19 Julho 2016
"Alguns colegas clérigos soporíferos, desde sempre, foram objeto de crítica (muitas vezes fundamentada) sobre a sua capacidade de oferecer longamente o que não sabem dar em profundidade, a ponto de criar uma impiedosa e às vezes estereotipada antologia de ironias sobre a pregação eclesiástica."
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 17-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Era um domingo à noite, e, no terceiro andar de uma casa de Trôade – cidade portuária da atual costa turca, assim rebatizada em relação ao primigênio topônimo de Antigonia e, depois, de Alexandria pela sua proximidade com a Troia homérica – o apóstolo Paulo tinha celebrado a eucaristia ("partir do pão") e estava proferindo a sua homilia. Porém, ele tinha se empolgado e, como acontece não raramente com os pregadores, continuava falando, sem se dar conta de que já era meia-noite.
O evangelista Lucas, que, na sua segunda obra, os Atos dos Apóstolos (20, 7-12), conta o episódio, não hesita em ressaltar que Paulo "prolongou o discurso" e continuava falando incansavelmente, apesar de as pálpebras dos ouvintes começarem a se abaixar.
De fato, um rapaz chamado Êutico, sentado na janela daquela sala lotada, tinha caído em um sono tão profundo a ponto de cair ruidosamente como um corpo morto na rua abaixo.
O apóstolo providenciará trazê-lo ainda vivo junto aos presentes aterrorizados e, como se nada tivesse acontecido, retomará o seu sermão fluvial até o amanhecer.
É a partir desse episódio que, em uma data não especificada do século XVIII, o pastor anglicano Jonathan Swift teceu o seu Sermon upon sleeping in Church. Não, não é há homonímia. Quem profere essa pregação é justamente o autor das Viagens de Gulliver, nascido em 1667 em Dublin, onde, em 1713, tinha se tornado decano da Catedral Anglicana de St. Patrick.
É conhecia a ironia mordaz desse grande autor, capaz de usar os temperos literários mais picantes, até chegar ao sarcasmo, como acontece no seu terrível panfleto que contém uma modesta proposta para evitar que os filhos dos irlandeses indigentes sejam um fardo para os pais ou para o país, fazendo deles um beneficio para todos (publicado pela editora Marsilio em 2015). Para quem não sabe, a proposta levantada por Swift era a de colocar à la carte da gastronomia as tenras carnes dos recém-nascidos... Naturalmente, trata-se de um paradoxo satírico-moral, mas é óbvio também o quão quente era o tom desse pregador eclesiástico e civil.
Afinal, mesmo aquela aparente magia fantástica que são as Viagens de Gulliver, oferecidos em leitura sem remorso aos jovens, era, na realidade, uma sequência de navalhadas contra vícios e mesquinhezas humanas de todos os tipos, até chegar à árdua alegoria final em que se exalta a virtuosa simplicidade dos cavalos Houyhnhnm em relação à nauseante brutalidade dos Yahoo, as feras humanas (os inventores do homônimo site estadunidense sabiam disso?).
Mas voltemos ao sermão do nosso pastor. Ele tem logo preparada uma aplicação direta ao seu auditório em relação ao fato mencionado de Trôade: "O incidente que ocorreu com aquele jovem não bastou para desencorajar os pósteros. Mas, como os pregadores de hoje – embora sejam capazes de superar São Paulo na arte de adormentar as pessoas – ficam muito abaixo dele na realização de milagres, as pessoas ficaram tão prudentes a ponto de escolherem lugares e posturas mais seguras e mais convenientes para os seus próprios repousos, sem perigos pessoais...".
Na verdade, essa chicotada contra os colegas soporíferos – que, desde sempre, foram objeto de crítica (muitas vezes fundamentada) sobre a sua capacidade de oferecer longamente o que não sabem dar em profundidade, a ponto de criar uma impiedosa e às vezes estereotipada antologia de ironias sobre a pregação eclesiástica – amplia o alvo e também cai sobre o auditório secular e atinge o baixo ventre da indiferença.
Como observa Adriano Zanacchi, especialista em comunicação e editor da edição italiana da pregação de Swift, o autor "se irrita sobretudo com aqueles que usavam todos os tipos de desculpas para não participar do culto dominical ou antepunham o cuidado com os negócios ao da alma; e com aqueles que consideravam inteligente ficar em casa aos domingos, não só por preguiça ou para se renderem à cobiça e ao ócio, mas também por um radical desprezo em relação à religião".
E ainda sobre sermões, propomos um dos últimos testemunhos (Ultime testimonianze) de um dos maiores teólogos do século XX, Karl Barth, que morreu em 1968. Ele é dedicado a um gênero em particular, o das "pregações católicas e protestantes pelo rádio". Impedido pela saúde fraca, o teólogo, que tinha sido pároco evangélico-reformado, ouvia aos domingos de manhã as duas pregações transmitidas pela Rádio da Suíça Alemã, uma proferida por um pastor, e a outra, por um sacerdote católico.
Assim, nasceram algumas reflexões que são marcadas por considerações bem distantes das chicotadas de Swift. Acima de tudo, exalta-se o franco ecumenismo que permeia esses discursos e que exorciza os desvios apologéticos do passado.
Disse de modo claro, não há mais aquele pároco católico que enunciava "o perigo maçônico ou comunista ou, pior, protestante", e não se encontra mais um pastor protestante capaz de suspeitar que, em Roma, na realidade, está instalado o astuto poder de Satanás.
Barth sugere aos pregadores duas "proximidades" necessárias para elaborar um sermão ou uma homilia genuína: por um lado, ele recomenda a fundamentação no texto bíblico, evitando as divagações psico-sociológico-existenciais; por outro, porém, propõe a indispensável conexão com a vida dos fiéis, evitando decolar para horizontes pseudomísticos inconsistentes (as parábolas de Jesus com a sua sólida terrenicidade são, a esse respeito, um emblema).
Mas, curiosamente, o teólogo protestante também revela o fascínio que exerce sobre ele o fervor católico pós-conciliar alimentado pelo retorno à Bíblia com um entusiasmo de neófitos, já superior em relação ao hábito um pouco flácido da codificada tradição bíblica protestante.
Além disso, ele manifesta o seu interesse pela afirmação do próprio Concílio Vaticano II que une na liturgia as duas mesas, a da Palavra divina proclamada e a do pão e do vinho eucarístico, e convida a sua comunidade evangélico-reformada a integrar à pregação no culto dominical também a Santa Ceia: "Não nos tornaríamos, desse modo tão compreensivo, 'Igreja da Palavra', da Palavra que já não se faz apenas discurso, mas também carne?".
Dizíamos que essas notas sobre a pregação estão inseridas ao lado de outros "testemunhos últimos" do grande teólogo. Pois bem, gostaríamos de convidar a ler (ou melhor, escutar) a deliciosa entrevista radiofônica dedicada a Mozart, curiosamente concedida por ele no dialeto da Basileia.
Ao musicista de Salzburgo, Barth já tinha reservado mais de uma anotação e dirigido até uma carta, convencido – como afirmava com uma intuição fictício-teológica – de que, na liturgia do paraíso, certamente se usa apenas música de Bach, mas os anjos e os santos, ao voltarem para as suas celas celestiais, colocam apenas Mozart nos seus toca-discos!
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Quando o pregador é sonífero. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU