11 Mai 2017
"No caso brasileiro, são ainda mais acentuadas as linhas de continuidade entre nosso Estado-nacional e o passado colonial, face a nossa independência ter sido feita pelo próprio rei de Portugal; ou face a manutenção tanto da escravidão e da monarquia ao longo de quase sete décadas após a mesma, quanto da nossa própria integridade territorial (ao contrário do domínio espanhol)", escreve Armando de Melo Lisboa, professor na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC.
Eis o artigo.
"Desde 1789, com a Revolução Francesa, a esperança estava abrigada na esquerda.
A esperança é agora um desabrigado." *
Recentemente lançou-se o "Projeto Brasil Nação", liderado por Bresser Pereira. Duas manifestações críticas, de vertentes bem distintas, sobre ele já circularam (Esquerda exclui minorias/ Só a cara de pau explica). Nelas acrescentaria a crítica ao próprio caráter "nacional" deste projeto, especialmente por "formulado à revelia da nação", na feliz expressão de Viveiros de Castro (em outro contexto).
Aliás, no lugar dos militares e da ESG, agora, como vemos neste manifesto, é a esquerda a nova demiurga da nacionalidade, pois ao identificar "o Brasil a si mesmos, os autodesignados tutores da nacionalidade continuam a cometer a sinédoque fascista do "quem não está comigo, está contra o país" **.
Não se pode ignorar todo o histórico negativo associado ao nacionalismo, que sempre acaba exacerbando elementos irracionais e sinistros que brotam do sentimento de acreditar que a nação a que se pertence é melhor que as demais ("my country, right or wrong").
No Brasil isto recém ocorreu durante a Ditadura Militar.
Faltam hospitais, boas escolas e infraestrutura - especialmente saneamento básico, segurança e transporte público*** - elementos estruturais e geradores de verdadeira qualidade de vida, sendo, portanto, efetivamente incluidores, capazes de potencializar vigorosos e permanentes aumentos na produtividade de nossos trabalhos, ao contrário da frágil inclusão pelo consumo, como ocorreu recentemente.
Tão degradada foi a natureza, que até água já faltou, em pleno trópico úmido...
Mas, não nos faltam índices de violência (incidindo s/as classes populares), superiores ao de qualquer guerra já ocorrida na humanidade, exceto as duas mundiais.
Também não nos falta riqueza.
O Brasil hoje "está mais p/uma corporação empresarial coberta a perder de vista por monoculturas transgênicas e agrotóxicas, crivadas por morros invertidos em buracos desconformes de onde se arrancam centenas de milhões de toneladas de minérios pra exportação, coberta por uma espessa nuvem de petróleo que sufoca nossas cidades", atualiza Viveiros de Castro****.
Todavia, nada disto parece incomodar ao manifesto "Brasil Nação".
Um "desenvolvimento nacional" que não enfrente estas questões serve apenas ao propósito de enriquecer aqueles que só querem espoliar ainda mais o próprio país.
Aqui o desenvolvimento das forças produtivas "desgraça a maioria do povo", já o disse Xico de Oliveira. Alheio às trágicas consequências da "máquina de gastar gente" que somos (assim denunciou Darcy Ribeiro), Dilma Rousseff foi qualificada como "gerentona", "a gerente do Brasil como empresa, como negócio, e não como sociedade", acusou L. Werneck Viana.
Ainda antes de ser candidata a Presidente, ela comandou diretamente o PAC, programa de Lula que ressuscitou (e acelerou), descaradamente, o conceito de "crescimento", sem precisar mais edulcorar a coisa como "desenvolvimento".
"Brasil Nação" busca doses ainda mais cavalares da receita que não enfrentou, mas agravou, nossas questões fundamentais. Em nome da "nação", estão dobrando a aposta, ou seja, mais do mesmo.
Chega de "rodovias que rasgam a floresta sem chegar a destino algum, projetos insustentáveis de colonização, hidrelétricas que não produzem energia, monoculturas que levam à fome" (cf. Alcida Ramos, antropóloga como Viveiros e Darcy). Estamos, infelizmente, muito longe de protagonizar o dito anônimo posto nas revoltas de junho de 2013: "País desenvolvido não é aquele em que pobre anda de carro, mas onde rico anda de transporte público ou bicicleta".
Quantas mega-hidrelétricas os governos petistas construíram na Amazônia, adotando um conceito tecnologicamente ultrapassado de geração de energia c/grandes alagamentos?
Delas destaco Kararaô, um projeto hidrelétrico do governo militar no Rio Xingu, que então os setores populares atingidos conseguiram impedir, em plena ditadura.
Pois ela virou Belo Monte, e o PT conseguiu enfiá-la goela a baixo s/todos os que resistiam. Nem adiantou apelar p/instâncias internacionais ...
Hoje a Lava-Jato esclarece as razões que de fato alavancaram a opção por estas grandes obras.
O modelo de subsidiar indústrias forjado por cartéis de empreiteiras aliadas a políticos corruptos gerou uma corrupção que ameaça a economia "por toda uma geração", e que apenas trouxe mais congestionamento, mais shoppings, mais edifícios feios, e até "desastres de infraestrutura que pareciam saídos de ficção científica: o rompimento da barragem que transformou o Rio Doce em quilômetros de lixo tóxico" (Benjamin Moser, in "Autoimperialismo").
Bresser***** há muito defende a tese de que nosso grande problema contemporâneo é a "perda da ideia de nação", e que a recuperação da mesma, completando a revolução nacional brasileira, através de um movimento nacionalista que revigore o Estado-nação, é condição sine-qua-non p/retomar o desenvolvimento (o qual apenas ocorre na forma de nacional-desenvolvimentismo: "o Estado desenvolvimentista é nacionalista").
"Não há alternativa ao nacionalismo, já que o princípio dominante nas relações internacionais não é o da cooperação", insiste Bresser.
Ora, por um lado, nações não surgem e existem primariamente para alavancar o desenvolvimento econômico (leia-se industrialização), bem como os processos de desenvolvimento não se resumem a uma pura grande competição entre os países.
Por outro, ocorre que as "revoluções nacionais" na América Latina (inclusive a brasileira) que aqui fizeram a independência e ergueram nossos Estados-Nação, não foram advindas das maiorias populares afro-ameríndias, mas das brancas elites crioulas, as quais então viviam assustadas c/o fantasma do ocorrido em Santo Domingo (Haiti).
É este o grupo social gerador da "nação" escolhida, cujas características configurarão a "essência nacional", uma vez que nacionalismo "significa a imposição de uma alta cultura em uma sociedade onde predominavam baixas culturas na maioria, se não na totalidade, da população. Significa a difusão de um idioma ..." (Gellner, citado por Bresser).
Assim, elas mantiveram as maiorias (que configuram outras inúmeras "nações") tão estigmatizadas, violentadas e subjugadas quanto nos mais de três séculos de escravidão. Ou seja, a condição colonial, p/a grande parte do povo, não se alterou.
No caso brasileiro, são ainda mais acentuadas as linhas de continuidade entre nosso Estado-nacional e o passado colonial, face a nossa independência ter sido feita pelo próprio rei de Portugal; ou face a manutenção tanto da escravidão e da monarquia ao longo de quase sete décadas após a mesma, quanto da nossa própria integridade territorial (ao contrário do domínio espanhol).
Os patrimônios das antigas oligarquias ficaram intocados, inclusive após a abolição.
A proclamação da República em nada alterou o silenciamento do povo (que, aliás, se reagiu foi p/defender o imperador), apenas renovou o olhar colonizador brasílico c/o lema positivista "ordem e progresso", do qual o presente "Projeto Brasil Nação" dá continuidade. A primeira política educacional brasileira (e a primeira universidade) apenas surge na década de 1930.
São tão imensas as diferenças entre nossas elites e nossos povos que, como escrevi em outro lugar, o problema delas "será convencer o povo de que fazem parte da mesma nação, completa Pierre Vilar. As diferenças das classes dominantes com a plebe são tais que elas “[...] parecem raças diferentes, estranhas como em nações conquistadas” (IANNI). Após a independência, as elites brancas continuaram governando como “[...] cônsules de outras metrópoles” (DARCY RIBEIRO), como colonizadores da nação popular."
A ideia de Brasil-nação é uma retórica que sempre minimizou (e temeu) a força popular cidadã, inclusive excluindo da democracia republicana, por quase um século, o analfabeto, além das mulheres, nas primeiras décadas.
É um estratégico apelo sentimental para alavancar um jogo político de interesse dos poucos de sempre, hegemonizado pela burguesia paulista (de quem Bresser, mais que ideólogo, é partícipe), um disfarce p/a manutenção da velha subalternidade colonial sobre as maiorias.
Notas:
* George Steiner, 2007. Não por acaso, epígrafe do último livro de José de Souza Martins,
"Do PT das lutas sociais ao PT do poder".
** Ainda Viveiros de Castro, in "Prefácio" a "Um artifício orgânico", 1992.
*** E "ferrovias". Deixei isto para uma nota de pé-de-página para registrar o quanto uma ampla rede de ferrovias por todo o país é algo que parece tão distante que sequer não a sonhamos mais, não é mesmo? Entre outras trágicas sequelas do rodoviarismo está em ser um dos maiores fatores que roubam nossa capacidade competitiva, gerador do alto "custo Brasil" que muito limita nossa economia.
**** "Prefácio", in "A queda do céu", 2015.
***** Uma síntese desta sua visão encontra-se em "A construção política do Brasil" (Ed. 34, 2014).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os novos demiurgos da nação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU