18 Abril 2017
“Por que insistir em valer as palavras de Jesus sobre o divórcio de um modo literal sem qualquer exceção, quando encontramos tantas incoerências com outros mandamentos?”, pergunta Thomas Reese, jesuíta e jornalista, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 06-04-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo ele, “Jesus não lista punição alguma para os divorciados e recasados. Não diz que tais pessoas serão lançadas no fogo do inferno. Não diz que elas deveriam ser excluídas da comunidade cristã. Nem mesmo fala que elas não poderão comungar. Não diz que não podem ser perdoadas”.
“Vivemos num mundo diferente. Como podemos ter certeza de que Jesus responderia do mesmo modo ao divórcio hoje? Verdade seja dita: a maioria dos divórcios envolve a prática do pecado, falhas morais e grande dor – conclui o jornalista, ex-diretor da revista America. É verdade também que na maior parte deles as mulheres sofrem os piores efeitos. O divórcio não é algo que devemos aceitar resignados, mas uma vez que acontece e que um casamento deixa de existir, poderá haver uma possibilidade de cura e de vida no futuro? Francisco acha que sim. E eu também”.
Eis o artigo.
Grande parte do debate em torno da exortação apostólica Amoris Laetitia tem girado em torno da abertura à possibilidade de que os fiéis divorciados e recasados recebam a Comunhão. Os críticos não demoram para trazer as palavras de Jesus em Mateus 19:
“‘Portanto, o que Deus uniu, o homem não deve separar’ (…) quem se divorciar de sua mulher, a não ser em caso de fornicação, e casar-se com outra, comete adultério ”.
Antes ainda, no Sermão da Montanha, Jesus diz: “Eu, porém, lhes digo: todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por causa da fornicação, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada, comete adultério”.
Estas declarações são claras e definitivas e dão um fim à discussão segundo o entender dos críticos do Papa Francisco. “Jesus disse. Caso encerrado”. Mas, será mesmo?
Não pretendo aqui traçar uma análise acadêmica dos temas bíblicos envolvidos no divórcio e no matrimônio, mas creio ser válido levantar algumas dúvidas sobre se estas citações deveriam pôr um fim à discussão.
Há, no mínimo, três motivos para que estas palavras de Jesus não provam que o Papa Francisco erra ao abrir a possibilidade de alguns católicos divorciados e recasados receberem a Comunhão.
Em primeiro lugar, Jesus disse muitas coisas que nós não observamos literalmente.
Na verdade, no Sermão da Montanha, pouco antes das palavras de Jesus sobre o divórcio, ele diz: “Se o olho direito leva você a pecar, arranque-o e jogue-o fora! É melhor perder um membro, do que o seu corpo todo ser jogado no inferno. Se a mão direita leva você a pecar, corte-a e jogue-a fora! É melhor perder um membro do que o seu corpo todo ir para o inferno”.
E logo depois de suas palavras sobre o divórcio, afirma: “Vocês ouviram também o que foi dito aos antigos: ‘Não jure falso’, mas ‘cumpra os seus juramentos para com o Senhor’. Eu, porém, lhes digo: não jurem de modo algum: nem pelo Céu, porque é o trone de Deus; nem pela terra, porque é o suporte onde ele apoia os pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei”.
Ninguém segue literalmente o ensinamento de Jesus sobre arrancar um olho ou cortar fora uma mão. E somente um grupo infinitesimalmente pequeno de cristãos se recusa a fazer juramento em um tribunal por causa do ensinamento de Jesus.
Como determinamos quais palavras de Jesus devem ser tratadas como absolutas e quais devem estar abertas à interpretação?
Imediatamente após as palavras de Jesus sobre os juramentos, ele diz: “Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminho dois quilômetros com ele! Dê a quem lhe pedir, e não vire as costas a quem lhe pedir emprestado”.
Se os cristãos acreditassem e praticassem isso no nível literal, seríamos todos pacifistas.
Há inúmeras outras citações de Mateus que nós não as tomamos literalmente, ou pelo menos não observamos com rigor:
“Não pensem que eu vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento. Eu garanto a vocês: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem sequer uma letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça. Portanto, quem desobedecer a um só desses mandamentos, por menos que seja, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado o menor no Reino do Céu. Por outro lado, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino do Céu”.
“Não ajuntem riquezas aqui na terra, onde a traça e a ferrugem corroem, e onde os ladrões assaltam e roubam. Ajuntem riquezas no céu, onde nem a traça nem a ferrugem corroem, e onde os ladrões não assaltam nem roubam”.
“Ninguém pode servir a dois senhores, porque, ou odiará a um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e às riquezas”.
“Por isso é que eu lhes digo: não fiquem preocupados com a vida, com o que comer [ou beber]; nem com o corpo, com o que vestir”.
“Quem escandalizar um desses pequeninos que acreditam em mim, melhor seria para ele pendurar uma pedra de moinho no pescoço, e ser jogado no fundo do mar. ”.
Em seguida, Pedro se aproxima perguntando a Jesus: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” Jesus responde: “Não lhe digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete”.
“Então Jesus disse aos discípulos: ‘Eu garanto a vocês: um rico dificilmente entrará no Reino do Céu. E digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus’”.
“Na terra, não chamem a ninguém de Pai, pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu”.
Se a pessoa observar literalmente todas essas coisas, eu mandarei o nome dela à Congregação para a Causa dos Santos. Já que isso não acontece, a pergunta que faço é: Por que insistir em valer as palavras de Jesus sobre o divórcio de um modo literal sem qualquer exceção, quando encontramos tantas incoerências com outros mandamentos?
Em segundo lugar, Jesus não lista punição alguma para os divorciados e recasados. Não diz que tais pessoas serão lançadas no fogo do inferno. Não diz que elas deveriam ser excluídas da comunidade cristã. Nem mesmo fala que elas não poderão comungar.
Não diz que não podem ser perdoadas.
Entretanto, para outros pecados ele apresenta uma punição. Em Mateus 25, por exemplo, diz:
“Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar’ Também estes responderão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos?’ Então o Rei responderá a esses: ‘Eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram’. Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna”.
Qualquer leitura deste texto levará o observador a concluir que Jesus era muito mais inquieto com os que ignoravam os necessitados do que com as pessoas que se divorciavam e voltavam a se casar, mesmo assim a Igreja tem dado uma atenção muito maior ao divórcio do que a cuidar dos pobres. Por quê?
Também em Mateus, Jesus diz: “Se alguém não os receber bem, e não escutar a palavra de vocês, ao sair dessa casa e dessa cidade, sacudam a poeira dos pés. Eu garanto a vocês: no dia do julgamento as cidades de Sodoma e Gomorra serão tratadas com menos rigor do que essa cidade”.
Alhures, ele diz: “Eu, porém, lhes digo: todo aquele que fica com raiva do seu irmão se torna réu perante o tribunal. Quem diz ao seu irmão: ‘imbecil’, se torna réu perante o Sinédrio; quem chama o irmão de ‘idiota’, merece o fogo do inferno”.
Quando Jesus quer ameaçar alguém com o fogo do inferno, ele sabe como fazer. Mas, mesmo aqui, nós de fato o seguimos literalmente?
O terceiro ponto que quero trazer é que é importante perguntar por que Jesus dá tanta atenção ao divórcio. O seu contexto histórico importa aqui. Observe que Mateus só fala de homens que se divorciam das mulheres. Em Mateus 19, ele responde a uma pergunta dos fariseus: “É permitido ao homem divorciar-se de sua mulher por qualquer motivo?”.
Onde Jesus viveu e ensinou, o divórcio era apenas disponível aos homens. (Marcos, cujo evangelho foi usado em Roma, fez do ensinamento de Jesus neutro em termos de gênero, pois em Roma as esposas da aristocracia poderiam se divorciar de seus maridos.)
Vejo o ensinamento de Jesus sobre o divórcio como a primeira legislação feminista, porque uma mulher divorciada era mandada para fora de casa sem bens nem pensão alimentícia. O pai não a aceitaria de volta porque ela era um fracasso. Nenhum homem se casaria com ela. As mulheres não tinham nenhuma formação, e possuíam escassas habilidades. Iriam ter de mendigar nas ruas ou se prostituir.
Foi somente no século XIX que as mulheres divorciadas começaram a receber alguma proteção no direito civil. Consequentemente, em grande parte da história humana o divórcio foi claramente uma injustiça devastadora às mulheres. Jesus com razão o condenou, dado que praticamente todos os divórcios eram feitos por homens poderosos contra a mulheres impotentes.
Vivemos num mundo diferente. Como podemos ter certeza de que Jesus responderia do mesmo modo ao divórcio hoje? Verdade seja dita: a maioria dos divórcios envolve a prática do pecado, falhas morais e grande dor. É verdade também que na maior parte deles as mulheres sofrem os piores efeitos. O divórcio não é algo que devemos aceitar resignados, mas uma vez que acontece e que um casamento deixa de existir, poderá haver uma possibilidade de cura e de vida no futuro?
Francisco acha que sim. E eu também.
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“O que Deus uniu…” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU