06 Mai 2016
“A interpretação autêntica da Exortação parece supor que a alegria do amor é a primeira chave de leitura a se ter em mente. Além disso, alegria/gáudio/canção de louvor/júbilo constituem uma espécie de leit motiv do magistério do Papa Francisco. Ao lado dessa chave de leitura, porém, seria preciso colocar também um princípio que Francisco considera fundamental: a prioridade do tempo sobre o espaço, que permite que o papa esclareça que ‘nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais’”, analisa Guido Innocenzo Gargano, em artigo publicado por IHU On-Line, 02-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Guido Innocenzo Gargano é monge camaldulense, professor de Patrologia no Instituto Pontifício Oriental, ensina a história da exegese dos Padres no Pontifício Instituto Bíblico. Entre suas obras publicadas pela editora Edizioni San Paolo, de Milão, Itália, estão: Il sapore dei Padri della Chiesa nell'esegesi biblica. Introduzione a una lettura sapienziale della Scrittura (2009); Clemente e Origene nella Chiesa cristiana alessandrina. Estraneità, dialogo o inculturazione? (2011); Sant'Agostino e la Bibbia. Un vescovo legge, studia, vive, spiega le Scritture (2011), entre outras obras.
Eis o artigo.
Os nove capítulos da Exortação apostólica pós-sinodal sobre o amor na família (LEV 2016) são uma pequena suma sobre a alegria de amar a partir da experiência de uma família cristã comum do século XXI, assim como ela foi vivida por um papa que chegou a Roma “do fim do mundo”, mas com um valor acrescido: o de dois Sínodos dos Bispos provenientes do mundo inteiro e o de especialistas, enriquecidos por alguns casais cristãos que informaram e formaram Jorge Bergoglio durante alguns meses. Muitos teriam desejado que este último grupo pudesse ter sido muito mais consistente, a partir do momento em que se tratava, principalmente, deles. No entanto, Francisco pôde encontrar no material na Relatio synodi final um amplo material para refletir antes de compor essa sua Exortação sinodal.
O documento pareceria dirigido, principalmente, para a hierarquia católica e para os “fiéis leigos”, mas isso não exclui o desejo que o papa faz a si mesmo e à Igreja de que ele seja lido com simpatia ou curiosidade também por outros diversamente leigos, não considerados fiéis, mas interessados, mesmo assim, nos mesmos problemas.
A interpretação autêntica da Exortação parece supor que a alegria do amor é a primeira chave de leitura a se ter em mente. Além disso, alegria/gáudio/canção de louvor/júbilo constituem uma espécie de leit motiv do magistério do Papa Francisco. Ao lado dessa chave de leitura, porém, seria preciso colocar também um princípio que Francisco considera fundamental: a prioridade do tempo sobre o espaço, que permite que o papa esclareça que “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais” (Premissa n. 3).
Com essas suas premissas, Francisco limpa o campo de qualquer pretensão de que a definitividade pretenda estar fundamentada no próprio magistério, especificando logo, com solenidade, que, “naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e práxis, mas isso não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela, até que o Espírito nos conduza à verdade completa” (cf. Jo 16, 13). Uma consequência desse princípio é a necessidade de redescobrir a responsabilidade das Igrejas locais, porque, “em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas” (ibid.). Isso envolve implicitamente um redimensionamento bastante significativo de todos os outros órgãos centrais da Santa Sé, que são dispensados do dever de intervir em problemáticas que cabem, de fato, às legítimas Igrejas locais. Novidade de não pouca importância.
Mas o papa também acrescenta, ao que recém disse, a especificidade do contexto do Ano Jubilar da Misericórdia, estrela-guia, em sua opinião, das indicações pastorais da Igreja que deverão ser lidas, por isso, sem nunca se esquecer de se referir à misericórdia sempre, em todo o lugar e para todos (Premissa n. 5).
Alguns elementos do Documento poderiam sintetizar uma espécie de espinha dorsal da Exortação. Como, por exemplo, estes: “abertura às Sagradas Escrituras; atenção ao essencial; constante referência ao ensinamento da Igreja sobre o matrimônio e a família; discernimento pastoral guiado pela misericórdia; espiritualidade; otimismo, que poderíamos resumir naquilo que Francisco diz na sua Premissa: as famílias não são um problema, mas, sobretudo, uma oportunidade” (n. 7).
Base teológica
A base teológica fundamental sobre a qual Francisco constrói a família cristã é o mistério de Deus, que se deixa “contemplar como Pai, Filho e Espírito de amor, do qual a família é reflexo vivo” (n. 11). À luz dessa visão teológica, coloca-se também a perspectiva própria da antropologia cristã que parte, nesse caso específico da família, do relato da criação da mulher (Gn 2), em que se evidencia “a inquietação vivida pelo homem, que busca 'uma auxiliar semelhante'” e a resposta de Deus que coloca ao seu lado e à sua frente um “tu” humano que tem o rosto de Eva, que “reflete o amor divino”. A mulher, o primeiro dos bens, é entendida, nessa perspectiva, como uma ajuda adaptada para Adão e sua coluna de apoio que se tornará para ele íntima a ponto de poder prestar a ela as palavras do Cântico dos Cânticos (2, 16; 6, 3): O meu amado é para mim, e eu, para ele (...). Eu sou para o meu amado, e o meu amado é para mim (n. 12), até ter que constatar que os dois são uma só carne (Gn 2, 24) (n. 13).
A ordem dos valores do matrimônio recorda a Gaudium et spes, do Concílio Vaticano II, mas também sugere que a ajuda recíproca e a intimidade afetiva são, dentro da realidade original do ser humano, distinguidas em homem e mulher, a própria imagem de Deus impressa no ser humano, que, por isso, permite falar de uma só carne, antes ainda que se faça referência à geração dos filhos.
A Palavra de Deus, proposta pela Bíblia, “companheira de viagem para as famílias” (n. 22), encontra na família a sede por excelência da “catequese dos filhos” (n. 16) e, na familiaridade com a Palavra de Deus, os pais obtêm os elementos fundamentais para desempenhar o dever de cumprir com seriedade a sua missão educativa (n. 17), estando bem atentos para não considerar os filhos como uma propriedade (n. 18), mas sim como uma oportunidade que lhes permite abrir, justamente, aos filhos, o caminho da vida (ibid.). É impressionante, nesse contexto, a lectio divina pessoal de 1Cor 13, hino paulino à caridade, da qual Francisco oferece um ensaio nos nn. 99-119.
Consciência pessoal e particularidade
Francisco não ignora que a vida de uma família também envolve sofrimento e sangue. De fato, ele se esforça para esclarecer: “Não tenho a pretensão de apresentar aqui tudo aquilo que poderia ser dito sobre os vários temas relacionados com a família no contexto atual”, mas apenas “recolher algumas das contribuições pastorais dos padres sinodais, acrescentando outras preocupações derivadas da minha própria visão” (n. 31). Os conselhos do Papa Bergoglio, em todo o caso, vão na direção de uma discrição delicada, porque “não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade” (n. 35). Emergem, assim, alguns elementos fundamentais da Exortação de Francisco, que poderíamos identificar na atenção à consciência pessoal dos fiéis, que “muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas” (n. 37), com uma recomendação extremamente importante dirigida aos agentes de pastoral de todas as ordens e graus: “Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (ibid.).
Essa recomendação não remove, de fato, a consciência de que há quem pense que “o enfraquecimento da família como sociedade natural fundada no matrimônio seja algo que beneficia a sociedade” (n. 42); ou que “um matrimônio com as características de exclusividade, indissolubilidade e abertura à vida acaba por aparecer como mais uma proposta antiquada entre muitas outras” (n. 53); nem ignora que “avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família, que tende a adotar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade” (ibid.). No entanto, Francisco considera que a recuperação do projeto original de Deus cumprido por Jesus no debate sobre o repúdio concedido por Moisés (cf. Mt 19, 3ss) mantém ainda todo o sabor de um convite a tratar o assunto, precisamente, como uma recuperação ou um itinerário a ser proposto a quem manifesta ter um coração endurecido, sem esquecer que “o verdadeiro significado da misericórdia implica, como ensinava João Paulo II, a restauração da Aliança”, levando em conta que “a noção do pecado é avivada perante o amor gratuito de Jesus” (n. 64), deixando transparecer uma espécie de maturação, justamente gradual, na própria percepção do pecado como pecado.
E, para não ser mal entendido por ninguém, Francisco especifica: “Deve ficar claro que este não é o ideal que o Evangelho propõe para o matrimônio e a família. Os Padres sinodais afirmaram que o discernimento dos pastores sempre se deve fazer 'distinguindo adequadamente' (Relatio synodi, 26.45) com um olhar que discirna bem as situações”, até lembrar o lembrete de autoridade de Bento XVI: “Não existem 'receitas simples'” .
Ainda mais marcante, a esse propósito, é o pensamento de Francisco quando escreve: “os batizados que se divorciaram e voltaram a se casar civilmente não só não devem se sentir excomungados, mas podem viver e amadurecer como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho” (n. 299). Ou quando, citando a Relatio finalis (n. 51), defende que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir fatores que limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações, e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição” (n. 79). Uma convicção que Francisco defende repropondo o ensino sempre válido de São Tomás de Aquino, que, depois de ter definido a união conjugal como “a amizade maior” (n. 123), acrescenta que é “uma amizade que inclui as características próprias da paixão, mas sempre orientada para uma união cada vez mais firme e intensa” (n. 125) .
Positividade da sexualidade
A referência à positividade da sexualidade é uma característica que conecta Francisco ao magistério de São João Paulo II, citado explicitamente e justamente sobre esse assunto, diversas vezes. Bergoglio também reitera a convicção cristã segundo a qual “o próprio Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas” (n. 150) e que “o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da sexualidade”, a partir do momento em que “nele se pode encontrar o 'significado esponsal do corpo e a autêntica dignidade do dom'” (n. 151). De fato, na união conjugal, “o erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos” (ibid.).
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Um breve excursus sobre matrimônio e virgindade
Francisco oferece uma brevíssima síntese, não desprovida de um certo interesse, nos números 158-162 da sua Exortação sobre duas problemáticas aparentemente marginais, que parecem nada superadas no debate da Igreja Católica contemporânea: a primeira refere-se à reproposição, de vez em quando, da questão do matrimônio dos padres; a segunda refere-se à crise, já diante dos olhos de todos, da Vida Consagrada. O Papa Francisco não propõe nada de definitivo sobre esses dois assuntos, mas as escassas linhas que ele escreve sobre eles poderiam ser um ponto de partida implícito — como acontece muitas vezes nos documentos do Magistério — de pronunciamentos bem diferentemente desafiadores a se esperar em um futuro mais ou menos distante.
Ouso pensar que essas pouquíssimas linhas podem esconder surpresas. Obviamente, não saberia dizer em qual direção. No entanto, o fato é que — parece que pela primeira vez — faz-se referência, em um documento solene da Igreja Católica, à exemplaridade e à ajuda preciosa que, em problemáticas como a da educação e formação dos seminaristas e dos padres, podem vir da “experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados” (n. 202), já presente nas Igrejas Católicas em plena comunhão com Roma. E o fato é igualmente que Francisco retorna para certas convicções, concebidas quase como definitivas, que consideravam e ainda consideram o estado da Vida Consagrada como superior ao estado matrimonial.
Especialmente a propósito desta última problemática, a Exortação do Papa Francisco (especialmente nos nn. 160-161) parece um verdadeiro convite a repensar teologicamente a comparação entre Vida Consagrada e Vida Matrimonial. De fato, explicitando um lembrete catequético de São João Paulo II, Francisco repete com certa solenidade: “Se, considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição (status perfectionis), não é por motivo da continência mesma, mas a propósito do conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos”. Depois declara: “Uma pessoa casada pode viver a caridade em um grau altíssimo. E assim 'chega àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos referidos conselhos'” [n. 160].
Daí o esclarecimento adicional que convida a colocar o conjunto da problemática no nível da simbolicidade.
Escreve o papa literalmente: “A virgindade tem o valor simbólico do amor que não necessita de possuir o outro, refletindo assim a liberdade do Reino dos Céus. É um convite para os esposos viverem o seu amor conjugal na perspectiva do amor definitivo a Cristo, como um caminho comum rumo à plenitude do Reino. Por sua vez, o amor dos esposos apresenta outros valores simbólicos: por um lado, é um peculiar reflexo da Trindade, porque a Trindade é unidade plena na qual existe também a distinção. Além disso, a família é um sinal cristológico, porque mostra a proximidade de Deus que compartilha a vida do ser humano unindo-Se a ele na encarnação, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge torna-se 'uma só carne' com o outro e oferece-se a si mesmo para partilhar tudo com ele até ao fim.
Enquanto a virgindade é um sinal 'escatológico' de Cristo ressuscitado, o matrimônio é um sinal 'histórico' para nós que caminhamos na terra, um sinal de Cristo terreno que aceitou unir-Se a nós e Se deu até ao derramamento do seu sangue. A virgindade e o matrimônio são e devem ser — conclui Francisco — modalidades diferentes de amar, porque — e aqui retorna de novo o ensinamento de São João Paulo II, trazido, desta vez, de uma encíclica (Redemptor hominis) — ‘o homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível, e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor’” [n. 161].
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Perspectivas pastorais
Dedicando-se mais explicitamente a algumas perspectivas pastorais, o papa insiste na necessidade de desenvolver novas vias pastorais, mas, também neste caso, volta àquilo que ele deixou claro desde o início, isto é, que ele pretende permanecer nas propostas gerais, deixando às diversas comunidades a tarefa de elaborar propostas mais práticas e eficazes (n. 199), não sem lembrar, de novo, a necessidade de cuidar especialmente da “formação da consciência” e enfatizando o respeito pelo “centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade” [n. 222], e admitindo que “há casos em que a separação é inevitável e, às vezes, pode se tornar até moralmente necessária” (n. 241), revelando, nesses argumentos, um respeito extremo, de sua parte, pelo ensinamento dos seus antecessores .
O Papa Bergoglio, talvez graças também à sua familiaridade com os Exercícios de Santo Inácio, insiste muito no discernimento, mas, depois, é muito decisivo ao chamar todos a considerar o sofrimento daqueles que sofreram injustamente a separação, o divórcio ou o abandono (n. 242), sem jamais esquecer a preciosidade do perdão, “um caminho que a graça torna possível” (ibid.), o conforto da Eucaristia (cf. ibid.), mas também a corresponsabilidade de todos os membros da comunidade cristã, que não deverá deixar sozinhos os pais divorciados que vivem uma nova união, especialmente com a ajuda que pode dar no acompanhamento solicitado pela educação das crianças. “Aliás, como poderíamos recomendar a esses pais que façam todo o possível por educar os seus filhos na vida cristã, dando-lhes o exemplo de uma fé convicta e praticada, se os mantivéssemos à distância da vida da comunidade, como se estivessem excomungados?” (n. 246).
Casamentos mistos e homossexualidade
Na mesma linha, voltada a dar testemunho credível da própria fé, o papa recorda os casos das complexas situações de casamentos mistos de todos os tipos, e das “pessoas com tendência homossexual” (n. 250), em relação às quais deverá ficar evidente que “a Igreja conforma o seu comportamento ao do Senhor Jesus que, em um amor sem fronteiras, Se ofereceu por todas as pessoas sem exceção” (ibid. Cf. Misericordiae vultus, 12). Também não falta um pensamento delicado também para as situações de luto, que dilaceram muitas vezes as famílias, em todos os seus componentes, muito mais do que parece. Tudo, porém, e parece ser realmente esta a preocupação de fundo de toda a Exortação, sem esquecer jamais que “os valores também se realizam de forma imperfeita e em diferentes graus” (n. 272).
Daí as suas deduções: “Quando se propõe os valores, é preciso fazê-lo pouco a pouco, avançar de maneira diferente segundo a idade e as possibilidades concretas das pessoas, sem pretender aplicar metodologias rígidas e imutáveis. (…) É necessário um processo gradual” (n. 273). Francisco insiste: “A liberdade efetiva, real, é limitada e condicionada. Não é uma pura capacidade de escolher o bem, com total espontaneidade” (ibid.). E explica: “Nem sempre se faz uma distinção adequada entre ato 'voluntário' e ato 'livre'” (ibid.). Por exemplo: “Uma educação que negligencie a sensibilidade pela doença humana torna árido o coração. E deixa os jovens 'anestesiados' em relação ao sofrimento do próximo, incapazes de se confrontar com o sofrimento e de viver a experiência do limite” (n. 277).
Não menos insidioso, segundo Francisco, é o uso excessivo das mídias de massa, que ele define como uma espécie de “autismo tecnológico” que expõe mais facilmente os jovens “às manipulações daqueles que procuram entrar na sua intimidade com interesses egoístas” (n. 278). Assim, conclui: “É preciso não enganar os jovens, levando-os a confundir os planos: a atração 'cria, por um momento, a ilusão da união, mas, sem amor, tal união deixa os desconhecidos tão separados como antes” (n. 284). Não há nada a dizer. Aqui Francisco demonstra ter sido um educador refinado que pretende pôr à disposição de toda a Igreja os frutos da sua experiência. E até mesmo as suas leituras! De fato, ele chega a aconselhar o livro A arte de amar, de Erich Fromm, um judeu psicanalista contemporâneo do qual provavelmente ele se serviu não só para entender melhor os outros, mas também a si mesmo. Ele não se contentou apenas com o Evangelho! Uma indicação de método nada óbvia, nessas coisas, por parte de um papa.
Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade
O discurso de Francisco ligado à arte de Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade é certamente aquele que pôde acender mais a curiosidade dos jornalistas e, obviamente, da opinião pública recebida e difundida pelos próprios jornalistas. É determinante, porém, ler esse capítulo justamente aqui onde está colocado, ao término de uma reflexão muito circunstanciada sobre a alegria de amor. O incipit desses pensamentos que se sobrepõem insistentemente um após o outro tem a forma de uma introdução solene tomada emprestada da Relatio synodi (n. 25), lida no contexto do Ano Jubilar da Misericórdia (n. 291): “Iluminada pelo olhar de Cristo, a Igreja dirige-se com amor àqueles que participam na sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também atua nas suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro e estar ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham” (ibid.).
Retorna a insistência na “chamada lei da gradualidade” de São João Paulo II (n. 295), explicada ulteriormente. De fato, “não é uma gradualidade da lei, mas uma gradualidade no exercício prudencial dos atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar plenamente as exigências objetivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem exceção, que se pode viver com a força da graça” (ibid.). Portanto, a lei nos torna conscientes do objetivo buscado, mesmo que esse mesmo objetivo ainda não foi alcançado .
Na realidade, essa definição da lei entendida como dom de Deus que indica o caminho pertence, de fato, ao que os Padres da Igreja entendiam quando falavam de Cânone ou mesmo de Dogma, entendendo-os como orientação de vida, isto é, como ajuda indispensável para alcançar a meta pretendida por Deus, mas não como a própria meta já alcançada. De fato, eles estavam bem conscientes de que, assim como a “littera” das Escrituras inspirada levava a, mas não se identificava totalmente com, o “spiritus” dela que é a Palavra de Deus, assim também toda codificação escrita de uma lei ou de uma “norma” devia ser entendida, dentro da Igreja, do mesmo modo.
Marginalizar e reintegrar
Em tal contexto, recebe mais luz também tudo aquilo que Francisco declara constatando que “duas lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar” (n. 296, cf. Relatio finalis 51). O caminho da misericórdia e da integração, que é a de Jesus, é também o caminho da Igreja, e ele consiste em “não condenar eternamente ninguém”, mas “derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita. Por isso, 'temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações, e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem por causa da sua condição'” (ibid.). Francisco continua: “Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objeto de uma misericórdia 'imerecida, incondicional e gratuita'”.
“Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho!” (n. 297). E o papa especifica: “Não me refiro só aos divorciados que vivem em uma nova união, mas a todos, seja qual for a situação em que se encontrem” (ibid.). Depois, acrescenta: “É compreensível que se não devia esperar do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canônico, aplicável a todos os casos. (…) o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos (Relatio finalis 51), as consequências ou efeitos de uma norma não devem necessariamente ser sempre os mesmos”, acrescentando em nota: “E também não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina sacramental”. Portanto, nesse âmbito, são os presbíteros que devem “acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo” (n. 300).
O exercício de exame de consciência
É nesse ponto que Francisco recorda a todos os interessados a tradicional necessidade, presente desde sempre na Igreja e motivada pela autoridade de São Tomás de Aquino, de fazer um sincero “exame de consciência”. O papa escreve: “Uma reflexão sincera pode reforçar a confiança na misericórdia de Deus que não é negada a ninguém (Relatio finalis 85). Trata-se de um itinerário de acompanhamento e discernimento que orienta esses fiéis na tomada de consciência da sua situação diante de Deus” (ibid.). E lembra: “Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é incapaz de exercitar bem alguma das virtudes, pelo que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta com clareza a existência de alguma delas, porque a prática exterior dessa virtude está dificultada” (n. 301).
Referindo-se, depois, a um texto do Catecismo da Igreja Católica, ele recorda ainda que “a imputabilidade e responsabilidade de um ato podem ser diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros fatores psíquicos ou sociais”. E conclui: “Por esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida” (n. 302). “É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir de uma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta de um ser humano” (n. 304). Tomás de Aquino ensinava: “Embora nos princípios gerais tenhamos o caráter necessário, todavia, à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação” (ibid.). Uma citação que pareceria ser quase a de um físico nuclear. Mas se trata de um texto da Summa Theologiae de São Tomás (I-II, q. 94, art. 4). O papa acrescenta em nota que o próprio São Tomás concluía: “Se existir apenas um dos dois conhecimentos (o geral e o particular), é preferível que este seja o conhecimento da realidade particular”! (n. 304, nota 348). Daí uma advertência muito precisa que pode ser lida em nota (n. 305, nota 351): “Aos sacerdotes, eu lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor”.
Tudo o que o Papa Francisco escreve na sua Exortação poderia, em suma, a meu ver, ser rastreado nestas suas palavras precisas: “Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade em viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via caritatis” (n. 306). Sugestão que já tínhamos lido na Evangelii gaudium em que Francisco tinha escrito: “Sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após dia, dando lugar à misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem possível” (n. 308).
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Uma leitura da Amoris Laetitia. Artigo de Guido Innocenzo Gargano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU