07 Junho 2016
Em 1990, quando foi estuprada por um colega em seu quarto após um jantar a dois, Katie Koestner teve que enfrentar descaso e recriminações até da própria família.
A reportagem foi publicada por BBC Brasil, 06-06-2016.
Katie Koestner tinha 18 anos quando saiu com um colega, também estudante, e foi forçada a ter relações sexuais com ele. Quando isto ocorreu, em 1990, a ideia de que uma mulher poderia ser estuprada por alguém que conhecia ainda não era totalmente aceita, mas Koestner tornou sua história pública e o conceito de estupro como crime cometido por pessoas conhecidas começou a fincar raízes mais sólidas.
Em um depoimento à BBC, Koestner relata como tudo aconteceu e as recriminações que teve de enfrentar para isentá-la de qualquer culpa pela ação do estuprador.
"Cresci em Atlanta, Geórgia. Tinha uma irmã mais nova, uma mãe que não trabalhava e um pai que era agente do FBI. Aos 18 anos, fui para a universidade estudar engenharia química e japonês. Escolhi a Universidade de William & Mary, na Virgínia, que era um lugar de tradição. Decidi viver no campus em um alojamento feminino. Me joguei na vida universitária, entrei para uma banda e um grupo de jovens da igreja.
Na primeira semana conheci um cara. Pensei que ele era lindo e, por sorte, tinha talento à altura. Não era ingênua mas era romântica. Achava que, se você tivesse sorte, encontraria o príncipe certo.
Ele me convidou para jantar. Era muito raro comer fora do campus então estava bem animada com a ideia.
Fomos a um restaurante chique com velas e música ao vivo. Os garçons falavam francês, ele fez o pedido em francês e eu não estava acreditando na minha sorte. Sentia como se tivesse encontrado o melhor cara em todo o campus.
Depois do jantar eu não queria voltar para o quarto dele. Pensei que o colega de quarto dele poderia estar lá, ou que ele teria bebidas alcoólicas. E eu não queria beber.
Mas nunca pensei que tinha algo esquisito em um cara entrar no seu quarto, só para ficar lá. Não havia nenhuma ideia do tipo: 'Ok, a porta do seu quarto foi aberta então você deu a luz verde para tudo o que o cara queira fazer'.
No teto do meu quarto, podia-se ver um céu noturno com as constelações. Disse a ele: 'Vamos dançar embaixo das estrelas'. Eu era romântica e boba, tinha 18 anos.
Me lembro de ele tentar abrir os botões atrás do meu vestido. Eles eram complicados e eu pensei: 'Ai não, ele pode estragar meu vestido'.
Não pensei na minha segurança pois eu tinha saído com um cara ótimo. Eu só pensava que tinha que fazer ele parar, então o empurrei gentilmente.
Ele parou e foi para o outro lado do quarto. Olhei pelo espelho e vi que ele estava tirando a roupa e pensei 'oh, não'. Mas também pensei 'uau', porque ele era tão bonito.
Basicamente tive uma epifania feminista em questão de um minuto. Pela minha cabeça foram passando pensamentos como 'isto é rápido demais para uma boa menina', depois 'tenho que ser uma boa menina?' e 'afinal o que é uma boa menina e por que isso não é o mesmo que um bom rapaz?'.
Mas meu veredito final foi 'preciso fazer ele parar de tirar a roupa' então peguei meus bichos de pelúcia e joguei nele, rindo.
De repente ele me empurrou para o chão, para cima do tapete cor de rosa. Então veio um tipo diferente de pânico. Ele devia pesar uns 84 quilos. Eu era muito mais leve, tinha 48 quilos.
Ele segurou meus braços acima da minha cabeça com apenas uma das mãos e estava tentando tirar meu vestido. Eu estava com medo de não conseguir sair debaixo dele, mas ainda não pensava que seria estuprada.
Em 1990, estupro ainda era coisa feita por desconhecidos. Não era algo que pudesse ser feito por alguém que você gostava ou com quem você saía. As pessoas diziam que estupro acontecia na calada da rua ou num beco.
Eles falavam 'estacione em local iluminado, não ande sozinha'.
Meu pai tinha me dado um spray de pimenta quando fui para a universidade. Mas eu não o pendurei no pescoço para ir a um encontro.
O pior é que ele foi muito astuto para conseguir o que queria. Ele quase não me ouviu, eu tentei ser legal, não tentei chutá-lo onde doía ou expulsá-lo do meu quarto. Eu só não queria que ele fosse tão rápido.
Tentei tirá-lo de cima de mim, sem conseguir. Eu falava 'não' e 'por favor, sai'. Ele dizia 'calma, tudo vai ficar bem'... e assim veio o momento em que perdi minha virgindade, contra minha vontade.
Ter aquele momento especial, que eu estava guardando para a noite do meu casamento, despedaçado em um tapete rosa me chocou.
Quando ele foi embora eu não me mexia, me sentia paralisada.
Dia seguinte
No dia seguinte fui ao centro de saúde do campus. Eles me mandaram para casa com um frasco de comprimidos para dormir. Fui à sala do reitor e ele disse: 'você pode acabar com a vida dele e você parece perturbada emocionalmente, então você deve ir para casa e pensar com cuidado sobre isso'.
Então o cara começou a mandar bilhetes e deixar recados na secretária eletrônica falando 'não tente me evitar, vou te encontrar e falar com você, você não pode escapar, estou apaixonado por você'.
Finalmente eu não aguentei e contei para os meus pais. 'Pai, eu fui estuprada.'
'Vou até o lugar de carro e pego ele', disse meu pai, perguntando onde tinha acontecido. Acho que ele pensou em um estacionamento, mas eu falei 'aconteceu no meu quarto'. 'Como ele entrou? Ele arrebentou a fechadura?' E eu contei: 'Não, ele é estudante e eu o convidei para ficar comigo'.
'Não teria acontecido se você não tivesse deixado ele entrar no seu quarto Katie', disse o meu pai, desligando o telefone em seguida.
Conversa e escolha
Meus amigos e os amigos dele fizeram com que nos encontrássemos para conversar. Eles pensavam que se pudéssemos consertar as coisas, seríamos todos amigos de novo.
O encontrei na sala do alojamento dele. 'Você me ouviu dizendo 'não'?', perguntei.
'Fiquei sabendo que seu pai está bravo porque você não é mais virgem. Ligo para ele e falo que sou um cara legal e que você está em boas mãos', ele disse. Mas respondi que o problema não era esse.
'Você foi um pouco dura na primeira vez e precisamos de um pouco mais de prática, então você vai gostar muito mais', ele disse. Então ele disse - e eu lembro particularmente desta parte - 'é sempre difícil para virgens'. E este último comentário me fez perder o controle.
No final daquela conversa eu tinha duas escolhas. Se eu saísse do prédio e virasse à esquerda, eu voltaria para o meu alojamento. Se eu virasse à direita, iria para a delegacia.
Eu tinha tanto medo do que isto significava. Virar à esquerda significa que eu era a boa menina que todo mundo gostava, não desafiar meus pais, esquecer tudo.
Mas eu virei à direita.
Você tem que pelo menos tentar ajudar a salvar as próximas 19 meninas que vão sair com ele, que vão se sentir exatamente como você está se sentindo agora, pensei.
Foi muito constrangedor na delegacia do campus. Houve todo tipo de questão sobre sexo e o que eu estava vestindo.
Me senti uma idiota por ter convidado ele ao meu quarto e, quando admiti que deixei que ele pagasse o jantar, achei foi outra coisa que fiz errado.
Eles o interrogaram e também os nossos amigos. Eles notaram que havia hematomas e roupas rasgadas e o fato de que eu não era mais virgem. Não cheguei a gritar (durante o estupro), mas mordi minha bochecha.
Audiência
No fim, o promotor decidiu que tínhamos apenas 15% de chance de vencer o caso, pois a acusação de 'estupro' previa que a vítima deveria ter lutado fisicamente contra a ação.
A última opção então era usar o sistema disciplinar da própria universidade. Havia um protocolo com normas de comportamento e regras da universidade que todos os estudantes tinham de assinar ao fazer a matrícula.
Em 1990 este livro apenas afirmava: 'você não pode atacar sexualmente outra pessoa'.
Então eles fizeram a primeira audiência sobre má conduta sexual naquela universidade, a segunda mais antiga do país.
A audiência durou sete horas. Ele trouxe dois assistentes legais para a sala.
O estudante que me atacou admitiu que disse 'não' para ele mais de dez vezes. 'Então ela parou de falar 'não' e eu soube que tinha feito ela mudar de ideia', disse.
No dia seguinte o reitor me chamou até o gabinete dele e disse que eu deveria me sentir segura. Eles decidiram que o rapaz era responsável pelo que tinha acontecido e o proibiram de entrar no meu alojamento no resto do semestre.
'Vocês dois formam um casal tão bonito e ele gosta muito de você, então vocês poderiam voltar a ficar juntos', me disse o reitor.
Fiquei tão furiosa que pensei em escrever uma carta para todos os pais de alunos contando o que aconteceu e dizendo 'se você se importa com seus filhos, precisa protestar'.
Não tinha dinheiro para colocar todas as cartas no correio então mandei a carta para um jornal local.
A agência de notícias Associated Press pegou a história e ela se espalhou.
Recebi dezenas de ligações de jornais e talk-shows. Não queria que isso acontecesse, mas eles me convenceram a vir a público dizendo 'temos o lado dele da história, você não quer se defender?'.
Então sendo uma estudante branca, classe média alta, cristã, ótima aluna, eu tinha o currículo certo naquele momento da história para a discussão que foi assim: 'Uma mulher está atraída por um homem, deixa ele pagar o jantar, voltar para casa dela, mas ainda assim ela tem o direito de falar 'não'?'.
A revista Time até me colocou na capa da revista na semana que Gandhi morreu.
Consequências
Enquanto isso, treinei para ser uma conselheira em casos de estupro. Descobri que havia um lugar no campus onde foram relatados vários estupros. Montei, ali, um protesto de uma pessoa só, em que distribuía folhetos dizendo 'Você quer entrar nesse lugar, em que três mulheres foram estupradas semana passada?'.
Quando surgiu a notícia de que a HBO estava fazendo um filme sobre o que aconteceu comigo, 2.000 estudantes assinaram uma petição dizendo que eu tinha mentido. Ficava cada vez mais difícil andar pelo campus.
'Você está desvalorizando meu diploma, as pessoas só vão conhecer nossa universidade pelo estupro', as pessoas diziam. 'Estupro acontece em todo lugar, o sistema todo é que é errado', eu respondia.
Nos talk-shows sempre me perguntavam por que eu não tentei lutar com ele, ou se eu não poderia ter feito nada melhor. Nunca era 'por que ele achou que poderia ter relações sexuais com você?'. Fui acusada de prejudicar as mulheres, fazer com que nós parecêssemos fracas.
O pressuposto é que homens que estupravam nunca poderiam ser bem-educados, ricos ou ter talento para esportes
Palestras
Enquanto eu ainda estava na universidade, comecei a ir a escolas de ensino médio conversar com os jovens sobre o que tinha acontecido comigo para tentar evitar que eles passassem pelo mesmo.
Não consegui parar e faço isso há 25 anos.
Você deveria ver as lágrimas. Eles te abraçam, escrevem bilhetes, contam os segredos. Todas as vezes que me obrigo a contar minha história, surgem outras dez, 20, 30 outras histórias.
Digo que eles são a geração que pode mudar a conversa. Tem que ser 'nunca serei tão importante a ponto de não precisar do consentimento de alguém' e 'sempre tenho que esperar respeito da pessoa com quem estou'.
No meu caso eles chamaram de 'date rape', pois eu tinha saído para um jantar (com o estuprador), como se 'date rape' não fosse um 'estupro de verdade'.
Aquilo me chocou. Era como se você tivesse conseguido um jantar de graça, então não seria um estupro tão grave.
Se eu tivesse sido estuprada na rua, então eu teria medo de estranhos, mas se você é estuprada por alguém que você conhece, então você tem medo de todo mundo.
Ninguém deveria ter que passar pelo que passei."
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Como provei para o mundo que estupro cometido por um conhecido era algo real - Instituto Humanitas Unisinos - IHU