisco escreveu na Amoris laetitia, no parágrafo 37: “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las”, ele está articulando o ensino tradicional da Igreja.
Eu não consigo discernir qualquer conexão necessária entre o afeto pela missa antiga e uma disposição a uma determinada escola de teologia moral. Talvez porque o latim seja uma língua morta, ele dá a certeza que uma língua viva nunca pode garantir, porque o significado das palavras pode se desenvolver e mudar em uma língua viva. Certeza sobre todos os julgamentos morais é o que esses oponentes do papa estão buscando, contanto que a certeza seja a deles.
Foi espantoso que eles tenham criticado o Papa Francisco não só pela Amoris laetitia, mas também pela sua “simpatia sem precedentes” por Martinho Lutero. Mas lembremos que o arcebispo Marcel Lefebvre, que se tornou um paladino do Rito Antigo, também foi um feroz oponente do documento Dignitatis Humanae do Vaticano II, especificamente por causa do sabor ecumênico do texto.
Mas, certamente, eles se lembram da participação de São João Paulo II em uma Liturgia da Palavra com a comunidade luterana em Roma ainda em 1983. Como o autor britânico Stephen Walford disse ao meu colega Joshua McElwee, “os signatários também atacam o Papa Francisco pela sua atitude em relação a Martinho Lutero, e, mesmo assim, o próprio julgamento deles do que é aceitável para que um papa ensine é nada menos do que protestantismo, é um catolicismo faça-você-mesmo”.
A acusação de heresia também é surpreendente, e o emprego dessa palavra equivale a uma acusação, demanda um julgamento. Se este último ataque fizer parte, de fato, de uma campanha orquestrada, as apostas já aumentaram.
Eu acho que o Papa Francisco tratou perfeitamente da oposição de homens como o cardeal Raymond Burke: não faça dele um mártir, não lhe dê nenhuma responsabilidade, não engula a isca de responder às dubia. Se Burke lançasse a acusação de heresia contra o papa, seria hora de pedir de volta o barrete vermelho.
Além dos ataques frontais, há tentativas mais indiretas de minimizar o significado do que o Papa Francisco está tentando alcançar na Igreja.
Tomemos o recente artigo do arcebispo Charles Chaput no First Things (não estou sugerindo que Chaput faça parte de qualquer esforço coordenado com os tradicionalistas do Rito Antigo que redigiram a correção filial). O arcebispo elogiou a Veritatis splendor, a encíclica de 1993 sobre teologia moral emitida por São Paulo, João Paulo II. Esse texto pode ser interpretado de forma menos determinista do que o arcebispo implica, mas é uma fonte de arrependimento que o trabalho do falecido pontífice tenha até mesmo permitido o ataque à teologia de Bernard Häring, que Chaput mostra no seu artigo. Häring não era um relativista. Mas todos podemos discutir sobre como interpretar os documentos vaticanos até que as vacas voltem para casa...
O que me perturbou foi uma frase de Chaput no fim do artigo. “A longo prazo, a Veritatis splendor será lembrada por muito tempo mais longo, enquanto outras obras de papas e políticos são esquecidas”, opinou. Eu posso imaginar sobre os políticos, mas eu me pergunto se o arcebispo tinha em mente um trabalho particular de um papa particular?
A tarefa para o Papa Francisco e para aqueles na hierarquia e nos bancos que estão comprometidos em ajudá-lo a fazer com que a Igreja volte a uma compreensão mais tradicional da consciência e a uma interpretação menos legalista da vida moral cristã é continuar trabalhando, continuar verificando e se certificando se ouvimos Jesus batendo na porta, e se ele está batendo de dentro, para deixá-lo sair.
O Santo Padre e os bispos não deveriam dignificar os ataques contra Francisco com uma resposta: deixe isso para nós, na imprensa católica, e para a academia. Mas ninguém deve pensar que há alguma volta, qualquer diminuição de foco ou de determinação, qualquer retrocesso.
Se esses críticos viessem de boa fé com os seus argumentos, isso seria uma coisa. Mas a pura maldade dessa correção filial demonstra que eles não são de boa fé. Deixe que eles preguem as suas teses em alguma porta de uma igreja e vejam como isso funciona.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''Correção'' de Francisco revela críticas que não são de boa fé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU