13 Julho 2016
“Precisamos desnaturalizar o tema dos desastres ambientais e reconhecer a determinação social desses eventos”, alerta Marcelo Firpo Porto, pesquisador do Centro de Estudos em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). Nesta entrevista para o Saúde Amanhã, ele analisa as perspectivas futuras para o Brasil e o sistema de saúde a partir do conceito de “injustiça ambiental”, decorrente das profundas desigualdades sociais do país. “Apenas com o fortalecimento da democracia e a adoção de um modelo de desenvolvimento focado na justiça socioambiental e em uma outra economia, mais solidária e sustentável, será possível superar a atual situação. Caso contrário, a injustiça ambiental se deflagará de forma sistêmica no país”, defende.
A entrevista foi publicada por Saúde Amanhã, 11-07-2016.
Eis a entrevista.
Como o conceito de “injustiça ambiental” está relacionado à saúde e à qualidade de vida?
O termo “injustiça ambiental” se relaciona com qualidade de vida e condições de trabalho ao se referir a uma distribuição desigual dos riscos e cargas ambientais decorrentes do processo de desenvolvimento de uma sociedade. Essa desigualdade é socioambiental e tem implicações nas iniquidades em saúde. O modelo brasileiro de desenvolvimento, baseado na venda de commodities, seja pelo agronegócio ou pela mineração, leva a uma distribuição desigual dos riscos decorrentes destes investimentos. O mesmo vale para projetos como Copa do Mundo ou Olimpíadas, em que comunidades e populações vulneráveis recebem mais intensamente as cargas dos riscos que outros grupos sociais. Os recentes conflitos ambientais na América Latina e, especificamente, no Brasil revelam que empreendimentos como esses afetam comunidades camponesas, indígenas, quilombolas e populações de baixa renda, que vivem nas periferias das grandes cidades. Essas pessoas acabam apresentando mais problemas de saúde e, assim, os riscos ambientais tornam-se um agravante à baixa qualidade de vida.
Há, ainda, um outro lado extremamente importante do ponto de vista da saúde, embora essa relação seja menos direta: o elo entre a identidade grupal, social e comunitária dessas populações e o território. Existe uma cosmovisão que tem a ver com o ecossistema. Há um conjunto de rituais e uma espiritualidade que são completamente destruídos quando determinados empreendimentos chegam. A recente tragédia em Mariana, Minas Gerais, quando houve a destruição do Rio Doce, é um exemplo. De alguma maneira, representou a destruição da cosmovisão do povo indígena Krenak. Como consequência houve a perda de identidade, decorrente do processo que chamamos de desterritorialização. Infelizmente, é bem comum que investidores internacionais ou transnacionais, articulados ao Governo Federal ou a políticas públicas estaduais, interfiram nos territórios sem que as populações que historicamente vivem ali participem das decisões ou ao menos sejam consultadas. Assim, as comunidades acabam recebendo somente o lado negativo desses investimentos.
O senhor defende que desastres ambientais não são naturais e sim consequência de determinados contextos histórico-sociais.
Já se reconhece, há muito tempo, que as mudanças climáticas e os eventos extremos são agravados pelo uso intensivo de combustíveis fósseis, pelos desmatamentos e pela elevada emissão de gás carbônico. Ou seja: têm uma origem social, humana, relacionada ao modelo de sociedade. Não são eventos “naturais” – este é um nome estranho. Ao mesmo tempo, há uma ocupação de territórios orientada por questões de renda. As pessoas frequentemente vão morar em áreas de risco porque não existem políticas públicas que deem a elas outra opção – e essa ocupação acaba se consolidando. Nas chuvas que devastaram a Região Serrana do Rio de Janeiro, em 2011, a principal tragédia foi o desvio de recursos que foram liberados, mas nunca chegaram às pessoas que perderam tudo.
Os desastres tecnológicos, por sua vez, também são tidos como naturais, como aconteceu em Mariana. O conjunto de empresas que trabalha na mineração passa a explorar um território mais amplo e uma quantidade maior de minério de ferro e, em vez de fazer a reciclagem adequada dos resíduos, simplesmente os estoca nas colinas, em barragens. Isso é um absurdo, porque já existem alternativas viáveis. Com o passar do tempo e com a crise econômica, os critérios de aferição, monitoramento e gestão de risco se degradam e tragédias se tornam uma questão de tempo. Nada disso é “natural”. Precisamos desnaturalizar o tema dos desastres ambientais e reconhecer a determinação social desses eventos.
Nesse contexto, quais as perspectivas para o Brasil nas próximas décadas?
Não há boas perspectivas. Serão momentos de muita luta, de resistência e, ao mesmo tempo, de muita dificuldade, sobretudo se as forças políticas conservadoras continuarem aumentando sua influência no Congresso Nacional e na sociedade. O atual modelo de desenvolvimento do país é, por si só, uma ameaça. Commodities estão sujeitas à flutuação de preços e, quando seu valor cai abruptamente, investimentos em segurança, gestão ambiental e proteção dos trabalhadores são os primeiros a serem cortados. Essa dinâmica ficou evidente durante as investigações da tragédia-crime em Mariana. Apenas com o fortalecimento da democracia e a adoção de um modelo de desenvolvimento focado na justiça socioambiental e em uma outra economia, mais solidária e sustentável, será possível superar a atual situação. Caso contrário, a injustiça ambiental se deflagará de forma sistêmica no país.
Outra ameaça é a tendência global à flexibilização da legislação ambiental e ao aumento da autorregulação pelas próprias empresas. Uma das frentes de retrocesso que ocorrem neste momento em nosso país é a PEC 65/2012, em tramitação no Senado, que extingue o licenciamento ambiental para obras públicas. A medida é absurda, mas não é a única. Apenas um mês após a tragédia em Mariana, mesmo com toda a repercussão global do caso, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou um projeto de lei no mesmo sentido. Há, ainda, a PEC 3.200/2015, que tramita na Câmara dos Deputados e, se aprovada, extinguirá toda a legislação de controle de agrotóxicos – substituindo o termo pelo conceito de “defensivo fitossanitário”. Na prática, serão alteradas as responsabilidades de liberação do uso dessas substâncias – o que terá efeitos diretos sobre a saúde da população brasileira.
O que pode ser feito no presente para que, no horizonte dos próximos 20 anos, o Brasil possa ser um país mais justo, do ponto de vista ambiental?
Embora o cenário seja negativo, existem iniciativas boas acontecendo. Na Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), temos trabalhado a questão territorial com outras organizações sociais, construindo juntos encontros para pensarmos grandes temas que contemplem, em especial, os agricultores familiares. Avançamos muito nessa abordagem e, entre outras ferramentas, temos adotado as caravanas territoriais: incursões que reúnem instituições, governos e militantes, acadêmicos ou não, para conhecer os territórios. Investigamos desde os conflitos, estratégias de resistência e denúncias de violações de direitos até a agenda positiva de transformações que já estão em andamento nesses locais: tradições agroecológicas, agricultura sem uso de veneno, economia solidária e experiências de feiras que são muito mais que uma forma de reduzir a força dos atravessadores e aumentar a renda das famílias, mas são também eventos políticos. Nosso desafio, agora, é levar essas discussões para o meio urbano.
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Pesquisador da Ensp/Fiocruz, analisa as perspectivas futuras e o sistema de saúde a partir do conceito de ‘injustiça ambiental’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU