16 Fevereiro 2017
A dramatização e a exasperação dos tons que acompanham certas polêmicas midiáticas sobre o atual pontificado podem levar a pensar que nos encontramos diante de uma situação inédita. Não é assim: os cartazes pelas ruas de Roma em estilo romanesco falsamente popular (acolhidos pelo papa com uma risada), assim como os artigos cotidianos que, bem além da crítica legítima, tentam demolir qualquer coisa que o sucessor de Pedro diga ou faça, inserem-se em uma “tradição” que vê na mídia um peão das lutas de poder internas da Cúria e da Igreja.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 10-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A história recente da Santa Sé, junto com a repetição de algumas constantes, evidencia também descontinuidades, porém: uma destas certamente diz respeito ao estilo e à atitude daqueles que colaboram mais de perto com o pontífice, começando pelos cardeais curiais. Os mais renomados e influentes “ministros do papa” até ontem, de fato, estavam acostumados a discutir face a face com o seu superior, não a se distanciar publicamente.
Nos dias 24, 25 e 26 de novembro de 1962, no Corriere della Sera, foram publicados três longos artigos de um jornalista já na época – merecidamente – considerado uma das maiores assinaturas do jornalismo: Indro Montanelli. Justamente ele, leigo, tinha tido o privilégio, em 1959, de uma conversa-entrevista com João XXIII.
Naquele primeiro retrato eficaz, o grande jornalista e escritor escrevia sobre o Papa Roncalli: “Se vocês observarem, ele, falando sobre os perigos que ameaçam a Igreja e a herança de Jesus, nunca usou palavras rudes como perseguidores ou inimigos de Deus. Ele acha, provavelmente, que existem apenas criaturas humanas que as circunstâncias colocaram na triste condição de ter perdido o caminho de Deus; mas temporariamente. Não devem ser rejeitadas. Só devem ser lamentadas e ajudadas com as orações, para que o reencontrem...”.
Aquela entrevista exclusiva, com o pontificado roncalliano ainda na fase inicial, já estava esquecida quando Montanelli escreveu os três novos artigos, publicados depois da conclusão da primeira sessão do Concílio Vaticano II.
Na primeira parte, o jornalista citava conhecidos fatos juvenis de Roncalli, enquadrando as novidades do pontificado naquele contexto original. E levantando a suspeita de que o papa tinha sido um modernista. Montanelli tinha tomado posse de parte do dossiê sobre o jovem Pe. Angelo Giuseppe Roncalli, conservado pelo Santo Ofício, ligado à investigação feita na época sobre o bispo de Bergamo, Giacomo Radini Tedeschi, do qual o futuro pontífice havia sido secretário. Tudo tinha concluído com um grande nada, tanto para o bispo quanto para Roncalli.
No primeiro artigo, intitulado “Restituindo liberdade ao episcopado, papa renunciou ao absolutismo”, Montanelli escrevia: “Um pouco desse ar talvez o jovem Roncalli respirou. E continuou a respirá-lo mesmo quando, ordenado sacerdote, foi escolhido como secretário do bispo Radini Tedeschi, homem culto e, como diríamos hoje, ‘aberto’, que, com Buonaiuti e os modernistas, tivera estreitos contatos”.
Os artigos do grande jornalista, além de terem sido escritos com o estilo e a contundência que lhe são próprios, em comparação com certas páginas da internet atuais, seriam considerados até “moderados”. Mas, na época, pareceram ser um ataque mordaz, insinuante, que, de fato, acusava o papa de estar aberto ao comunismo, de ceder ao protestantismo, de querer reduzir a autoridade papal, de pôr em risco as verdades de fé, justamente por ser tão próximo das ideias modernistas com as quais ele teria tido contato na juventude. João XXIII ficou muito mal com isso e anotou naqueles dias: “Ver se não é o caso de responder a tanto malignidade, estudadas e perniciosas”.
Em fevereiro de 1963, o o Papa Roncalli doente, mas ainda vivo, Montanelli escreveu uma carta ao Pe. Andrea Spada, histórico diretor do jornal Eco di Bergamo, admitindo: “Eu nunca me permitiria intervir naquele assunto se não tivesse sido induzido...”. Mais de 30 anos depois, no dia 9 de maio de 1996, no Círculo da Imprensa de Milão, quando ele se sentava ao lado do ex-secretário de Roncalli, Dom Loris Capovilla, o grande Indro disse publicamente que tinha sido o Dom Pietro Palazzini que lhe repassou “a maior farsa” da sua vida.
Mas já se sabia há muito tempo que precisamente aquele prelado, que depois se tornou cardeal, tinha sido o intermediário de um dossiê que chegava do Santo Ofício, então chefiado pelo “prefeito de ferro” Alfredo Ottaviani. Expressão de um mundo curial romano impaciente com algumas aberturas joaninas.
Portanto, não é uma novidade na vida recente da Igreja que a mídia se torne parte direta das batalhas travadas nos bastidores do mundo eclesiástico.
Uma das maiores novidades da temporada presente é representada pela repetição de declarações públicas repetidas de cardeais “ministros” do pontífice e seus estreitos colaboradores na Cúria Romana. Os distanciamentos, até por meio da imprensa, por parte dos bispos e cardeais em relação a algumas decisões papais não são inéditas: bastaria lembrar aqui certas declarações que se seguiram à publicação da encíclica Humanae vitae, de Paulo VI. Mas, naquele caso, tinha se tratado de cardeais ou bispos residenciais (ou, como aconteceu alguns anos antes, no caso do livreto fortemente contrário à reforma litúrgica, de purpurados curiais eméritos, não mais no cargo).
Um exemplo do estilo do passado é representado por Joseph Ratzinger. Não é nenhum segredo, por exemplo, que nem sempre as ideias do então cardeal prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé coincidissem com as do pontífice João Paulo II. Os dois estavam ligados por uma profunda estima. Ratzinger tinha sido o colaborador mais longevo do Papa Wojtyla à frente do dicastério doutrinal, e sabe-se que João Paulo II não quis deixá-lo se aposentar aos 75 anos, apesar dos repetidos pedidos do grande teólogo bávaro.
Houve algumas divergências de opinião, por exemplo, por ocasião do primeiro encontro inter-religioso de Assis. Essas diferenças de pontos de vista, no entanto, era apresentadas e discutidas no âmbito da relação pessoal entre o cardeal e o papa, nas audiências de tabela ou em encontros exigidos ad hoc.
Ao contrário do que acontece hoje, com a prática que se tornou corrente, se procuraria em vão, quando Ratzinger era prefeito da Doutrina da Fé, alguma declaração pública dele que soasse como um distanciamento de João Paulo II.
Há um exemplo significativo, ocorrido no século passado e historicamente bem documentado, de um vívido contraste entre o papa e o seu primeiro colaborador que poderia ter levado à escolha surpreendente da renúncia deste último, o secretário de Estado Eugenio Pacelli.
Corria o ano de 1931, a Concordata entre a Itália e a Santa Sé estava em vigor há pouco tempo, e as relações entre o governo fascista e o Vaticano eram muito tensas: Mussolini estava disposto a dissolver todas as associações juvenis que “não dependem diretamente do Partido Nacional Fascista ou da Ópera Nacional Balilla”. Na prática, a dissolução de todas as associações católicas, o confisco dos seus imóveis, o fechamento dos jornais que dependiam daquele mundo.
Pio XI entregou ao governo italiano uma nota oficial de protesto e suspendeu as relações. Vociferou-se sobre uma possível ruptura das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a Itália: esta era a posição de Pio XI, decidido a manifestar, com um gesto dramático, a sua contrariedade em relação às iniciativas do governo fascista. O Papa Ratti redigiu uma nota muito dura para ser publicada no L’Osservatore Romano.
Durante uma audiência bastante intensa, o pontífice submeteu a Pacelli esse texto. O cardeal, respeitoso mas firme, respondeu: “Vossa Santidade é o papa e pode fazer este ato. Mas, se o fizer, fá-lo-á sem mim”. O secretário de Estado não estava de acordo e disse a Pio XI que deixaria o cargo caso a nota fosse publicada.
“O que não está bem para você?”, perguntou, então, Pio XI. Os dois começaram a discutir, e a conversa se prolongou por quase duas horas. No fim, o redator do jornal vaticano, que estava à espera do visto para os rascunhos, retirou-se sem tê-los obtido. O texto não foi publicado.
Depois daquele colóquio, espalharam-se rumores descontrolados sobre uma possível mudança na cúpula da Secretaria de Estado. Mas Pio XI estimava Pacelli e, quando perguntado por ele se tinha se arrependido de tê-lo nomeado, respondeu: “Eu acho que tê-lo ao meu lado é a maior graça da minha vida...”.
Um episódio de certa forma semelhante teria ocorrido também em tempos muito mais próximos de nós, quase no fim do pontificado wojtyliano, quando João Paulo II já estava muito doente. O condicional é obrigatório, porque, neste caso específico, não há documentação histórica. Mas diversas fontes coincidem em confirmar que o Papa Wojtyla e alguns colaboradores da comitiva polonesa mais próxima haviam pensado em colocar ao lado do secretário de Estado, Angelo Sodano, um pró-secretário de Estado na pessoa do cardeal Giovanni Battista Re, destinado, assim, a sucedê-lo.
Sodano teria indicado ao papa que ficaria em uma situação que, aos olhos de todos, pareceria ser uma supervisão. E não se fez nada.
Exemplos do velho estilo curial: os colaboradores mais próximos e de autoridade do pontífice, à frente dos dicastérios mais importantes, expressavam as próprias posições nos encontros face a face com o seu superior. Dispostos, em alguns casos raros, até mesmo a renunciar ao seu cargo, a fim de defendê-las. Sem que tudo isso encontrasse qualquer reflexo em declarações públicas, como, ao contrário, ocorre hoje.
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Polêmicas midiáticas em torno do papa: tudo já visto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU