26 Janeiro 2017
A nova série do Netflix “Pode me chamar de Francisco” é baseada em uma pesquisa de Martín Salinas sobre a vida de Jorge Bergoglio. Em matéria de livros isto seria uma “biografia autorizada”. Ou seja, que o protagonista da história, hoje Francisco, tomou conhecimento e aprovou em termos gerais o seu conteúdo.
A reportagem é de Aldo Duzdevich e publicada por Página/12, 25-01-2017. Aldo Duzdevich é autor de La Lealtad. Los montoneros que se quedaron con Perón (A lealdade. Os montoneros que permaneceram com Perón). A tradução é de André Langer.
“E agora, aqueles que estamos vivos, e aqui inteiros, depois de nos terem matado de medo, mortos de vergonha por não estarmos mortos, enquanto outros realmente morreram (...)”. Estas palavras são de outro padre, o padre Jorge Galli, que, ao contrário de Jorge Bergoglio, foi um ativo militante da Resistência Peronista e chefe dos Montoneros até fevereiro de 1974, quando rompeu com a organização.
Entre as feridas profundas que o genocídio deixou cravadas na sociedade argentina existe uma pouco tratada pela literatura: a culpa dos sobreviventes.
Referimo-nos aos sobreviventes como aquelas pessoas que nos anos 70 tiveram uma militância política dentro ou próxima dos grupos armados, ou outras que, por seu papel social ou laboral, estiveram muito perto da tragédia.
A maioria dos sobreviventes carrega sua cruz. Pelo que fez para salvar a sua vida, pelo que não pôde fazer para salvar os outros, pela dor que provocou à sua família. Alguma coisa sempre está dando voltas na consciência dos velhos militantes.
Chegada a democracia e exposto o horror da repressão, também a sociedade, a opinião pública, dirigiu seu olhar sutilmente acusador para os sobreviventes. E do “alguma coisa devem ter feito” que justificou a repressão, passou-se ao “alguma coisa devem ter feito para continuarem vivos”.
Na minha tarefa de pesquisar e escrever sobre os anos 70, quando entrevisto algum companheiro, a primeira coisa que faz, sem que eu peça, é dar longas explicações sobre como fez para se “safar”, palavra usada pelos ex-militantes para explicar porque estão vivos; algo tão normal para o comum dos mortais.
Recentemente, tive a oportunidade de conhecer Jaime Dri, que fugiu da ESMA, que em 1978, acompanhado por Mitterrand, concedeu uma entrevista coletiva em Paris denunciando o regime militar. A primeira coisa que fez foi contar-me sua fuga na fronteira e como obteve refúgio no bispado paraguaio, único lugar a salvo dos militares. Dolorosamente, disse: “ainda há aqueles que me tratam de traidor por ter fugido. E se a Orga [abreviação de Organização, como era conhecida por seus membros a organização Montoneros] não me julgou, foi porque já fizeram a cagada de condenar Tucho Valenzuela”.
Mas, sem dúvida, a explicação que mais dor e vergonha me provocou por estar no papel não desejado de inquisidor, foi a de uma companheira sobrevivente da ESMA, “escrava sexual” de um marinheiro, que fingiu ser seu amante para salvar a vida. O livro Putas y Guerrilleras expõe estas histórias, esclarecendo que a palavra “putas” não vinha dos militares, mas de seus próprios companheiros.
Por que esta introdução? Porque o padre Jorge Bergoglio, pelo papel social que teve na época, pela proximidade com pessoas de sua afeição que sofreram a repressão, pelo que fez para salvar alguns poucos e o que não pôde fazer para salvar muitos outros, pertence a este coletivo social argentino dos sobreviventes com culpa. E eu realmente acredito que esta biografia autorizada tornada filme é sua longa explicação que já ninguém lhe pede, mas que ele precisava dar.
Há quem diga que “a série falsifica os fatos para apresentar o protagonista como um herói da resistência à ditadura”. Bom, eu não vi isso; em vez disso, vemos um padre um pouco burocrático, muito comedido, exageradamente cauteloso, temeroso, que só dá ajuda a alguns poucos, que por amizade e/ou por sua condição de bom samaritano não podia negar.
Jorge Bergoglio entrou no Seminário de Villa Devoto em 1958, mas fez ali apenas o seu primeiro ano. Este seminário foi berço do melhor da Igreja progressista e revolucionária. Dali saiu um grupo de seminaristas que deixou os hábitos para fundar as Forças Armadas Peronistas, FAP. Certamente, o jovem Bergoglio cruzou nos corredores e conheceu muitos deles. Mas tornou-se jesuíta, não se integrou aos padres do Terceiro Mundo, nem muito menos em alguma organização vinculada à luta armada.
Podemos julgá-lo mal por isso? Bom, para quem considera que o único compromisso real e verdadeiro era a luta armada, seguramente sim. Mas, para aqueles que, mesmo tendo estimulado e participado da violência revolucionária, entendem que fomos uma pequena parte de um todo muitíssimo maior, que é a luta do povo por sua libertação, não julgamos com a vara dos “eleitos” àqueles que não o fizeram.
Bergoglio, então, foi nos anos 70 um padre jesuíta que por história e formação intelectual simpatizava com o peronismo. Que, aos 36 anos, foi escolhido para assumir um alto cargo em sua congregação e dedicou-se a partir dali ao seu trabalho pastoral. Portanto, nada fazia prever que fosse assassinado ou desaparecido, nem tampouco que encabeçasse a luta contra a ditadura.
Bergoglio teve medo? Sim. Todos tivemos medo. Muito medo. Realmente acreditamos que os 30 mil não tiveram medo? Devemos nos colocar na pele dos militantes das organizações armadas, que a partir de 24 de março sofreram uma verdadeira caçada, na qual os mais temidos eram os “dedos” ou as “citas cantadas” [delações], ou seja, os próprios amigos e companheiros que, quebrada a sua condição humana, se transformavam em delatores e caçadores de sua própria gente.
Espalharam-se suspeitas sobre o papel de Bergoglio no sequestro dos dois padres jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics.
Francisco Jalics, que ainda vive, publicou um comunicado desmentindo que acuse Bergoglio de ser seu denunciante.
Yorio morreu em agosto de 2000, mas ficou uma carta sua de 1977 dirigida ao superior jesuíta Pe. Moura, na qual esclarece duas coisas: uma, que sua relação com Bergoglio não era boa, e, segundo, que ao ser libertado, Bergoglio ocupou-se conseguir documentos e passagens para tirá-lo do país, fato mostrado no filme.
Sobre a questão da “desproteção”, que significou que foram demitidos da Ordem Jesuíta, é um tema discutível. Os padres de San Patricio não se salvaram por serem palotinos, nem Angelelli nem Ponce de León se salvaram por serem bispos. Não acredito que pertencer à Companhia de Jesus tenha dado garantias de preservar a vida. Em 1989, em El Salvador, foram assassinados seis jesuítas pelos esquadrões que receberam instrução de militares argentinos.
Questionar a série porque o autor desconhece que Esther Ballestrino de Careaga era militante do Partido Febrerista paraguaio; se os três seminaristas se esconderam antes de 1976 ou se o filme não segue estritamente uma linha cronológica, é tão importante quanto discutir quantos ingleses molharam os pés nas invasões inglesas de 1806.
Há quem acredita que a Igreja é “uma instituição eclesiástica retrógrada”. E é uma opinião respeitável. Eu acredito que nos anos 70 um setor importante da Igreja católica, comprometida com a causa da libertação, foi a semente de muitos dos melhores quadros revolucionários da Argentina e da América Latina.
A Igreja não será o movimento revolucionário dos proletários do mundo. Mas, hoje, a Igreja tem um papa chamado Francisco que prega coisas como estas: “Um capitalismo selvagem mostrou a lógica do benefício a qualquer custo, do dar para obter, do proveito sem olhar para as pessoas (...) e os resultados vemos na crise que estamos vivendo” – O ser humano está em “perigo” e no mundo “não manda o homem, mas o dinheiro”. Perón dizia que “aqueles que lutam contra meu inimigo são meus amigos”.
E hoje este homem está exposto à acusação fácil e à desconfiança; hoje, este homem chamado Francisco está de pé quase sozinho no mundo, pregando contra o capitalismo selvagem e explorador dos povos.
E penso que a partir deste modesto exército de militantes, perdedores de tantas batalhas, devemos chamar-nos à humildade dos julgamentos. Julgamentos que algumas vezes também se levantam contra nós.
Os verdadeiros responsáveis pelo genocídio – o neocolonialismo e seus aliados – são os mesmos que hoje questionam o Papa Francisco. Existe a necessidade de continuar a tomar o seu exame e pedir suas explicações?
Bem, embora eu não goste de fazer publicidade para o Netflix, assistam à série e tirem suas próprias conclusões.
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