12 Agosto 2017
O grande historiador das religiões, o romeno Mircea Eliade (1907-1986) pensava que todo mito, não importando o que se entende por esta palavra, constitui em última análise uma história da origem.
O artigo é de Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, de Milão, publicado por Corriere dela Sera, 06-08-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Il dramma dell'inizio. L'origine dell'uomo nelle religioni
Edição: S. Petrosino
Editora: Jaca Book
Ano: 2017
Páginas: 192 p., € 17,00
Nesse sentido, o mito apenas corresponderia à íntima tensão de natureza humana, sempre à procura de uma história exemplar a partir da qual afirmar sua descendência. Portanto, não é por acaso que histórias desse tipo, sobre a origem do mundo e, mais especificamente, sobre a humanidade, masculina e feminina, estão presentes em todas as culturas das quais temos conhecimento, daquela chinesa à dos nativos americanos, da bacia do Mediterrâneo à área andina, como ilustram os ensaios incluídos no livro Il dramma dell’inizio (O drama do início, em tradução livre) editado por Silvano Petrosino (Jaca Book).
No entanto, condicionados como nós somos pela nossa ascendência bíblica e cristã em que a narrativa inicial do Gênesis é marcada por palavras segundo as quais "Deus viu que era bom" o que gradualmente passava a existir graças à sua palavra criadora, pode nos escapar o fato de que em outras narrativas, ao contrário, a origem sempre está sob o signo do drama e do conflito, do rompimento e do confronto. Esses elementos são encontrados não só no mito primordial grego, a Teogonia de Hesíodo, onde os deuses lutam entre pais e filhos antes de formar uma coalizão para repelir o ataque dos Titãs; ou nos poemas babilônicos que, a partir do século XII antes de Cristo, narram de forma variada a luta da suprema divindade Marduk contra o caos original e aquele posteriormente produzido por divindades rebeldes, ao final do qual Marduk rasga em dois o cadáver do líder dos seus adversários e usa-o para criar o mundo no centro do qual é colocada a Babilônia com seu templo.
Mas o drama e o rompimento reaparecem também nas narrativas indo-americanas, como a dos Anishinaabes. Os mitos transmitidos oralmente por essas tribos contam como um Grande Mistério (Manitou) criou o sol e as estrelas, a terra e as águas, todas as criaturas e seres visíveis e invisíveis, que habitam na terra, os mares e os céus. Esta primeira criação foi varrida por um dilúvio. Apenas os Manitou e as criaturas que viviam nas águas foram poupados. Todos os outros pereceram. Nos céus vivia outro Manitou, Geezhigo-quae (a Mulher do Céu), que ficou grávida durante o dilúvio. As criaturas que flutuavam sobre a água convenceram uma tartaruga gigante e oferecer suas costas como um refúgio para ela, e a convidaram a descer. Ao pousar nas costas do animal, Geezhigo-quae pediu que lhe trouxessem um pouco de terra. Uma após a outra, as criaturas aquáticas mergulharam no fundo para recuperar um pouco de terra, mas nenhuma foi capaz de retornar. O último a mergulhar foi o rato al miscarado, que trouxe uma pequena massa de lama. Foi com aquele pouco de terra e água que Geezhigo-quae criou uma ilha e o mundo assim como nós o conhecemos.
Ainda mais truculento é o mito andino. Na origem do mundo, Pachacamac, o criador de todas as coisas, deu forma a um homem e uma mulher, mas logo os abandonou e o homem morreu de fome. Em desespero, a mulher começou a procurar raízes para se alimentar. Ouvindo seus lamentos, o Sol sentiu compaixão, e desceu à terra envolto em um manto cintilante, fecundado-a com seus raios brilhantes. Quatro dias depois nasceu um filho. Pachacamac, enciumado, logo após o por do sol matou a criança, e semeou o mundo os seus restos ensanguentados. Destes nasceram os vários frutos da terra. Novamente invocado pela mulher, o sol voltou para a terra e gerou um novo, belíssimo filho, Vichama, que decidiu seguir os passos do pai e viajar pelo mundo. Ao retornar, no entanto, ele não encontrou mais a sua mãe, assassinada também por Pachacamac, que dos cabelos e ossos da mulher tinha feito nascer uma nova, malvada humanidade. Vichama, ajudado por seu pai, forçou Pachacamac a fugir, exterminou os recém-chegados e pediu ao sol uma nova criação. Do céu caíram três ovos: um de ouro, que continha os homens destinados a governar, um de prata com mulheres de igual valor e, finalmente, um de bronze, com os súditos de ambos os sexos.
Também as narrativas chinesas são marcadas por uma série de catástrofes que destroem o original equilíbrio do yin e yang, as polaridades de opostos, que havia caracterizado a primeira criação. Nessa narrativa, mais uma vez as águas espalham-se irrefreáveis, bestas ferozes e famintas exterminam os homens. Somente a intervenção de um príncipe de natureza divina pode restabelecer a ordem, salvar os seres humanos sobreviventes e restaurar a união do yin e yang em uma nova criação cósmica.
Olhando mais de perto, nem mesmo na Bíblia faltam os sinais da catástrofe original, não apenas na história do dilúvio; no Salmo 74, fala-se a respeito de Deus, "Tu dividiste o mar pela tua força; quebrantaste as cabeças das baleias nas águas. Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por mantimento aos habitantes do deserto"; ou no livro de Isaías, capítulo 51: "Não és tu aquele que cortou em pedaços a Raabe, o que feriu ao chacal? Não és tu aquele que secou o mar, as águas do grande abismo? O que fez o caminho no fundo do mar, para que passassem os remidos?".
Na redação que conhecemos e que foi formada em paralelo e contato com outras tradições do Oriente Próximo, as Escrituras hebraicas seguem por um caminho diferente. A novidade marcada pelo Gênesis é a de ter transformado o drama multifacetado do início no início do drama, com a palavra "em princípio" e a afirmação da benignidade da condição original. Dessa forma, tornou os seres humanos sujeitos ativos, que com sua escolha colocam em movimento a história, por mais dramática que possa ser, não mais meros espectadores atônitos e passivos de um destino que é determinado em outro lugar. Assim, o conflito cósmico desloca-se da origem para o fim do mundo, na visão das feras do Livro de Daniel do Antigo Testamento, e principalmente do Apocalipse no Novo, em que o homem é chamado a resistir para que possam finalmente ser restauradas a bondade original e beleza da criação.
Não por acaso, em seus três primeiros séculos, o cristianismo teve que travar uma dura batalha com o multiforme movimento gnóstico; esse, mesmo se referindo em várias formas a Jesus como Salvador, desconsiderava a bondade da criação e rejeitava o Deus do Antigo Testamento, e novamente atribuía a um conflito interno e à realidade divina a origem do mundo e do mal. Apenas poucos eleitos, que preservam dentro de si uma centelha da original condição divina, terão a possibilidade acolher a mensagem da salvação, não por sua livre escolha, mas apenas em virtude de sua condição privilegiada.
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