25 Outubro 2016
O bispo inglês William Kenney é uma figura-chave no diálogo católico-luterano institucional. Ele estará com o Papa Francisco na Suécia no final deste mês e acredita que a unidade entre os cristãos é uma questão de décadas apenas, sendo possível que Francisco venha a usar esta viagem para fazer um gesto especial para a intercomunhão.
Descrever Dom William Kenney como um “bispo auxiliar da Diocese de Birmingham” não capta a profundidade e amplitude das funções desempenhadas por ele há muitos anos em organismos católicos pan-europeus: por duas vezes, por exemplo, ele presidiu a Caritas Europa e desempenhou um papel fundamental na organização da ajuda despendida às ex-repúblicas soviéticas depois da queda do Muro de Berlim.
Na semana que vem se juntará a um pequeno núcleo que vai estar presente na comemoração católico-luterana dos 500 anos da Reforma, motivo da ida de Francisco à Suécia. Esta vai ser a primeira visita um papa à Escandinávia desde a visita de João Paulo II em 1989, evento que Kenney, a propósito, coordenou.
Fluente em sueco, tendo passado 37 anos no país, Kenny – que também fala alemão – há tempos está envolvido nos diálogos ecumênicos nos países nórdicos, especialmente no diálogo formal entre católicos e luteranos. Em 2013, ele foi nomeado pela Santa Sé como um dos presidentes do diálogo internacional da Federação Luterana Mundial e do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.
Kenney esteve recentemente com o Crux em Londres para falar sobre os bastidores do evento, do diálogo que se espera travar e o que Francisco pode dizer ou fazer para elevá-lo a um novo nível.
A entrevista é de Austen Ivereigh, publicada por Crux, 21-10-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis a entrevista.
Os anglicanos estiveram recentemente em Roma para celebrar os 50 anos de relações e do diálogo ecumênico. O diálogo com os luteranos vem acontecendo desde a década de 1960. Como o senhor compararia os dois?
Estes são os dois grandes diálogos que vêm acontecendo. Ambos têm o mesmo caráter, no sentido de que nem todos da Igreja Anglicana estão engajados nesta troca de ideias, e certamente nem todos da Igreja Luterana o estão também; há um outro órgão luterano, além do Federação Luterana Mundial – FLM, mas esse é maior.
Eu diria que o diálogo luterano está mais perto de nós do que o diálogo anglicano, inclusive em termos doutrinais. No decorrer dos diálogos, alcançamos um grande sucesso.
O diálogo desde a década de 1960 com os luteranos conduziu-nos à Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, de 1999. Os elementos que achamos que causaram a Reforma se dissiparam: a excomunhão dos luteranos foi suspensa, a condenação dos católicos foi suspensa. Esta é a posição das igrejas atualmente; não é apenas uma proposição teológica.
Há os que dizem que já alcançamos a unidade; com certeza demos um grande passo em frente, e desfizemos a maioria dos problemas advindos da Reforma.
Desde então, estamos tentando descobrir o significado disso tudo. É como quando o Espírito Santo faz alguma coisa – há uma enorme explosão e, em seguida, precisamos descobrir o que aconteceu. Eis o que, no momento, temos feito. Por exemplo, o diálogo atual fala sobre as decorrências do batismo. Há teólogos luteranos que dizem que uma vez que reconhecemos o batismo (o que fazemos), então a Eucaristia segue-se automaticamente e, portanto, deveríamos ter uma intercomunhão. Essa questão precisa ser debatida.
É claro que alguns luteranos não subscrevem a Declaração Conjunta, assim como há católicos que não concordam com ela. Mesmo assim é um grande passo adiante. As questões que ainda restam – sexualidade e mulheres ordenadas ao sacerdócio – surgiram nos tempos modernos; não são questões advindas da Reforma.
O tema das mulheres ordenadas ao sacerdócio é complicado, porque, com algumas das mulheres ordenadas que conheço, não há problema nenhum, porque o que elas consideram sacerdócio não tem quase nada a ver com o que nós consideramos como sacerdócio.
Na Igreja, acolho ex-luteranas ordenadas que, com toda a honestidade, apenas queriam pregar, tinha nada a ver com a vida sacramental.
O consenso do documento de 1999 sobre a justificação afirma, se eu entendi corretamente, que os motivos para os católicos condenarem as posições protestantes e vice-versa já não existem mais, e se alguma vez essas igrejas sustentaram aquilo que a outra dizia que sustentavam, atualmente isso não mais ocorre. Em outras palavras, a Reforma foi um grande mal-entendido!
Fizeste um bom resumo. Será que Martinho Lutero seria excomungado hoje? A resposta é não: ele provavelmente não seria. E ele não quis dividir a Igreja; acabou fazendo isso, mas não é aí onde tudo começou.
É claro que ainda vamos encontrar alguns católicos e luteranos que ainda dizem que o outro se mantém com tai e tais posições, mas eles não representam as posições predominantes das igrejas. O documento foi aprovado por Roma, o que vincula os católicos quer gostem ou não; os luteranos são formados por aproximadamente 100 igrejas, e houve cerca de 37 que não subscreveram [ao documento sobre a justificação] naquela época. Algumas acabaram se alinhando posteriormente.
Quando lemos “Do Conflito à Comunhão”, vemos uma enorme convergência.
E é por isso que uns dizem que estamos quase lá.
Claro, Lutero teria ficado muito chocado com a homossexualidade e com a questão das mulheres na igreja. A eclesiologia permanece sendo uma questão fundamental. Porém, no geral, estamos avançando, e isso vai conduz inevitavelmente a decisões muito dolorosas em ambos os lados – sobre a estrutura, a organização e coisas assim.
Com o documento sobre a justificação, o elemento central da identidade protestante se dissipou. De repente não é mais possível nos definir no contraste com o outro. Acho que estamos nos aproximando da parte do diálogo católico-luterano em que a unidade vai se tornar uma possibilidade prática, isso dentro de algumas décadas.
O que levanta a questão do significado de unidade dos cristãos.
A posição da Santa Sé é que estamos trabalhando pela “unidade visível”, sem definir o que é isso. Mas posso dizer que esta unidade é mais do que alcançamos até agora.
Acho que a Santa Sé está sendo bastante sincera nesse objetivo. Se pegarmos o documento Ut Unum Sint, do Papa João Paulo II, onde se pergunta às outras igrejas como elas gostariam de ver exercido o papado, veremos que o seu desejo é que todos os cristãos reconheçam o papa. Ele não estava dizendo que tinham de reconhecer o papado como é hoje, mas propondo um debate sobre o que poderia ser.
Ele disse: “escrevam para mim, digam o que querem”, mas elas não o fizeram – ou muito poucas se puseram a responder. Lembro que se passaram uns dois anos para que igreja sueca respondesse.
Na encíclica Evangelii Gaudium, Francisco cita essa passagem de Ut Unum Sint e não diz que nada aconteceu com ela. O que é Francisco está fazendo agora, ou o que ele poderia fazer, para tornar esse convite mais concreto aos luteranos?
Ele poderia, obviamente, repeti-la. Poderia, se tiver os recursos, pôr o Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos a dar sequência a essa passagem – é preciso colocar pessoas qualificadas aí. Certamente a acolhida à sinodalidade por parte do papa caiu muito bem entre os luteranos.
O documento “Do Conflito à Comunhão” descreve que o que vai acontecer em Lund não é uma celebração, porque não celebramos a divisão dentro do cristianismo. Mas então o que é? É uma celebração da caminhada das duas Igrejas em direção à unidade? E por que acha que Roma concordou em participar da comemoração da Reforma na Suécia?
Sei que teve muita conversa sobre se o papa viria, e se iria participar. Sempre houve uma presença católica nas comemorações da Reforma, pelo menos nos últimos tempos.
A vinda do papa, penso eu, é uma decisão dele próprio: como sabemos, Francisco é uma pessoa um tanto simbólica. E o ato simbólico de ele estar aqui, independentemente do que disser, é o que, de fato, vai importar.
Por que a Suécia? É porque em Lund, no ano de 1947, a Federação Luterana Mundial foi fundada. Só depois ela foi para Genebra. É importante notar que os convites não são da Igreja na Suécia; são da FLM e do Vaticano. O meu convite é subscrito pelo Cardeal Kurt Koch, do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, e pelo presidente da Federação Luterana Mundial, Bispo Munib Younan.
Assim, ao falarem em Lund, eles estarão se dirigindo a todos os luteranos de todo o mundo?
Exatamente.
O que nos leva a um dos motivos para a comemoração: auxiliar na recepção do documento sobre a justificação. Isto é, ajudar luteranos e católicos a se apropriarem deste documento.
Exato. Para que o documento ganhe popularidade, para que as pessoas o conheçam e passem a dizer uns aos outros: “Estes católicos não são tão horríveis quanto pensávamos; estes luteranos não são tão horríveis quanto achávamos. Vamos trabalhar juntos”.
A maioria dos católicos – e, sem dúvida, a maioria dos luteranos – nunca leu este documento. Eles poderão estar se perguntando: “Como tudo isso nos afeta, e na paróquia?” Como o senhor resumiria a importância da comemoração para os fiéis nos bancos das igrejas?
Creio que seja importante as pessoas saberem que a Reforma foi um grande mal-entendido, todos o interpretamos de uma maneira errada, de ambos os lados. É preciso saber que suspendemos as excomunhões e as condenações e que pedimos desculpas. Portanto podemos todos ser amigos.
O que pode levar uns a dizer: “Ok, mas e agora?”
Acho que estamos não hora de começar a evoluir no sentido da unidade visível. Não há nenhum assunto delicado que não possa ser abordado. O “fantasma” já foi embora e aqui estamos nós, olhando uns para os outros. Penso que grande parte do trabalho ecumênico tem de ser feito no nível local. Um dos grandes problemas – e vai ser interessante ver se Francisco o mencionará – é a intercomunhão.
O papa já fez um gesto nesse sentido quando em visita a uma comunidade luterana em Roma e, durante uma sessão de perguntas e respostas, ele sugeriu a uma luterana casada com um católico que, talvez, se sua consciência permitir, ela poderia receber a comunhão na igreja do marido.
É verdade, porém não temos certeza do que ele quis dizer com isso. O papa nunca esclareceu esse gesto.
Há respeitados teólogos luteranos que vão dizer que, pelo fato de reconhecermos o batismo, automaticamente tem-se a entrada para a Eucaristia. É uma posição teológica aceita, que a Igreja Católica não aceita mas respeita. Esse é um caminho a seguir.
Em certas circunstâncias, nós já permitimos que luteranos e outros protestantes que não estão em condição de se aproximarem dos seus próprios ministros recebam a Comunhão. Isso é permitido. Portanto, não podemos dizer que, ao mesmo tempo, que eles não acreditam no que acreditamos.
Temos luteranos na Alemanha que dizem que, por causa disso, deveríamos retirar a aprovação da Declaração Conjunta, e temos católicos nos Estados Unidos que dizem que devemos retirar o nosso reconhecimento do batismo luterano. Isso é um absurdo teológico, e não é a posição de Roma: reconhecemos o batismo luterano, e isso sequer está aberto à discussão.
Sobre a Eucaristia, os luteranos têm mais ou menos a mesma doutrina que nós. Mas há sacerdotes luteranos com práticas que sugerem o contrário, mas estas não são generalizadas.
Existe uma convergência suficiente para o Papa Francisco fazer aquele gesto ainda não inteiramente claro?
Se quisesse fazer uma pequena revolução em Lund, Francisco diria que os luteranos podem, em determinadas circunstâncias, receber a Eucaristia. Isto seria um gesto importante. O que eu gostaria de ver é que, em um matrimônio ecumênico, o cônjuge não católico pudesse sempre ir comungar como seu parceiro ou parceira. Algo assim seria um grande passo em frente, e é pastoralmente muito desejável.
Eu não gostaria de ver, e isso não vai acontecer, que todo luterano pode receber a Comunhão nas missas católicas. Não chegamos aí ainda, e algo assim poderia causar confusão.
Francisco é notoriamente impaciente com o diálogo teológico. Ele não é contra, mas está convencido de que é preciso atuar juntos para criar espaços para o Espírito Santo agir, e é isso o que vai trazer a unidade. Realizar trabalho missionário juntos, atuar pela justiça juntos, demonstrar misericórdia... eis o que traz a unidade. Mais ou menos foi essa a mensagem com os anglicanos.
Exato. Acho que a parte da justiça já está aí – não me lembro de ter algum desacordo com luteranos sobre temas como justiça e paz; há, no mínimo, tanto como acordo com eles quanto há entre os católicos. Muitas vezes os católicos e luteranos trabalham em conjunto, emitem declarações conjuntas. Por exemplo, a Caritas Internationalis e a Swedish Church Aid. No Sudão do Sul, estamos cooperando com a igreja da Suécia, por exemplo.
Também começamos avançar na evangelização e na catequese. O problema é que não ensinamos exatamente as mesmas coisas ainda. Estamos orando juntos – há um fluxo constante de convites de ambos os lados. E já se passaram os dias em que criticávamos uns aos outros nas páginas dos jornais, hoje pegamos o telefone e dizemos: “Qual a novidade?” As relações entre os bispos católicos e luteranos são, em geral, bem boas.
Um dos compromissos feitos no final do documento “Do Conflito à Comunhão” é para conjuntamente “redescobrir a força do Evangelho de Jesus Cristo para o nosso tempo”. É uma passagem um tanto vaga, mas suponho que signifique trabalhar em conjunto, por exemplo, no caso dos refugiados, em que a Suécia tem sido excepcional – que é algo a que o Papa Francisco, sem dúvida, vai chamar a atenção.
Acho que nós e os luteranos podemos nos perguntar, neste momento, confrontados com este grande movimento de pessoas: que direito temos nós de manter do lado de fora essas pessoas pobres e desesperadas? Quando os nossos políticos nos dizem que somos [a Inglaterra] a quinta maior economia do mundo? Deveríamos estar nas ruas, convidando-as para entrar.
É interessante que, com a exceção da Itália, nação que tem feito um trabalho fantástico, os países que têm acolhido mais pessoas são países luteranos. Eles servem de exemplo para nós. Eis algo a que o Papa Francisco pode querer chamar a atenção.
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Na Suécia, o Papa pode inaugurar a intercomunhão, diz bispo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU