30 Junho 2017
“Não há essência humana que possa ser isolada do funcionamento moderno de um poder soberano que politiza a vida ao deixá-la nua, inscrita na ordem social por meio de sua exclusão-inclusão no sistema político. Como também não há, ao longo de todo Homo sacer, uma definição de vida que possa ser abstraída da longa série de dispositivos médicos, filosóficos, teológicos e políticos que, ao longo da história do Ocidente, não deixaram de dividi-la e opô-la a si mesma, isolando no corpo um algo 'x' suscetível de apropriação e controle”, escreve Fermín A. Rodríguez, crítico literário, pesquisador e professor universitário (CONICET), em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 28-06-2017. A tradução é do Cepat.
Com a publicação de O uso dos corpos (2014), nono e último volume de Homo sacer que acaba de ser traduzido ao espanhol (Nota de IHU On-Line: e publicado também em português, pela editora Boitempo), encerram para Giorgio Agamben quase duas décadas de investigações filológicas e filosóficas em torno do conceito de vida. O giro biopolítico da política moderna que Michel Foucault havia diagnosticado em sua última lição foi o ponto de partida de uma obra monumental que encontrou suporte sobre o mesmo terreno no qual se move o corpo biopolítico do Ocidente, um conceito de vida inseparável do poder que a torna nua.
A vida não é, como no relato humanista, o que é necessário perder para passar da natureza à cultura, nem a barbárie eliminada pela chegada da civilização com suas leis. A vida, demonstra Agamben, é o que resulta do ato reiterado de suspensão da lei como fundamento oculto de qualquer autoridade. A vida exposta à morte encontra-se no reverso do direito, que leva a ilegalidade e o assassinato inscritos em seu seio como uma possibilidade de violência sempre latente, que o estado de exceção, cada vez mais estendido, coloca em manifesto.
Não é por acaso, alertava Agamben, em 2001, em uma série de conferências nos Estados Unidos – reunidas recentemente em Stasis –, tendo os atentados às Torres Gêmeas como pano fundo, que em coincidência com o momento no qual a vida como tal se converte no núcleo do poder, a “guerra civil mundial” na qual o mundo estava ingressando tenha se tornado atualmente, sob a forma de terrorismo, o paradigma de todo conflito. Hoje, somos todos potencialmente homo sacer, desde o momento em que, em nome da luta antiterrorista, o poder soberano de violar a lei para defendê-la deixa as margens da ordem jurídica e se estende pela totalidade do espaço político.
Nem ao homem que pensa, nem ao homem que fala, a Agamben interessa, por fora de todo vitalismo, a matéria ética e política do homem que vive, separado por um abismo de seu corpo; a vida no homem excluída do campo do humano se torna sede e fundamento do poder, roendo-lhe as entranhas como o raposo escondido debaixo das roupas do garoto da citação de Montaigne, no início de O uso dos corpos, que nunca irá confessar que roubou, ainda que secretamente esteja sendo comido vivo. O animal habita no homem como o imigrante ilegal, o trabalhador precarizado, o desocupado e o adolescente “perigoso” habitam na ordem social: como vida nua que pertence à sociedade, mas que está excluída da esfera do direito, exposta ao estado de exceção, à violência do poder, à precarização trabalhista, ao terror econômico, ao corte de direitos sociais, ao abandono jurídico e repressão policial, à mera sobrevivência na fronteira do que se reconhece como humanidade.
Há, então, biopolítica e não “natureza” humana, porque a vida privada do corpo vivente é separada de nós para se tornar objeto de controle, porque corpo e subjetividade nunca coincidem, como não coincidem cidadania e população: sempre há algo que escapa das definições do humano, a vida inassimilável de certos grupos imaginados como população, produzidos como vida nua, supérflua, insignificante, sem lugar na ordem econômica e social.
