15 Novembro 2016
"Não houve golpe de Estado no Brasil, de nenhuma espécie, nem mesmo parlamentar. Por um lado, o Impeachment é não somente previsto pela Constituição Democrática (de 1988), como já foi utilizado com o apoio entusiasta do PT [2], contra Fernando Collor de Mello (eleito em 1989 e destituído em 1992). Por outro lado, todo o processo se realizou segundo as regras e sob a supervisão dos juízes do Supremo Tribunal Federal (a Corte Suprema Brasileira) onde oito dos onze membros foram nomeados por Lula ou Dilma. Dizer que não é um golpe de Estado não significa dizer que o que ocorre no Brasil é aceitável ou normal. Ao contrário, atravessamos uma crise muito grave, mas seus determinantes e seus resultados não são aqueles que o PT, o governo e a esquerda brasileira apresentaram e que a esquerda internacional quis corroborar", escreve Giuseppe Cocco, graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), em artigo publicado Multitudes e reproduzido por UniNômade Brasil, 12-11-2016.
Eis o artigo.
Comecemos pelo fim. Não houve golpe de Estado no Brasil, mas uma glasnost que conduziu à implosão do consórcio político que governava e governa o país: um cartel mafioso de grandes empresas privadas e estatais, compostas por algumas dezenas de patrões públicos e privados. Evidentemente, a corrupção sistêmica não é uma novidade e certamente não foi inventada pelo PT. Lula, o PT e uma série de intelectuais brasileiros (ou não) utilizam como defesa esse truísmo e se escondem atrás de duas afirmações: o combate à corrupção seria seletivo e o justicialismo não será o terreno da transformação social. São duas afirmações falsas. As investigações judiciárias contra a corrupção estão tocando todo o sistema político e na realidade não poupam os partidos de direita: nem os grandes aliados do PT nem os grandes partidos de oposição. O peso relativo do PT, de Lula e Dilma, nos inquéritos, é, no entanto, proporcional a dois fatos simples: primeiramente, os juízes não caem no esquema de marketing do PT que se transforma em vítima do sistema como se não estivesse no poder federal por treze anos seguidos; e, em seguida, Lula e Dilma desempenharam um papel fundamental na amplificação e modernização da tradicional corrupção oligárquica. A corrupção de que se fala não é apenas uma velha venalidade da política, mas um verdadeiro regime de acumulação e de exploração de novo tipo, dirigido por um consórcio de interesses onde o PT é o principal organizador.
É este consórcio de interesses que está hoje em crise e implodindo. Esta implosão tem duas causas: o levante constituinte de 2013 [1] e a violenta crise econômica. Assistimos assim à triste decadência de um dos experimentos reais mais interessantes da esquerda mundial. O Partido dos Trabalhadores (PT), com seu líder (Lula), nasceu como uma espécie de partido em rede pós-socialista e paradoxalmente termina seu ciclo na mesma mistura de corrupção, burocracia e catástrofe econômica e social que o «socialismo real» nos deu a conhecer. O PT parecia representar uma saída para o socialismo e terminou como uma versão tropical da mesma mistura de novas e velhas formas de corrupção visando a continuidade do mesmo bloco de poder.
Em 17 de junho de 2016, o governo do Estado do Rio de Janeiro (aliado do PT desde junho de 2006) decretou formalmente «Estado de Calamidade Pública». O objetivo do decreto era o de viabilizar a utilização dos poucos recursos financeiros disponíveis (e o dinheiro prometido pelo governo federal) para assegurar a finalização das obras e a realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro. Os recursos mobilizados foram, sobretudo para pagar os policiais durante os jogos. De fato, desde o final de 2015, o Estado do Rio de Janeiro não paga seus fornecedores, paga em atraso de até um mês seus funcionários, fecha hospitais (inclusive o Instituto Médico Legal) e não termina obras.
Exatamente três anos antes, em 17 de junho de 2013, centenas de milhares de pessoas manifestavam no Rio de Janeiro não apenas contra o aumento das tarifas de transporte público, mas também contra mais um aprofundamento do modelo de cidade desigual, dessa vez por uma representação política onde a tradicional corrupção aparecia ainda mais insuportável devido ao consenso autoritário que reunia todas as forças políticas (do PT ao PMDB) e todas as esferas institucionais (Munícipio, Estado e União federal). Ao final da manifestação, uns enxames de dezenas de milhares de jovens tomavam de assalto a Assembleia Legislativa, ou seja, o templo do acoplamento carnal e mafioso entre os cartéis de empresas de transporte e de obras públicas e os representantes eleitos do sistema político.
Para compreender o que se passa no Brasil se deve, portanto, ter muito bem em mente estas duas datas e o que as separa: de uma parte, um movimento destituinte que acenava para a constituição de uma real democracia, movimento este sem precedente na história brasileira, e de outra parte, a confirmação de um sistema institucional que perdeu sua legitimidade e uma boa parte de sua efetividade (notadamente no plano econômico). Entre estas duas datas, temos o conflito político de grandes proporções que conduziu ao Impeachment da Presidente da República. Entre estas mesmas datas, fomos brindados com o festival de mentiras e mistificações lançados e replicados pelo PT e apoiadores durante as eleições de outubro de 2014.
Não houve golpe de Estado no Brasil, de nenhuma espécie, nem mesmo parlamentar. Por um lado, o Impeachment é não somente previsto pela Constituição Democrática (de 1988), como já foi utilizado com o apoio entusiasta do PT [2], contra Fernando Collor de Mello (eleito em 1989 e destituído em 1992). Por outro lado, todo o processo se realizou segundo as regras e sob a supervisão dos juízes do Supremo Tribunal Federal (a Corte Suprema Brasileira) onde oito dos onze membros foram nomeados por Lula ou Dilma. Dizer que não é um golpe de Estado não significa dizer que o que ocorre no Brasil é aceitável ou normal. Ao contrário, atravessamos uma crise muito grave, mas seus determinantes e seus resultados não são aqueles que o PT, o governo e a esquerda brasileira apresentaram e que a esquerda internacional quis corroborar.
Nos encontramos no capítulo seguinte ao processo que se iniciou de maneira autônoma com o grande levante de 2013, e que ganhou um novo sentido no início de 2014 com a abertura da investigação judicial da Lava Jato, sobre a corrupção na gigantesca estatal Petrobrás, tornando-se então uma crise profunda – e irreversível – exatamente no momento da reeleição de Dilma. O processo de destituição de Dilma não passa de mais um episódio na luta pela sobrevivência do sistema de representação política em estado terminal, em virtude dos desdobramentos cruzados do fiasco de imensas repercussões da política econômica conduzida por Dilma somado aos resultados devastadores das operações judiciárias contra a corrupção. Dilma não foi objeto de um processo de Impeachment por ter feito algumas reformas um pouco mais radicais do ponto de vista social, mas porque ela já não conseguia governar nem tomar iniciativas diante da catástrofe econômica e sobretudo, não conseguiu enfrentar a onda crescente de deslegitimização provocada pela Operação Lava Jato.
Dois pontos de inflexão explicam a abertura do processo contra Dilma. O primeiro foi em novembro de 2015: a detenção de Delcídio do Amaral, líder do governo no Senado e o segundo foi a detenção de Lula para interrogatório (4 de março de 2016). A prisão do senador significou o desabamento de todas as tentativas por parte de Dilma e de seu partido, de convencer os dirigentes da Petrobrás e dos grandes grupos ligados ao setor da construção civil, a não colaborar com a justiça. Isto teve como consequência imediata a ruptura da negociação entre o poder executivo e o presidente do Congresso, Eduardo Cunha. Este último queria se assegurar de não perder sua posição de deputado (e logo, a imunidade parlamentar) e se proteger da prisão em troca de não dar continuidade às inúmeras demandas de Impeachment contra Dilma. Uma vez que o governo Dilma não estava mais podendo assegurar esta proteção, Cunha escolheu o afrontamento para, por um lado, ganhar tempo (guardar ao máximo a imunidade parlamentar) e de outra parte, apostar na possibilidade de se tornar uma peça necessária e legítima nas grandes manifestações de massa para a destituição de Dilma [3] (que se repetiram desde o dia seguinte de sua eleição, ao longo de um ano e meio). A segunda inflexão veio das consequências da condução coercitiva de Lula pela polícia Federal para interrogatório. Enquanto Dilma tentava nomeá-lo ministro da Casa Civil para lhe oferecer imunidade parlamentar, o ex-presidente – chamando manifestações de massa em sua defesa – visitava Cunha e o Presidente do Senado (do mesmo partido de Temer e Cunha, incluídos em oito inquéritos de corrupção). Após uma longa reunião onde participaram também o ex-presidente José Sarney e o ex-Ministro das Minas e Energia (também PMDB), Lula aparecia com esta pequena trupe na tribuna do Senado Federal, com um exemplar da Constituição nas mãos para fazer duras declarações contra a ditadura dos juízes. É a partir deste momento que, sob a liderança do vice-presidente, o movimento institucional pela destituição de Dilma se amplia e acelera, a partir de dois imperativos: retomar o controle de uma economia em queda livre e bloquear o processo judicial contra a corrupção. O que dissemos antes em termos políticos foi formalmente confirmado pela glasnost promovida pelos investigadores da Lava Jato. Em gravações feitas – publicadas pela imprensa no final de maio 2016 – um ex-senador e presidente de uma grande empresa estatal (Sergio Machado, que é um colaborador da justiça), os principais patrocinadores do PMDB (o presidente do Senado, Renan Calheiros), o Ministro do Plano de Temer (Romero Jucá) além do ex-presidente de tudo (do PMDB, do Senado, da República, etc.) José Sarney, explicitaram que o futuro governo interino de Temer teria dois propósitos: enfrentar a grave crise econômica e bloquear a operação Lava Jato a fim de proteger eficazmente o sistema político, inclusive Lula.
É claro que o chamado “golpe” de Estado é uma operação interna ao “golpe” que foi dado durante a reeleição (outubro de 2014). Estas escutas telefônicas fazem cair por terra o discurso do PT sobre a seletividade dos juízes. O PT não é de modo algum o único partido visado, mas pode ser o alvo principal por ter sido o partido no poder. Os quatro principais líderes do partido “golpista” (PMDB) figuram no âmbito de um mandado de prisão (suspenso por um juiz do Supremo Tribunal) e a Lava Jato também visa o presidente interino [4]. Portanto, temos um “golpe” engraçado: os seus principais atores estão sob a ameaça do estado e recebem solidariedade… de quem recebeu o golpe (o PT e seus senadores que criticaram os mandatos de prisão).
Estamos novamente na produção sistemática de enganos e ficções por parte da esquerda de governo e isto merece uma boa reflexão. Por um lado, este regime discursivo é aceito e amplificado pela esquerda intelectual global (ao mesmo tempo em que não se diz nada sobre o que está acontecendo na Venezuela chavista, que carece de tudo e onde a população passa fome); em segundo lugar, faz-nos pensar sobre a capacidade e determinação que a “esquerda” (especialmente a esquerda no poder) tem de manipular os dados subjetivos da luta objetiva e subjetiva. A “esquerda”, por um lado, perde o contato com a realidade material do que está acontecendo e, por outro lado, não só ignora a realidade, mas deturpa dados em função de suas necessidades e estratégias.
Tudo o que está acontecendo é, de forma piorada, o que já havíamos previsto desde antes de Outubro e Novembro de 2014[5]. No entanto, previsões dissonantes caíam no ostracismo geral da esquerda brasileira e mundial. Se a esquerda governista estimulou cinicamente que se mistificasse o debate, se aproveitando disso, a “esquerda radical” precisa cultivar seus mitos e, para este fim, moldar a realidade segundo suas fantasias, passou a definir como «delírio» quando não, estupidez, qualquer coisa que não se dobrasse a esta deriva geral, mesmo se isso significasse jogar fora multidões nas ruas, e – desnecessário será dizer – sua própria autonomia. Neste caso, a doxa da esquerda é usada para manter a ilusão de que os “governos progressistas” da América do Sul não só teriam sido realmente um laboratório e uma maneira de sair do neoliberalismo, – ou a única- mas que eles continuam em bom estado de saúde. Neste quadro, “(…) o triunfo das forças que estão no governo (o PT no Brasil, o MAS na Bolívia e no Uruguai o FA) permite afirmar a persistência do ciclo progressista“[6] e novamente: “Esta ratificação prolongada no tempo afirma a derrota de tentativas neoliberais territoriais-regionais das elites, de retomar o controle político direto e de alguma forma, ainda mantém abertas as expectativas de uma dinâmica regional de maturação não diretamente subordinada à hegemonia ocidental neoliberal “. Esta análise, comprovadamente equivocada (a vitória eleitoral de Dilma foi uma grande derrota política e o início de uma reversão eleitoral geral que também aconteceu na Venezuela, Argentina e na Bolívia), não estava relacionada aos desafios reais, mas aos requisitos de uma posição de “esquerda”, que é definida pela primeira vez como luta contra o neoliberalismo (entre mercado e estado, melhor optar pelo último, ainda que este tenha estruturas reconhecidamente mafiosas) e também como antiocidental (entre China e os Estados Unidos, a China é melhor, mesmo que sufoque as lutas de classes).
O que é ainda mais grave é que a projeção idealista (uma esquerda que seria estatal e anti-imperialista) é totalmente mistificada: governos progressistas em geral e em particular o Governo do PT (Dilma), não são de modo algum antineoliberais e muito menos antiocidentais. O neodesenvolvimentismo de Dilma é absolutamente interno ao pacto neoliberal e é por isso que Lula passou tranquilamente de uma política à outra. Os “líderes” do PT estão preocupados com as taxas de crescimento e nada mais. Se as fortes doses de neodesenvolvimentismo não funcionam (na verdade, elas foram catastróficas) aumentam-se as doses de neoliberalismo, como fizeram entre 2003 e 2008 e, em 2014 e 2015. Não é coincidência que o todo-poderoso Ministro da economia de Temer era o homem forte da economia de Lula, durante oito anos. A política econômica do presidente interino é exatamente a mesma que Dilma estava tentando fazer e não conseguia, por causa da paralisia de sua base parlamentar. A defesa do PT e de Dilma é mesmo a defesa da “esquerda” como identidade vazia e abstrata (um caso real dos significantes vazios, à la Laclau): é mais importante se sentir bem como “esquerda” do que entender, em primeiro lugar, as dimensões de sua derrota esmagadora e por outro lado, perceber o nível de isolamento social da esquerda como um todo. Dilma tinha apenas 8% de aceitação e milhões vão às ruas pedir seu Impeachment? Este é o resultado da campanha dos meios de comunicação conservadores e aqueles que manifestam… são a elite branca. Está tudo explicado! Aqueles que não aceitam essa lógica autoritária são pessoas isoladas, possivelmente loucas ou irresponsáveis, com alianças estranhas… quando não estão diretamente ligados ao inimigo. A corrupção sistêmica da política se mostra como corrupção da subjetividade.
Quem seria o inimigo de um governo e um partido que governou com e pelo dinheiro dos grandes grupos de construção saídos da ditadura militar? Na verdade, a esquerda não precisa ser stalinista para trabalhar como… uma Polícia: a verdade da repartição pública (de esquerda) se afirma como superior à verdade da democracia.
Esta é uma boa oportunidade para ver como a doxa da esquerda funciona e para pensar a situação que deviam viver os dissidentes do bloco soviético – antes – e da China maoísta – depois. Eles foram perseguidos por criticar um regime que não só não deixava nenhum espaço para a democracia, mas que se aliava às forças da direita interna (a burocracia estatal, tecnocratas que controlavam simultaneamente os aparelhos produtivos e repressivos) e externa (a aliança de Stálin com Hitler, a diplomacia secreta da China com a administração Nixon), ao passo em que enquadravam os “dissidentes” como “agentes da direita”. E a esquerda internacional, de forma mais ou menos entusiasmada, conforme o caso, participava desse consenso.
Leiamos Simone de Beauvoir e seu “Ensaio sobre a China”, 484 páginas escritas a partir de uma visita organizada pelo regime em 1955 (e publicado em 1957) [7]. Beauvoir não se deixa enganar, mas ela concorda em jogar o jogo: “Os anticomunistas sorrirão de seus escrúpulos: o governo se permite dispensar a verdade quando conveniente. De fato. Mas esquecemos também que até o presente quase todos os chineses foram completamente afastados da vida política. Sofriam o seu destino na passividade e na ignorância. Um conhecimento ‘dirigido’ representa um imenso progresso face à essa escuridão… e até mesmo por si só é capaz de dissipá-la “[8] (grifo nosso). Assim, vejamos o dispositivo: o anticomunismo explica e, especialmente, justifica tudo. A informação dirigida é um avanço e serve a que propósito? “A situação na China é absolutamente incomparável com a da Hungria ou a da Polônia. Longe de sacrificar a massa chinesa a um princípio abstrato ou a um futuro mítico, como alegado pelos anticomunistas, o regime, promovendo a indústria pesada, serve aos interesses distantes e imediatos de toda a população. “[9] Esta é certamente uma defesa de boa-fé, com a convicção de que sem indústria pesada, a China estaria condenada a ser um vassalo da URSS e “recairia no atraso infernal da superpopulação e da fome.” [10] Mas, a boa-fé funciona como um mecanismo moral de polarização: não apoiar a industrialização forçada, se atrever a criticá-la, significaria alinhar-se aos anticomunistas ou ser um anticomunista. O fato é que o “grande salto” em direção da indústria pesada – apenas dois anos após o lançamento do livro de Beauvoir, se transforma em pesadelo: “Em 1959, 1960 e 1961 (a China atravessa) a maior fome não só da história chinesa, mas de toda a história». [11]
Ao contrário do que dizia Beauvoir, Jean-François Billeter recorda que nenhuma fome havia atingido todo o país como naquele caso. Aqui é importante ressaltar que o mecanismo do desastre não é apenas a escolha do tipo de planificação (indústria pesada e a proliferação de pequenos altos-fornos na casa de todos os camponeses), mas a organização de um consenso forçado, ou seja, a “mentira generalizada” [12]. É onde reside o problema: o apoio à industrialização pesada pode ser um engano, mas justificar a manipulação da informação em nome da luta contra o anticomunismo, não é. Criticar, exercer o seu direito de fuga, é ser anticomunista. Mata-se dois coelhos com uma cajadada só: o princípio da democracia radical vai para o lixo e a mistificação da realidade torna-se o método de comunicação de massa escolhido. Como morreram dezenas de milhões de pessoas na China maoísta? “Elas não morreram de cansaço ou de doença, como é geralmente o caso nas épocas de fome, mas apenas de fome e em silêncio, enquadradas por um regime que permaneceu senhor da situação. [13]” Em 1974, depois de quase vinte anos, Roland Barthes – durante a viagem da equipe da Revista parisiense Tel Quel à China – teve que se limitar a confiar suas críticas ao seu diário de viagem, num estilo blasé entediado: “Discurso mortal, comparação passado / presente. Eu olho para o meu copo de chá: as folhas verdes se abriram e formam uma camada no fundo do copo . Mas o chá é muito leve, insípido, mal chega a um chá de ervas, é água quente “. O que o regime divulga é água quente, mas a informação é muito mais controlada do que o preparo do chá: “O fato incontestável, o bloqueio completo das informações, todas as informações, do sexo à política. O mais surpreendente é que esse bloqueio seja bem sucedido, isto é, que ninguém, independentemente da duração e das condições da sua estada, não tenha conseguido forçar nenhuma brecha em qualquer ponto que seja“[14].
A esquerda, tanto nas suas experiências realmente existentes (URSS, China, Cuba, Venezuela e, em termos muito paradoxais, o PT no Brasil) e nas suas redes intelectuais, simultaneamente elimina o conflito (toda crítica é ”anticomunista” ou “narrativa fantasiosa” que a polícia do pensamento atribuirá a um “desvio” qualquer) e, portanto, a verdade. Encontramo-nos exatamente na mesma situação mencionada por Maurice Merleau-Ponty sobre a URSS e a desestalinização e mais amplamente, a política paranoica [15]. Muito antes do Relatório de Khrushchev, ele escreveu, “ficou estabelecido que os cidadãos soviéticos podem ser deportados no decurso de um inquérito, sem julgamento e sem limite de tempo (…) É provável (…) que (…) o número total de detidos remonte à casa dos milhões: alguns dizem dez milhões, outros quinze“. Merleau-Ponty tirou suas conclusões: “A menos que se seja um louco, admita-se que esses fatos colocam inteiramente em questão o significado do sistema russo.”[16] O autor escreveu isto em 1950 e já captava a armadilha que o movimento “comunista” não apenas encontra, mas construía: “Se os nossos comunistas aceitam estes campos e a opressão, é que eles esperam a sociedade sem classes através do milagre da infra-estrutura.”
Se o PT de Dilma e Lula organizou os campos de trabalho das grandes barragens e megaeventos esportivos, juntando-se carnalmente em corrupção com oligarquias neoescravagista (grandes grupos de construção de ditadura e o PMDB de Temer, de Sarney e Calheiros), é que ele acredita que o desenvolvimento é algo bom e necessário e… paciência se é muito ruim para os índios ou ainda melhor, uma vez que estes serão proletarizados e “nacionalizados” (e tanto melhor em relação aos subornos recebidos). Em 1950, a crítica de Merleau-Ponty à URSS era profunda e não respeitava nenhuma ortodoxia, mas ele sentia ainda a necessidade de proclamar um certo grau de fidelidade à “ideia de comunismo”: “É mais urgente manter algumas ilhas onde se ama e pratica a liberdade do que ir contra o comunismo” [17]. Mas é precisamente este mecanismo que o “comunismo realmente existente” (inclusive sob forma de movimento intelectual) implementa contra a liberdade e, portanto, contra a verdade. Seis anos mais tarde (em 1956), antes da repressão soviética dos comunistas húngaros, Merleau-Ponty propõe uma reflexão “sobre a desestalinização”. Em primeiro lugar, Merleau-Ponty ressalta que mesmo “comunistas muito disciplinados (…) repudiaram solenemente o princípio de que nunca se deva apelar ao exterior nas lutas entre comunistas“[18]. Simone de Beauvoir, no mesmo período, mostra que era suficiente ir da URSS para a China para dar novamente à “disciplina” perdida toda a sua rigidez. As inúmeras posições intelectuais tomadas sobre o “golpe” no Brasil mostram que este mecanismo está ainda ativo, mesmo se a pureza ideológica da década de 1950 já tenha se perdido. Merleau-Ponty justamente disse que “a repressão de Budapeste (prova) que nenhum (dos) princípios (do comunismo) sairá incólume, (e) que a desestalinização nada representa se não significar uma reforma radical do “sistema” “[19]. De fato, não foi Stalin o problema, mas o modo de funcionamento da “esquerda” em geral. Vejamos como Merleau-Ponty prossegue, incluindo o uso do Relatório Khruschev no XX Congresso do PCUS: “O custo real da produção não está relacionado com o custo previsto e a produtividade não é dirigida. Tudo isso, no final das contas, deve aparecer em algum lugar: chega um momento onde os disparates entre a vontade e os resultados são óbvios. Assim, a pressão dos fatos é tão forte que o sistema renuncia a fazer contas “[20]. Isto é exatamente o que aconteceu, em diferentes graus, na Venezuela do “socialismo do século XXI” (onde agora a população carece de produtos básicos), Argentina (onde as estatísticas sobre a inflação, a dívida, a pobreza e a desigualdade eram embelezadas) e Brasil: Dilma foi reeleita em nome de uma saúde econômica inventada, em um país literalmente falido: perda de 10% do PIB per capita, menos 20% de produção industrial, inflação de mais de 10%, a dívida pública duplicou em um ano no Rio, onde tivemos os Jogos Olímpicos em agosto de 2016, o estado não paga regularmente os seus funcionários durante meses (nem mesmo a polícia ), as dívidas não são pagas, a Petrobras está praticamente falida, assim como a Eletrobras, o maior grupo de telefonia entrou com pedido de falência, quatro refinarias em fase de conclusão nunca serão usadas etc. No Marketing de esquerda, tudo é explicado pelos complô do imperialismo, da mídia e da “direita”, como se eles não estivessem ligados carnalmente: “Um regime que quer fazer mas que nada quer saber– continua Merleau-Ponty – trata o fracasso como sabotagem e a discussão como traição “[21]. Referências mudam, mas o mecanismo é o mesmo. Ironicamente, é precisamente na maquiagem das contas que ocorre o acerto de contas no Brasil (impeachment), porque o PT não detém – como o chavismo na Venezuela – o monopólio do poder e seus aliados “conservadores” tem uma relação diferente com a contabilidade: paradoxalmente, a competição intercapitalista precisa de uma parte de verdade sobre a verdade da exploração.
No entanto, na sua análise, Merleau-Ponty é lapidar não tanto sobre o stalinismo, mas sobre a tentativa de salvá-lo que se percebe na desestalinização e é exatamente de lá que se deve recomeçar: “é pedido à ditadura de se desafiar sem ser deixar eliminar, e ao proletariado de se libertar sem rejeitar o controle da ditadura. É difícil, quase impossível. O mundo tem a escolha desse caminho ou o caos. É em formas sociais ainda a criar que uma solução deve ser procurada “[22]. Mas a esquerda no poder, é, ontem e hoje, na França de Hollande e no Brasil de Lula e do PT, repressão, desqualificação e mistificação das lutas que tentam inventar novas formas sociais. É por isso que o levante de junho de 2013 era insuportável para o PT e seus intelectuais, porque trazia algo novo.
Como não pensar em Vasily Grossman, o grande escritor soviético que escreveu as crônicas mais lidas narrando as batalhas realizadas pelo Exército Vermelho em Stalingrado, que teve toda a sua família exterminada pelos nazistas e que, uma vez tendo chegado em Berlim junto ao Exército Vermelho, se maravilhou em seu diário: “o comandante (general Berzari) teve uma conversa com o Burgermeister (Prefeito), que lhe pergunta o quanto será pago às pessoas mobilizadas para trabalhar para fins militares” e destacou: “na verdade, as pessoas aqui parecem ter uma ideia muito precisa dos seus direitos“[23] (grifo nosso). O cidadão soviético está surpreso que na capital em ruínas da Alemanha nazista, as pessoas estão preocupadas com os seus direitos e ousam reivindicá-los face ao ocupante: é que, paradoxalmente, o regime que emergiu da Revolução se transformou em seu oposto, eliminando o que Marx tinha retomado de Maquiavel, “a idéia de que a história é uma luta e que a política é uma relação com os homens, em vez de com os princípios.” [24]
Pode-se replicar que não se trata disso, que o Brasil de 2016 não é a União Soviética, e menos ainda a China maoísta de 1950. É verdade, a história se repete, primeiro como tragédia, depois como farsa. E não estamos apenas na segunda repetição. O que a esquerda é capaz de reproduzir é mesmo este mecanismo, entre um estado de emergência e a mistificação de um golpe inexistente para impor seu oportunismo e esmagar toda crítica. Não se deve ver diferença entre a opção abertamente neoliberal de Hollande e os gritos contra o “golpe” do Brasil de Lula. Estes são os dois lados de uma mesma esquerda a que temos realmente que dizer adeus: “O próprio do stalinismo ou oportunismo de esquerda, diz Hervé, é fazer uma política de colaboração e manter uma ideologia intransigente. O acordo estrondoso, a paz vociferada, a mistura de concessão política e abuso verbal, são a própria definição do stalinismo. “[25]
Um dos mecanismos perversos do consenso de “esquerda” opera na base da afirmação “não há alternativa”. No entanto, a falta de alternativa não é um dado natural, muito menos o fruto dessa implosão do pacto mafioso ao qual o PT tenha aderido, mas o produto de uma estratégia deliberada de destruir qualquer alternativa possível. Assim, o movimento de junho 2013 foi destruído. É sempre de acordo com a mesma lógica que a candidatura de Marina foi impedida primeiro e depois esfacelada. Da mesma forma, o falso discurso sobre “o golpe” inexistente continua a produzir esta “falta” de alternativas e de falsificar o debate. Não haverá alternativa enquanto permanecemos no terreno imposto por essa esquerda. O que precisamos é voltar ao homem revoltado, ao meio-dia do pensamento, onde a revolta nega a divindade para compartilhar as lutas e o destino comum [26]. É bem isso que Claude Lefort vê em Arquipélago Gulag, quando ele aponta como Solzhenitsyn, após as críticas que fez à revolução, se inflama na “descrição das grandes revoltas dos condenados” que lhe “inspiram páginas que estão entre as mais belas da literatura revolucionária”[27]: a revelação da “(…) revolta dos zeks (Zek, diminutivo da palavra russa zaklioutchennyi, significando preso), e de uma maneira geral, a sua nova resistência, através do qual eles afirmam-se como políticos, retomam a palavra e começam a recuperar a sua dignidade de homens. “[28] O que o condenado do sistema repressivo infame resultante da revolução acaba pensando como uma alternativa … é exatamente a revolução ou parafraseando Camus, o homem revoltado. É na exclamação de Solzhenitsyn que as alternativas repousam: “Ó força dos movimentos populares. Como você modifica rapidamente os dados de política. “[29]
[1] Cf. Multitudes, Majeure 56 – “Devenir-Brésil post-Lula”, Paris, 2014.
