14 Janeiro 2017
O Ministério Público Federal (MPF) instaurou uma ação judicial, com base nas entrevistas realizadas para esta série, exigindo indenização do Estado.
A reportagem é de Mauricio Torres e Sue Branford, publicada por Agência Carta Maior, 13-01-2017.
Na língua munduruku, a palavra usada para se referir ao indivíduo não indígena é pariwat, que também quer dizer “inimigo”.
Talvez, se a coordenação da Operação Eldorado, realizada em novembro de 2012, soubesse disso, teria ao menos imaginado o caráter guerreiro do povo Munduruku e sua complexa relação com o mundo do “branco”.
Porém, um contingente bélico foi enviado para a terra indígena, ignorando que entrava em território de uma sociedade com seus próprios idioma, cosmologia, organização política, valores, código jurídico e, até mesmo lógica. Agiram sem respeitar a distância que separa o mundo do “branco” da sociedade munduruku.
Os resultados eram previsíveis: extrema violência, a trágica morte de Adenilson Krixi Munduruku e mais uma profunda ferida nas relações entre povos indígenas e o Estado Brasileiro.
Quatro anos depois do desastroso episódio, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou uma ação judicial, com base nas entrevistas realizadas para esta série, exigindo que o Estado pague uma indenização de R$ 10 milhões por “danos morais coletivos” aos índios Munduruku.
A Operação Eldorado foi realizada em cumprimento à decisão da Justiça Federal de Mato Grosso que determinava a destruição de dragas que garimpavam ouro ilegalmente no rio Teles Pires, nas terras indígenas dos povos Munduruku, Apiaká e Kayabi. Um contingente de 150 homens da Polícia Federal (PF), Força Nacional de Segurança Pública (FNSP), Fundação Nacional do Índio (Funai) e Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) integrava a ação coordenada pela PF.
Em nota distribuída alguns dias depois da ação, a PF esclareceu que o objetivo da operação era desmontar um esquema criminoso em que o ouro extraído de terras indígenas era comprado por Distribuidoras de Títulos de Valores Mobiliários, empresas que atuam como intermediários no mercado financeiro e de capitais. Alegadamente, tais empresas aproveitavam sua função legítima de plataformas de investimento para “lavar” a origem ilegal do ouro, movimentando mais de R$ 150 milhões em dez meses.
Como a extração do ouro era ilícita, desmantelar o esquema criminoso incluía destruir as dragas utilizadas no processo.
Se parecia haver justificativa para realizar a operação em si, o modo como a ação foi executada sintetiza a violência institucional contra povos indígenas no Brasil.
Uma das dragas que deveria ser destruída operava perto da aldeia Teles Pires, na divisa entre Mato Grosso e Pará. Alguns Munduruku trabalhavam na draga esporadicamente e mantinham relação muito próxima com seu dono, Camaleão, que também é uma liderança Munduruku da aldeia vizinha.
Ao contrário do que muitos podem imaginar, nada disso é novidade. Desde o século XVIII há garimpo naquela região e, na década de 1970, foi descoberta ali a província aurífera mais extensa do planeta, justamente sob território munduruku. A história mostra que os indígenas só conseguiram manter seu território porque lograram controlar a garimpagem, de modo que não se deve estranhar a relação desse povo com o garimpo.
Além disso, o trabalho dos índios no garimpo era um meio de levantar dinheiro para o movimento de resistência munduruku contra os projetos hidrelétricos no Tapajós. Estes recursos foram essenciais para viabilizar, entre outras ações, as duas ocupações munduruku no canteiro da usina de Belo Monte, no rio Xingu, em protesto contra o atropelo dos projetos barrageiros no Tapajós.
Eles discutem até chegar a um consenso, o que comumente faz com que suas reuniões estendam-se por dias e, não raro, mais de uma semana.
Na versão apresentada pela Polícia Federal e pela Funai, no dia 6 de novembro de 2012, houve “uma longa reunião, com duração de cinco horas, em que teria ficado acordado com os Munduruku a destruição da draga”. “Longa reunião” nos parâmetros de quem é de fora. Ao deixar a reunião, a PF provavelmente não imaginava que seriam necessárias outras muitas horas de conversa para se chegar a um consenso. A distribuição de poder entre os Munduruku é muito horizontal – não só as lideranças, mas absolutamente todos têm direito à fala e sempre procuram exercê-lo. Os Munduruku nunca decidem por votação; eles discutem até chegar a um acordo, o que comumente faz com que suas reuniões estendam-se por dias e, não raro, mais de uma semana.
Outra falha evidente da operação, e que já permitiria adiantar muito de seu desastroso desenrolar, foi desconsiderar a organização, os costumes e os valores dos donos do território onde se entrava.
Qualquer visita a uma aldeia munduruku exige um rígido protocolo, como nossa equipe vivenciou Mesmo convidados pelo cacique, esperamos no porto, onde desembarcamos, até que um jovem guerreiro peça ao cacique permissão para entrarmos na aldeia. Em alguns minutos, ele volta e nos guia ao barracão comunitário, onde acontece a primeira reunião de muitas que se seguiriam ao longo de quatro dias.
No dia seguinte, fomos acordados por um sino chamando para o café da manhã coletivo, onde acontece uma nova reunião.
Ali, comunicam-nos qual seria a programação dos dias seguintes, entretanto, nada segue esse roteiro. O fato de a programação não ser cumprida não significa que não tenha importância. Sua função é a de cumprir um ritual. Deixar de seguir esse protocolo seria uma grave falta de educação e uma ofensa a nossos anfitriões.
Historicamente, essas diferenças foram afrontadas pelo Estado em um projeto de “assimilação” das muitas nações indígenas à dita sociedade nacional. Infelizmente, essa prática não ficou no passado, como explica Erika Yamada, relatora de Direitos Humanos e Povos Indígenas da Plataforma Dhesca e perita da ONU sobre Direitos dos Povos Indígenas.
A relatora classifica como “racismo estatal” a maneira como o Estado brasileiro ignora as formas de organização política e os protocolos dos Munduruku e de outros povos indígenas, algo que “precisa ser seriamente reavaliado pelo Estado, para reverter a situação de violência e discriminação e para que seja possível se afirmar que o país reconhece e respeita a diversidade”.
Na Operação Eldorado, a PF, não seguiu essas regras. O líder da operação, delegado Antônio Carlos Moriel Sanchez, devia ser experiente já que durante seis anos esteve encarregado da unidade para a prevenção de crimes contra indígenas.
“Vi muito sangue debaixo da balsa, era o sangue do nosso parente”
Em 7 de novembro de 2012, dia seguinte à reunião com a PF, o aparato de guerra chegou à aldeia, com helicópteros e lanchas, e, de acordo com os índios, imediatamente começou a destruir a draga.
Iandra Waro Munduruku, filha do então cacique, conta: “Disseram que ia ter reunião com eles. A gente se preparou, se arrumou, fiquei do jeito que eu estou agora. Quando a gente veio para receber, a gente só recebeu esse terror. Foi um dia de terror”.
A PF diz ter entendido como “uma emboscada” o cerimonial de recepção para o qual Iandra vestiu sua saia de palha e para o qual os homens se pintaram e se adornaram com arcos e flechas, segundo nota divulgada. “Mais de cem índios ‘pintados para a guerra’ atacaram com armas de fogo e arcos e flechas cerca de 35 policiais”.
A nota da PF – que omite o fato de terem matado Adenilson Krixi – acrescenta que os Munduruku atiraram com “armas de fogo”, o que, segundo o Ministério Público Federal (MPF) e os indígenas, não aconteceu. O texto afirma ainda que gravações telefônicas autorizadas judicialmente comprovavam haver “intenção anterior do líder indígena em atacar os policiais”.
Entretanto, tais áudios nunca vieram a público e a PF não respondeu ao contato da reportagem para falar sobre o caso.
“Eu disse para eles [a PF] pararem, para manter a calma. Estavam soltando bomba. O meu irmão estava sangrando. Ele conseguiu se arrastar ainda, mas quando o delegado atirou na cabeça ele apagou. Queriam matar ele, mesmo.”
O modo desrespeitoso como a PF toma de assalto a aldeia já predispõe todo o grupo. À tensão logo se soma outro incidente. De acordo com o MPF, Camaleão, índígena dono da draga, tenta deter o delegado que comandava a operação e é empurrado por ele. Ato contínuo, Adenilson Krixi, que está atrás de Camaleão, empurra o braço do delegado, que, segundo os relatos dos Mundurukus que estavam próximos, desequilibra-se no barranco e cai no rio. Com água pela cintura, o delegado dispara contra Adenilson. Três balas lhe acertam as pernas, quebrando-lhe a tíbia, e ele cai na água, onde recebe um quarto tiro e afunda já sem vida.
Genivaldo Krixi Munduruku, irmão de Adenilson, estava ao seu lado quando tudo aconteceu: “Eu disse para eles [a PF] pararem, para manter a calma. Estavam soltando bomba. O meu irmão estava sangrando. Ele conseguiu se arrastar ainda, mas quando o delegado atirou na cabeça ele apagou. Queriam matar ele, mesmo”.
Com a exumação do corpo, confirmou-se o que disseram os indígenas: Adenilson foi morto pelo quarto tiro, na nuca. Nas palavras do MPF, foi executado.