Não há essência humana que possa ser isolada do funcionamento moderno de um poder soberano que politiza a vida ao deixá-la nua, inscrita na ordem social por meio de sua exclusão-inclusão no sistema político. Como também não há, ao longo de todo Homo sacer, uma definição de vida que possa ser abstraída da longa série de dispositivos médicos, filosóficos, teológicos e políticos que, ao longo da história do Ocidente, não deixaram de dividi-la e opô-la a si mesma, isolando no corpo um algo “x” suscetível de apropriação e controle. O poder de fazer viver separa bios e zoe, animal e humano, vida politicamente qualificada e vida nua, viver e viver bem, vida privada e vida pública, vida que vale a pena ser vivida e vida não vivível, menos que humana.
Mas, e se houvesse uma vida indivisível de sua forma, para além do poder que divide a vida e exclui uma de suas articulações do campo da política? O uso dos corpos explora o que seria uma política da forma-de-vida para além da divisão clássica entre zoe e bios, uma vida que não possa se separar de sua forma, como indica Agamben por meio de esquemas. A invenção da escravidão no mundo antigo abre um espaço de reflexão acerca de uma figura do fazer humano que não se define pela produção de coisas, mas, sim, pelo uso do corpo como instrumento vivente, independentemente de qualquer fim produtivo.
O problema, explica a filologia, é que em nossa linguagem atual, o verbo “usar” implica “servir-se de algo” ou “utilizar algo”, uma relação com um objeto que está ausente do termo grego chrésthai, um verbo intransitivo que designa o uso de si, a relação do vivente com seu próprio corpo no viver mesmo, independentemente de qualquer finalidade: inseparável de um corpo à maneira de uma cama ou uma túnica, a atividade do escravo não serve para produzir nada para além de seu uso.
Ser sem obra excluído da vida política, dedicado por inteiro à reprodução da vida própria e alheia, o escravo é o homem que, usando seu corpo, é usado por outros, os homens livres, aqueles que graças à captura do que um corpo é capaz de fazer podem ter uma vida pública. Mas, precisamente por isto, evoca o paradigma de um tipo de ação humana sem obra, sem produção, nem trabalho, que parece ter se extraviado na modernidade e que resulta central para as buscas da arte contemporânea e da política que vem.
Assim, um poeta ou um músico não são os sujeitos soberanos de uma obra ou de uma operação criativa, ao contrário, são “viventes que, no uso e unicamente no uso de seus membros como do mundo que os circunda”, fazem experiência de si e constituem a si como uma forma de vida que, longe de qualquer vontade de viver como de qualquer determinação biológica, é gerada vivendo. Um vivente se define, então, não pelo que é, nem pelo que faz, mas pelo que pode segundo a paradoxal “inoperosidade” de uma potência que, ao longo de Homo sacer, Agamben descreve como “destituinte”, uma espécie de “deixar-se viver”, cujo poder está baseado na suspensão e desativação das divisões biopolíticas fundamentais (sem a conotação antidemocrática e golpista que o termo possui na América Latina).
A obra inoperosa do artista como “suplente” de uma vida inseparável de sua forma é sempre obra “em potência”, que não se esgota na prática, aberta ao uso: “se é uma poesia, exporá na poesia a potência da língua; se é uma pintura, exporá na tela a potência de pintar (da visão), se é uma ação, exporá no ato a potência de obrar”.
O que parece estar em jogo neste chamado a não fazer nada e se afastar de tudo, como se a ameaça viesse hoje da participação e da ação coordenada e não da passividade, é uma figura distinta da ética e da política – baseada no ascetismo das comunidades cristãs primitivas ou dos anarquistas do século XIX – que, para além das instituições e do governo, e sem a negatividade da resistência ou da violência revolucionária, desative os mecanismos de poder; esses momentos “milagrosos” de uma sociedade na qual as pessoas, pelo poder depoente de uma forma de vida que não busca se impor sobre ninguém, deixa de obedecer e se dedica, como quem diz, a fazer, em comum, sua vida; uma vida que reproduz na experiência do pequeno grupo uma sociedade futura subtraída do Estado e do mercado.
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A vida que o poder torna nua - Instituto Humanitas Unisinos - IHU