[2] Durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) o PT tentou o seu Impeachment várias vezes.
[3] Giuseppe Cocco, “Le mouvement d’indignation au Brésil face à l’austérité néolibérale de Lula et Dilma", Multitudes, n.59.
[4] Matheus Leitão, “Deleção de Sergio Machado atinge Temer”, O Globo, 16 juin 2016.
[5] Barbara Szaniecki e Giuseppe Cocco, “Maledetto sia giugno: il Brasile un anno dopo”. Giuseppe Cocco, “Dilma e Aécio são o Estado contra a sociedade”, Entrevista por Patricia Fachin, IHU-Online.
[6] Sandro Mezzadra y Diego Sztulwark, “Imágenes del desarrollo, ciclo político y nuevo conflicto social”, 3 novembre 2014.
[7] La longue marche, Gallimard, Paris, 1957
[8] Ibid., p. 240.
[9] Ibid., p. 161.
[10] Ibid.
[11] Jean François Billeter, La Chine trois fois muette, Allia, Paris, 2000, p. 48. Billeter fala de trinta a quarenta milhões de mortos, de acordo com diferentes fontes. Slavoy Zizek cita a biografia de Mao para falar cerca de 38 milhões de mortos no mesmo período (início de 1958), devido, também às exportações de trigo para a URSS em troca de tecnologia nuclear e de armamento. “Introduction” à Mao, “On practice and contradiction“, Verso, London, 2007, p. 10.
[12] Billeter, ibid., p. 47.
[13] Ibid., p. 48.
[14] “Le supplice chinois de Roland Barthes”
[15] “L’homme et l’adversité”, Rencontres Internationales de Genève, 1951, Signes (1960), Gallimard, Paris, p. 405.
[16] “L’U.R.S.S. et les camps”, 1950, Signes, cit., pp. 424-5.
[17] Ibid. p. 438.
[18] “Sur la déstalinisation”, 1956, publié dans Signes, cit. p. 472.
[19] Ibid., p. 474.
[20] Ibid., p. 476.
[21] Ibid., p. 480.
[22] Ibid., p. 488.
[23] Antony Beevor & Luba Vinogradova, Un escritor en guerra. Vasili Grossman en el Ejercito Rojo, 1941-1944, Traduction de l’anglais à l’espanhol de Juanmari Madariaga, Crítica, Barcelona, 2012, p. 410.
[24] Maurice Merleau-Ponty, “Note sur Machiavel”, Communication au Congrès Umanesimo e scienza politica, Rome-Florence, septembre 1949, publié dans Signes, cit., p.357.
[25] Merleau-Ponty, Cit. , p. 491
[26] Albert Camus, L’homme révolté, Gallimard-Fólios, Paris, 1951, p.381.
[27] Claude Lefort, “Sur L’archipel goulag” (1978), Encyclopédie Universalis (supplément), dans Le temps présent. Écrits 1945-2005, Belin, Paris, 2007,p. 371.
[28] Ibid., p. 372.
[29] Apud Lefort, ibid., p. 373.
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O golpe que não houve - Instituto Humanitas Unisinos - IHU