A partir daí o terror se instala na aldeia Teles Pires. Ainda que nenhum indígena portasse arma de fogo, os agentes do Estado parecem perder o controle e disparam balas de borracha e munição mais letal, além de bombas de gás lacrimogêneo.
Os guerreiros Munduruku respondem com flechas. Vários índios foram atingidos com balas de borracha e outros com projéteis mais letais. Alguns policiais foram feridos com flechas.
Genivaldo Krixi continua: “Fiquei completamente perdido, tanto tiro, tanta fumaça. Ardeu o olho da gente. Encontrei meu filho pequeno, de dois anos, chorando, e levei ele para casa”.
Krixi Biwün, irmã de Adenilson e uma respeitada guerreira munduruku, acrescenta: “Estava escondida na mata. Vi os filhos correndo. Doía muito. O meu irmão tinha morrido. A polícia botou para matar a gente”.
O velho Eurico Krixi Munduruku levou dois tiros, um de raspão no pé e outro no braço. Depois disso, conta, “Vi muito sangue debaixo da balsa, era o sangue do nosso parente. Eu fiquei com medo e saí correndo. Aí meu braço ficou pesado e eu não conseguia mais correr. Era a bala de fuzil que tinha pegado no meu braço. Meu neto me ajudou a chegar em casa”.
A esposa de Adenilson, Ivete Saw, estava torrando farinha de mandioca quando ouviu a notícia de que seu marido havia sido morto: “Eu podia ouvir as bombas, o tiroteio, tudo, da cabana de mandioca. Então minha filha veio e disse: ‘Mamãe, eles mataram papai’. Eu derrubei a farinha de mandioca e corri para o rio. As pessoas disseram: ‘Não vai, vão te matar também’. Eu queria ir, mas me seguraram. Se tivesse ido, eu tinha morrido com ele”.
A maioria dos indígenas correu de volta para suas casas, mas os policiais foram atrás, arrombando as portas e invadindo violentamente todas as casas da aldeia. Danilo Krixi Munduruku, outro irmão de Adenilson, conta: “A polícia disse para a gente sair de casa, senão eles iam jogar bomba dentro da casa da gente. As mulheres saíram gritando de medo e eles fizeram os homens deitar no chão, no meio da aldeia. Eles apontavam armas para a gente e falavam que, se a gente não obedecesse, a gente ia morrer. Disseram que se morresse um policial, a gente tudo ia morrer. Ficamos ali por horas. Era muito quente e a gente tinha muita sede”.
Diversos índios tentaram filmar o que estava acontecendo em seus telefones, mas os policiais tomaram os celulares, apagaram os vídeos e destruíram os cartões de memória. Alguns indígenas conseguiram esconder os aparelhos e algumas imagens sobreviveram, em um registro histórico da violência perpretada pelo Estado.
Eliano Waro Munduruku, uma jovem liderança da aldeia, explica: “A gente nunca imaginava que a Polícia Federal ia fazer isso. A gente pensava que a Polícia Federal era defensor nosso”.
Os policiais obrigaram todos os homens, incluindo o pai de Iandra, a pôr as mãos na cabeça e deitar no chão. “Eu ficava falando: ‘Mas meu pai é o cacique! Vocês têm que tratar ele com respeito!’. Eles trataram todo mundo como criminoso. Meu avô, que tinha 86 anos, foi tratado assim também. Fiquei muito triste de ver ele sendo arrastado pelo chão”.
Edvaldo Borô Munduruku talvez tenha sido vítima de uma das maiores violências. Os tiros que atingiram suas costas e seu braço, deixaram sérias sequelas, incluindo um antebraço atrofiado e as articulações dos dedos muito avariadas. Ele conta que já tinha o osso estilhaçado quando os policiais invadiram sua casa e lhe torceram o braço quebrado.
O velho Eurico Krixi também foi perseguido dentro de casa: “A Polícia Federal arrancou a porta e entrou. Me pegaram, mesmo eu estando ferido, e me jogaram dentro do helicóptero. Me fizeram de refém. Eu estava muito doente e queria água, mas eles me deram só um pouquinho. Pedi mais e não deram. Aí eu apaguei e, na verdade, eu estava morto, porque me levaram para a região que nem sei onde é”.
Dezenove homens, incluindo os feridos, Eurico Krixi e Edvaldo Borô, foram levados presos para Cuiabá, uma cidade em que nunca haviam estado. Muito assustados, temiam não mais voltar à aldeia. Em suas entrevistas à nossa equipe, dois deles revelaram pela primeira vez como foram coagidos naquele momento.
Eliano Waro explicou: “Eu nunca disse isso antes, mas vou dizer agora. Disseram para pôr toda a culpa no Camaleão, o dono da draga. Disseram que se a gente falasse a verdade, a gente ia ficar preso e nunca mais a gente ia voltar para a aldeia.
Estávamos tão traumatizados. Nunca acreditávamos que a Polícia Federal nos faria isso. Nós confiamos neles. Então culpamos o Camaleão.”
Quatro anos depois, o horror da Operação Eldorado ainda é muito presente na aldeia. Os restos da draga explodida foram abandonados no porto, como um lembrete permanente do terror vivido. Alguns indígenas não se recuperaram. Edvaldo Borô jamais poderá voltar a trabalhar a terra e o ancião Eurico Krixi mal pode mover o braço direito. Não pode mais pescar e sequer consegue “jogar farinha na boca”, sendo obrigado a passar pela humilhação de comer como um pariwat, com colher.
De acordo com Genivaldo, seu pai nunca superou a morte do filho: “Um dia depois da operação, o corpo de Adenilson apareceu. Boiou. Meu pai viu e nunca se recuperou. Ele ficou quieto, não falou nada e segue assim até hoje”. Outros também estão traumatizados. As crianças têm medo quando ouvem um avião se aproximar. A comunidade perdeu a confiança que tinha na Funai, que, dizem eles, não cumpriu sua obrigação de protegê-los naquele dia fatídico.
O clamor que se seguiu à morte de Adenilson interrompeu a Operação Eldorado. Embora a Justiça Federal não tenha aceitado a acusação do MPF contra o delegado Sanchez, por ter entendido que ele agiu em legítima defesa, ele acabou sendo transferido para a Bolívia. Solicitamos uma entrevista com ele, mas não obtivemos resposta.
Embora nunca tenha ficado provado que a Operação Eldorado foi pensada para enfraquecer os Munduruku, o fato é que ter perdido a draga de garimpo tirou-lhes muito da possibilidade de autofinanciarem suas ações de protesto contra os projetos barrageiros na bacia do Tapajós.
Alguns membros da comunidade estão se recuperando lentamente, como Biwün, que, apesar de tudo, segue uma guerreira munduruku: “Demorou muito tempo para eu ficar normal e voltar a lutar contra esses empreendimentos do governo. Mas nós, mulheres munduruku, somos guerreiras e temos que lutar contra tudo que não presta”. O lugar da mulher como guerreira faz parte da cosmologia munduruku, como uma determinação de seu deus criador: “Foi Karosakaybu que fez essa lei para as mulheres serem sempre guerreiras”, explica Biwün. “E a gente tem ervas para dar nos banhos das meninas, desde pequenas, e tirar o medo e ser sempre guerreiras”.
Ao saber de nossa visita, a procuradora do Ministério Público Federal (MPF) em Itaituba (PA), Janaína Andrade de Sousa, requisitou as entrevistas que havíamos registrado na aldeia Teles Pires e, em 17 de novembro de 2016, instaurou uma ação civil pública contra o Estado por “danos morais coletivos” infligidos aos índios Munduruku em decorrência da Operação Eldorado. Apesar das violações que afetam diariamente os indígenas no Brasil, é relativamente incomum que sejam ajuizadas ações de reparação, ainda mais exigindo ressarcimento da ordem de R$ 10 milhões.
Os golpes contra os indígenas da aldeia Teles Pires não terminaram com o fim da Operação Eldorado. Apenas alguns meses depois, um importante marco sagrado desse povo, a cachoeira de Sete Quedas, foi destruída pela hidrelétrica de Teles Pires – um golpe ainda mais terrível sobre a identidade dos mundurukus. Outros projetos seguem em curso, como o de uma hidrovia que destruiria diversos locais sagrados na cosmologia munduruku.
As obras de infraestrutura parecem ser apenas a ponta do iceberg.
No processo de pesquisa para esta reportagem, descobrimos que a mineradora Vale S.A. – com extensa ficha de conflitos com indígenas edesastres ambientais ocasionados por seus projetos – já protocolou junto ao Ministério de Minas e Energia (MME) diversas requisições de lavra e pesquisa de ouro exatamente no local onde a draga destruída operava, sob a aldeia e seus arredores.
A mineração em terras indígenas ainda não foi regulamentada, conforme determinou a Constituição de 1988, mas isso pode mudar se o novo Código de Mineração, apoiado por um poderoso lobby no Congresso, for aprovado.
Com ataques como a Operação Eldorado e outras agressões praticadas pelo Estado, os Munduruku tiveram sua resistência abalada. Entretanto, continuam sendo um povo guerreiro, descendente dos grandes cortadores de cabeças – como eram conhecidos até o início do século XX. Eles já superaram muitos desafios e contam com Karosakaybu e com uma legião de guerreiras como Biwün, para enfrentar o que está por vir.
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Ministério Público pede indenização de R$ 10 milhões para vítimas da Operação Eldorado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU