10 Junho 2016
Movimentos recentes por reivindicação de diversas demandas carregam em si potencialidades que podem ser um caminho para novos modos de vida na cidade
Fonte:filosofospibidcm.blogspot.com |
Ocupações e diferentes formas de ser na cidade
No contexto multifacetado da metrópole é onde os atores sociais ultimamente têm encontrado diferentes formas para manifestar suas insatisfações e reivindicar demandas, extrapolando modos de mobilizações mais clássicos e por vezes dicotômicos no modo de perceber os problemas e as possíveis rotas em direção às soluções. O exemplo mais candente desse comportamento têm sido as ocupações de diversos espaços públicos pulverizadas pelo país todo. Em sua pesquisa de doutorado, Bárbara Szaniecki estudou a Ocupação Prestes Maia, localizada em um edifício de dois blocos, um com nove e outro com 22 andares, da Avenida Prestes Maia, no centro da cidade de São Paulo, e considerada a segunda maior ocupação vertical da América Latina, abrigando 378 famílias, mais de mil pessoas, desde o ano 2010. Segundo dados Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, apenas a Torre de David, na Venezuela, tem mais ocupantes. A professora acompanhou o cotidiano das pessoas na ocupação e suas mobilizações, também analisando de perto as manifestações estéticas originadas nesses processos.
“Os territórios-tempo das cidades não são estanques, podem se transformar. Um dos exemplos, que pode ocorrer principalmente pela via das ocupações, é o processo de favelização das cidades, temido por alguns setores das populações de grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo porque é visto de um modo negativo, mas na verdade representam um outro modo de organização social e política da vida. Na Ocupação Prestes Maia as pessoas limparam o prédio que estava abandonado há décadas, se organizaram, matricularam as crianças nas escolas do entorno e resistiram nesse espaço. Sujeitos múltiplos participaram dessa mobilização. O precariado, categoria que cresce com as desigualdades sociais, conquistou a empatia e o engajamento de outros grupos como designers e artistas que enxergaram a potencialidade de uma nova forma de viver na cidade”, ressalta a pesquisadora.
Sobre sua análise dos cartazes da ocupação que circulavam como meio de comunicar as demandas do grupo, Bárbara entende que não só os conteúdos veiculados, mas também o formato utilizado é intencional. “Houve uma produção estética atrelada à ocupação. O uso principalmente de cartazes não é por acaso. Trata-se de um material mais facilmente reproduzível e isso tem relação com a reprodução dos corpos pobres na nossa sociedade. O cartaz ora também foi utilizado como máscara e essa é uma forma de subversão do poder através da carnavalização do protesto, de colocar no lugar do ‘rei’ a ‘plebe’. O movimento também é expresso na utilização do cartaz, que pode ser transportado, utilizado nas manifestações ou afixado em diversos lugares”, frisa.
Foto: João Vitor Santos / IHU |
As multiformances
Para além da comunicação veiculada pelos cartazes, a professora também construiu reflexões acerca dos momentos em que a ocupação sai às ruas para manifestar suas demandas. “Olhar para os cartazes não era suficiente para entender a ocupação. Também fazia parte da sua produção estética os atos na rua, que eu chamo de multiformance, pois nesse momento há a participação de múltiplos atores, múltiplas formas de expressão, múltiplos conteúdos, múltiplos tempos e múltiplas demandas. Assim a ocupação foi ganhando mais apoiadores e aglutinando outras lutas, além do direito à moradia”, reflete.
Segundo Bárbara, além dos conteúdos e formas de expressão, transitar entre as diferentes dimensões do tempo também é uma questão imbricada nos processos de ocupação que têm ocorrido na cidade. “O tempo não é uno. Nós vivemos em Chrónos, que é o tempo cronológico, mas há sempre a possibilidade do Aión, o tempo do acontecimento, da possibilidade. Ainda há o Kairós, o tempo do momento, da oportunidade que não se reapresenta, ou se toma ela ou se perde. Nas ocupações a percepção desses tempos me aprece apurada, pois as pessoas que fazer parte dessa mobilização estão vivendo à margem do tempo normativo e precisam lidar com os diferentes tempos para não perder sua capacidade de resistência”, destaca.
A sobrevivência dos vagalumes
Dentro dessa perspectiva sobre o tempo, também se insere reflexão a respeito da longevidade das ocupações e os legados que podem deixar. A pesquisadora tem um olhar de esperança sobre tais mobilizações e recorre ao trabalho do filósofo, historiador e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman, que escreveu A sobrevivência dos vagalumes (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009). Na obra, a partir do Artigo dos Vaga-Lumes, escrito por Pier Paolo Pasolini em 1975, Didi-Huberman faz uma conexão com o pensamento de diversos autores onde os vagalumes representam as diversas formas de resistência da cultura.
“As ocupações vivem um período e se desfazem, mas voltam de outras formas, em outros momentos e lugares. Uma ocupação pode apagar, mas pode se acender em outro espaço e circunstância, assim como os vagalumes que se apagam e se acendem em um lugar diferente”, coteja.
E 2013?
O ano de 2013 foi emblemático para o Brasil, pois foi o período em que eclodiram com mais intensidade diferentes movimentos de contestação. De acordo com Bárbara, nesse período ganha mais vigor o fenômeno de conexão subjetiva entre os múltiplos sujeitos que estão se manifestando em relação a diversas demandas. A pesquisadora exemplifica essa percepção com o caso do Rio de Janeiro. “Em 2013, dois episódios marcaram significativamente a cidade do Rio de Janeiro: o caso da tortura, morte e desaparecimento de Amarildo, na favela da Rocinha, e a morte de cerca de dez pessoas em uma ação do Batalhão de Operações Especiais – BOPE na favela Nova Holanda, que faz parte do Complexo da Maré. A partir desses dois acontecimentos observou-se uma conexão subjetiva da cidade na integração dos movimentos de protestos e engajamento de diferentes atores sociais nessas lutas. Houve uma percepção de esses acontecimentos afetam a todos na cidade. Todos somos ‘Amarildos’ porque esses poderes afetam a todos nós. Não há o desejo de tomar o poder, mas de abrir um campo possível para outras formas de governo”, analisa.
E o que o Design tem a ver com tudo isso?
Esse é um dos questionamentos que a pesquisadora responde com base em suas próprias inquietações enquanto profissional da área. “Sempre me senti interpelada pela cidade como forma de ampliar as fronteiras para minha atuação enquanto designer, pensando essa expansão de atividade enquanto diversificação e não como massificação. Isso se possibilita com a inserção mais intensa dos profissionais nos ambientes onde vão trabalhar e a atuação dentro dos três Ps, que são Projeto, Processo e Possíveis. Isto é, projetar a partir dos processos e com vistas na abertura de possibilidades”, explica.
Para Bárbara, o Design pode ser um caminho interessante para engendrar mundos possíveis a partir da atualização dos acontecimentos, através do exercício de pensar modos de vida participativos. Nesse sentido o Design pode constituir-se como um meio de democratizar a democracia. “Os designers têm sido chamados a atuar no contexto urbano em trabalhos como a revitalização de espaços considerados degradados ou no desenvolvimento de novas fronteiras na metrópole originadas pelas remoções por força, por exemplo, para a adaptação da cidade à recepção de megaeventos; ou por o que chamamos de ‘remoções brancas’, geradas pelo aumento do custo de vida e pela especulação imobiliária em uma área, que muitas vezes provoca o êxodo da população original. As políticas de pacificação das comunidades também estão dentro desse processo. Porém trabalhar em uma perspectiva diferente é possível aliando a cidadania ao trabalho técnico do designer e criar outros mundos possíveis a partir do encontro com as pessoas”, destaca.
Articulando saberes, fazeres e poderes
Dentro dessa linha, a professora propõe aos acadêmicos da área o desenvolvimento de projetos em diferentes áreas do Rio de Janeiro. “Instiguei os estudantes a explorar os modos de vida e as práticas criativas na cidade. Propus que eles observassem como as pessoas habitam e usam os espaços urbanos, porque o que torna as cidades vivas são os usos e as apropriações que são feitos dos espaços”, conta.
O resultado foi uma série de projetos sensíveis aos cotidianos e integrados com as populações locais. “Um dos grupos de estudantes desenvolveu o projeto Prazeres Tour, que compreendeu a realização de um mapeamento das paisagens da comunidade do Morro dos Prazeres e o desenvolvimento de um aplicativo para celular que indicam os principais recantos e paisagens do local. Agora o turista que chega à comunidade pode baixar o programa e ter acesso mais facilitado à localização dos pontos turísticos. Esse mapeamento que possibilitou o desenvolvimento do aplicativo foi feito a partir de diários de campo construídos a partir da convivência junto às pessoas do local”, salienta Bárbara.
Do encontro com a comunidade do Morro dos Prazeres novas possibilidades de atuação se abriram. “Nessa experiência os estudantes conheceram o trabalho do seu Orlando Deto, uma espécie de conciliador para todas as causas da comunidade. Ele conhece profundamente a região, mas principalmente seus habitantes, a ponto de desempenhar a função de carteiro voluntário, distribuindo as cartas nas casas dos moradores, pois esse serviço não é realizado na comunidade por não haver endereços definidos. As cartas são entregues em um ponto localizado na entrada do morro e de lá o seu Orlando as distribui para os destinatários. A história sensibilizou os estudantes que fizeram o outro mapeamento da região baseado no trabalho dessa figura tão importante no local. O que eles fizeram na verdade foi uma cartografia da comunidade que se fundamenta mais no relato das pessoas do que necessariamente no registro espacial. Esse projeto eles denominaram de Cartagrafia. Essas são apenas duas da grande quantidade de projetos com o compromisso de articular o saber, o fazer e principalmente os poderes, ou o empoderamento das pessoas”, concluí a professora.
A conferencista
Barbara Szaniecki é professora na Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. É graduada em Comunicação Visual pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs (França), mestra e doutora em Design pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Atualmente é coeditora das revistas Lugar Comum, Multitudes e Redobra. É autora dos livros Estética da Multidão (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007) e Disforme Contemporâneo e Design Encarnado: Outros Monstros Possíveis (Pinheiros: Annablume, 2014).
Por Leslie Chaves
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A metrópole monstro e sua multiformance em busca de outro mundo possível - Instituto Humanitas Unisinos - IHU