26 Janeiro 2017
O que eu faria para ter as correspondências diplomáticas entre a Secretaria de Estado do Vaticano e o núncio apostólico em Washington. Tenho certeza de que eles estão dizendo muita coisa sobre a interseção do Vaticano, da Igreja Católica nos EUA e a conferência episcopal nacional, e a política americana na alvorada da presidência de Trump. Mas, a menos que o Papa Francisco suspenda as regras de sigilo, estes documentos irão permanecer nos arquivos secretos do Vaticano por, no mínimo, duas ou três gerações.
O comentário é de Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos da Villanova University, na Pensilvânia, publicada por Commonweal, 24-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em visita recente com minha família a Roma e à minha cidade natal de Ferrara, na Itália, fiquei impressionado por aquilo que pareceu ser o ressurgimento de uma antiga tradição italiana (e católica italiana) – o antiamericanismo –, mas sob uma variedade nova, ligada à ascensão de Donald Trump. Ao longo do século passado, houve três principais correntes do antiamericanismo italiano (na verdade, europeu). Havia a forma alimentada no período do fascismo e do autoritarismo entre a década de 1920 e a Segunda Guerra Mundial e continuada por partidos neofascistas menores no pós-guerra. Havia a variedade associada com o comunismo e partidos pró-soviéticos na Europa ocidental. E havia uma forma associada com o catolicismo, que dividia certa sobreposição com as variedades fascistas e comunistas e que, anterior ao Vaticano II, teologicamente mais se preocupava com as ideias de liberdade religiosa e com os valores democráticos.
O fascismo e o comunismo desaparecem juntamente com a infraestrutura cultural (partidos políticos, sindicatos, jornais partidários, casas editoriais e revistas) que canalizava e modelava os seus movimentos. Mas o catolicismo ainda está aqui, de algum modo funcionando como o antagonista mais visível do internacionalismo americano. Conforme escreveu a quase uma década atrás o jornalista italiano Massimo Franco, em um livro bastante perspicaz (atualizado e reeditado na Itália poucos meses atrás), a Igreja Católica e os Estados Unidos são dois “impérios paralelos”.
Desde o fim da Guerra Fria, o catolicismo na Itália se tornou um dos modos através dos quais o antiamericanismo ideológico e político do século XXI ainda é expresso. O fato é que para muitos católicos – na Itália e em outros lugares da Europa –, os EUA continuam sendo o “império americano”, apesar daquilo que parece ser um seu papel enfraquecido no âmbito mundial. Trump, portanto, se apresenta como o antídoto e como uma punição à arrogância americana. Não importa, dizem, que ele esteja certo em algumas coisas (acordos comerciais internacionais, o acordo nuclear iraniano); ele é aquilo que se recebe pelo uso do poderio americano por parte de Obama.
Uma expressão proeminente deste antiamericanismo católico fica evidente em uma coluna recente escrita pelo jornalista italiano Fulvio Scaglione, editor associado de 2000 a 2016 da amplamente lida revista católica Famiglia Cristiana. Ele critica a política externa de Obama e escreve que “temos de torcer para Trump” porque ele pode ser o líder capaz de desmantelar “o sistema que governou [os EUA] nas últimas décadas”. Scaglione também acusa Obama de lançar contra Trump “uma campanha violenta sem precedentes na história americana” via vazamento tático de dossiês não verificados, numa tentativa de preparar um impeachment precoce do novo presidente.
Creio que Scaglione e aqueles por quem ele fala irão se desapontar com uma presidência de Trump como sendo um corretivo do imperialismo americano, assim como ficaram desapontados com a presidência de Obama, que eles ingenuamente esperavam que fosse conduzir a política externa dos americanos em uma direção diferente. Mas o que mais me impressiona, eu, um católico de berço que se mudou da Itália para os EUA durante a campanha presidencial de 2008, é a falta quase total de atenção prestada pelos italianos à mensagem racial de Trump – inclusive entre os católicos italianos progressistas. Desde o início do período pós-guerra na Itália, a oposição à Otan, vinda do Partido Comunista e de muitos no partido cristão democrata, tem sido acompanhada por uma cegueira à questão racial no país americano, que agora se manifesta na incapacidade de entender o significado da eleição de Trump.
Existem outros motivos por trás da atração católica italiana por Trump. Estes incluem o sentimento entre os católicos contrários a Francisco, que veem em sua “aliança” com Putin (e possivelmente com Marine Le Pen) uma reversão da cultura que apoia os direitos dos gays e que aborda temas de gênero. Tem também um senso geral, neonacionalista de que Trump, ao livrar o mundo do “politicamente correto”, garantirá o retorno dos valores “tradicionais” mais cordiais ao cristianismo e ao catolicismo. Mas as reações mais reveladoras vêm dos católicos da ala mais convencional e que não possuem uma admiração especial por Putin, Le Pen e outras vozes da pauta antiglobalização de hoje. O problema deles não é com a política externa de Obama (que, nos círculos católicos europeus, está sendo julgado de modo mais severo do que nos EUA). O problema deles é com os EUA que conheciam desde a Segunda Guerra Mundial. Para alguns dos meus companheiros católicos italianos, o ataque de Trump contra a comunidade de inteligência é um extra diante do que consideram como 70 anos de intromissão desse país na Europa – a começar com as primeiras eleições na Itália depois da Segunda Guerra, continuando ao longo de toda a Guerra Fria e chegando até o período posterior ao 11 de Setembro e a “guerra contra o terror”.
Os católicos que acham que com Trump os EUA estão recebendo o que merecem não estão precisamente aliados a algum grupo particular, nem representam uma oposição significativa à política externa do Vaticano e como ele poderia lidar com Trump e Putin. Mas eles de fato dizem algo sobre o papel complicado da Igreja Católica na situação mundial atual. Claro está que os diplomatas vaticanos esperavam a eleição de Hillary Clinton. Que Francisco e Trump têm visões de mundo opostas não é nenhum segredo. Não é segredo também que o Vaticano de Francisco e os bispos dos EUA possuem visões diferentes sobre Obama, Clinton e Trump. Mas a realidade é mais complicada. Há pouca dúvida de que uma presidência de Trump vá modificar a postura do Vaticano em alguns temas. Houve uma longa fase no pontificado de Francisco quando o Vaticano estava contando com Vladimir Putin, não Barack Obama, para lidar com a guerra na Síria. Ela culminou nas audiências de Putin com Francisco em novembro de 2013 e junho de 2015; essa associação visível entre o Vaticano e o plano de Putin para o Oriente Médio mudou depois que a Rússia interveio na Síria em setembro de 2015 e por causa da guerra na Ucrânia. Porém alguns intelectuais católicos e alguns prelados na Itália e no Vaticano ainda veem Putin como o único líder mundial com visão, e pensam, pois, que a presidência de Trump pode, de fato, trazer uma maior estabilidade e paz ao mundo.
A nova presidência irá também reenquadrar a relação de Francisco com os EUA, onde alguns o acusam de antiamericanismo (pesquise na internet “Breitbart Francisco antiamericano”; as publicações Politico e The Independent também abordaram o tema). O papa pode ser um crítico da ideologia do livre mercado, do consumismo e da colonização cultural dos países ricos. Mas ele claramente não vê a eleição de Trump como um sinal da ira de Deus contra a América imperial. Enxergar o quadro mais amplo do catolicismo certamente exige uma análise de sua relação com o americanismo. Mas a resposta entre os católicos na Itália e Europa à eleição de Trump nos mostra que a visão deles de mundo ainda é modelada ideológica e culturalmente pelo longo século XX, e que o “trumpismo católico” não é apenas um fenômeno americano.
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A presidência de Trump e o antiamericanismo católico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU