05 Dezembro 2016
“Os acontecimentos políticos dos últimos meses e, particularmente, dos últimos dias nos indicam que o carrancismo da República Velha persiste e insiste. Eles, os que decidem por nós, gostemos ou não, não perceberam que nos últimos quatro anos o País sofreu profundas mudanças políticas. Os alijados ainda não compreenderam que não foram injustiçados, que sua suposição de que o poder ainda lhes pertence é equivocada, que, na verdade, a população deles se cansou. Os substitutos perceberam menos ainda, pois não compreendem que o povo, ao caminhar eleitoralmente em direção diferente da dos que estavam no poder, não caminhou para os braços das oposições de então. Grandes enganos interpretativos assombram o Brasil. Estamos em face do abismo”, escreve José de Souza Martins, sociólogo, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 04-12-2016.
Eis o artigo.
Tentando compreender acontecimentos destes dias, vieram-me à lembrança expressões vulgares, que eu imaginava ultrapassadas, mas que parecem ter grande sentido popular nesta hora. Uma delas, muito usada há meio século, é “eles não se mancam” ou “eles não tem desconfiômetro”. Tudo para dizer que “eles”, quem quer que sejam, não percebem que o que estão fazendo é impróprio e descabido, descabimento que já chegou à consciência da maioria.
Nos dias de hoje, eles não percebem que são bem menores do que pensam ser. Uma outra expressão antiga é a de que “pr’aquele ali, não caiu a ficha”. Alusão ao uso de fichas em telefones públicos. Quer dizer que a pessoa fala ao telefone sem perceber que a ligação não foi completada, pois a ficha inserida no dispositivo próprio não caiu no recipiente de fichas para acionar o telefone. Fala, portanto, para ninguém. Ou fala sozinha. São expressões que dizem respeito à desconexão entre quem fala e quem deveria ouvir, entre quem age e o suposto destinatário da ação. Uma situação de descontinuidade e desencontro, ou desrespeito, própria de pessoas que supostamente estão no mesmo mundo mas que vivem em mundos diferentes, os de lá não se consideram daqui.
Uma outra expressão que me veio à mente é “Você sabe com quem está falando?” É expressão bem antiga, dos tempos da República Velha, anteriores à Revolução de Outubro de 1930 que, caminhando para a ditadura, pôs fim à presunção dos régulos de província, os pais da pátria, que julgavam tudo poder e podiam. Expressão que perdura há mais de um século. É para dizer que o meu direito de prestar atenção no que ocorre e de me dirigir a quem age de maneira imprópria esbarra no infundado poder dos mandões que em sua conduta ainda agem como senhores de gado e gente. Não só agem, mas podem punir, reprimir, satanizar, diminuir e anular quem se atreva a achar que é igual e cidadão com direitos reconhecidos na Constituição e nas leis. Deputados e senadores não raro consideram o voto como renúncia do eleitor à sua cidadania em favor do eleito.
Os acontecimentos políticos dos últimos meses e, particularmente, dos últimos dias nos indicam que o carrancismo da República Velha persiste e insiste. Eles, os que decidem por nós, gostemos ou não, não perceberam que nos últimos quatro anos o País sofreu profundas mudanças políticas. Os alijados ainda não compreenderam que não foram injustiçados, que sua suposição de que o poder ainda lhes pertence é equivocada, que, na verdade, a população deles se cansou. Os substitutos perceberam menos ainda, pois não compreendem que o povo, ao caminhar eleitoralmente em direção diferente da dos que estavam no poder, não caminhou para os braços das oposições de então. Grandes enganos interpretativos assombram o Brasil. Estamos em face do abismo.
Quando das manifestações pelo impeachment da presidente da República na Avenida Paulista, alguém teve a má ideia de levar para lá o governador do Estado. Supunha que a multidão de rua, ao protestar contra os petistas, estava optando pelos tucanos. De um lado e outro, ingenuamente, acharam que era uma guerra de “mortadelas” e “coxinhas”. A multidão de rua, desde 2013, está optando contra o sistema político. Dessa opção, não escapa ninguém.
Nas mudanças, o sistema político não se legitimou. O novo governo federal impõe ao País, mais do que propõe, medidas draconianas cuja principal vítima será a população, no pressuposto de que a culpa pelo descalabro econômico, pelos gastos descabidos, pelo mau uso do dinheiro público, é culpa da vítima. Os deputados e senadores não fizeram um único gesto de renúncia a seus descabidos e escandalosos privilégios para dizer simplesmente ao povo que se reconheciam parcialmente responsáveis pela situação crítica e que abriam mão dos benefícios descabidos para dar o exemplo. Ao contrário, para eles, a ficha não caiu. Continuaram desfrutando dos privilégios, verdadeiro insulto à população. Não há como convencer os aposentados e os aposentáveis de que uma vida de trabalho, privações e contribuições para assegurar-lhes uma velhice que não fosse humilhação, humilhação será.
O Congresso não tem titubeado nem tem tido a dúvida política necessária para debater o que significa comprometer por 20 anos a história futura do País na incerteza da política econômica de um governo que é, literalmente, apenas um governo provisório e transitório, que legalmente só poderá durar no máximo dois anos. Na Câmara dos Deputados aprovam-se medidas de combate à corrupção que apenas nos dizem que corruptos há os bons, outra expressão antiga que volta melancolicamente às nossas incertezas. Já não são os políticos os suspeitos, mas suspeita é a Justiça. O Brasil se torna oficialmente corrupto. Não lhes caiu a ficha de que, na mesma hora, na Praça dos Três Poderes, uma multidão de 12 mil pessoas, na maioria jovens, outra geração, a dos sem futuro, gritava e depredava, contra o vazio que na mesma hora era aprovado tanto na Câmara quanto no Senado.
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O país do avesso: governo Temer traz 20 anos de incertezas com a PEC do Teto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU