Por: Cesar Sanson | 26 Abril 2016
O ataque promovido pela Polícia Militar a trabalhadores rurais sem terra, no último dia 7, em Quedas do Iguaçu/PR, é contado em cronologia construída a partir da coleta de depoimentos das vítimas. As falas revelam que trabalhadores sem terra foram vítimas de massacre – em emboscada, Polícia Militar atirou para matar. Dois trabalhadores foram mortos e outros dois ficaram gravemente feridos.
A cronologia dos fatos aponta para irregularidades na investigação da Polícia Militar e vai contra a versão apresentada pela polícia. Esse é o terceiro caso de assassinato de trabalhadores rurais sem terra com a participação da Polícia Militar do Paraná. Até o momento, mentores e executores dos crimes anteriores não foram punidos.
A reportagem é publicada por Terra de Direitos, 25-04-2016.
Em 7 de abril de 2016, a dez dias do vigésimo aniversário do massacre de Eldorado dos Carajás, a Polícia Militar do Estado do Paraná assassinou a tiros de pistola e fuzil os integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Vilmar Bordim, 44 anos, casado, pai de três filhos e Leonir Orback, 25 anos, que deixou dois filhos e a esposa grávida aos nove meses. A Polícia Militar também feriu a tiros, gravemente, outros dois integrantes do MST, Pedro Francelino e Henrique Gustavo Souza Pratti.
No mesmo dia, a Polícia Militar tratou de apresentar uma versão para os fatos, indicando que os responsáveis pela ação seriam os integrantes do MST. Na versão contada pela PM, os trabalhadores teriam “atirado para o alto”, como se tal fato justificasse a ação truculenta e desmedida da Polícia Militar do Estado do Paraná, no que se configura uma verdadeiro massacre.
A versão montada pela Policia Militar foi veiculada amplamente durante o Jornal Nacional. A divulgação serviria para referendar uma versão inverídica dos fatos, de modo a culpar o MST e inocentar os policiais assassinos.
Contudo, o avanço de investigações imparciais conduzidas pela Polícia Federal e pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) desmontam a versão apresentada pela Polícia Militar, e indicam que os trabalhadores sem terra foram vítimas de agressões injustificáveis. Não houve qualquer situação que autorizasse a Polícia Militar a atacar a tiros, de forma extremamente violenta, os integrantes do MST.
Emboscada armada: sem terras são vítimas
Desde seis de julho de 2015 cerca de 1.200 famílias de trabalhadoras e trabalhadores rurais sem terra ocupam uma área de cerca de 10.780 hectares, localizada no município de Quedas do Iguaçu. A área ocupada pertence à União, uma vez que está inserida dentro do perímetro da faixa de fronteira. Entretanto, a empresa Araupel ocupa irregularmente a área, e os supostos títulos de propriedade da Araupel já foram declarados nulos na Justiça Federal, em dezembro de 2015. A ocupação do MST denuncia a grilagem de terras na região, ao tempo em que tem o objetivo de pressionar para que as terras públicas se tornem assentamentos da Reforma Agrária.
Já no início da ocupação, em julho de 2015, os integrantes do MST bloquearam, com terra e pedaços de madeira, uma estrada de terra, dentro da área, que liga os fundos do acampamento à rodovia PR 484. A obstrução dessa estrada de terra foi realizada para evitar a entrada de caçadores, madeireiros ilegais e outras pessoas que pudessem vir a ameaçar os acampados e acampadas.
Na tarde de quinta-feira (07), os integrantes do Acampamento Dom Tomás Balduíno tomaram ciência de que o bloqueio da estrada de terra havia sido retirado por alguém, estando à estrada desimpedida, possibilitando a entrada de quaisquer pessoas pelos fundos do acampamento. Diante de tal situação um grupo de integrantes do acampamento se reuniu para verificar a informação de que a estrada teria sido aberta para, se necessário, fechá-la novamente.
Munidos de garrafas de água, enxadas, foices e facões – suas ferramentas de trabalho – aproximadamente 40 pessoas, entre homens e mulheres, se dirigiram ao local. O grupo era transportado por três motos, à frente, seguidas por uma caminhonete e um ônibus onde estava um grupo maior, de aproximadamente 15 pessoas.
A estrada por onde seguiam é rodeada por monocultura de Pinus, e apresenta em suas margens, e mesmo na via, mato crescido, uma vez que essa estrada não é utilizada com regularidade. Um dos motoqueiros do comboio de trabalhadores se distanciou do restante do grupo cerca de cem metros e, em uma curva da estrada, foi abordado, de forma repentina, por um grupo de aproximadamente dez Policiais Militares. Os Policiais mandaram o trabalhador descer da moto e caminhar até eles de costas, com as mãos na cabeça, ordem à qual obedeceu prontamente.
Os policiais revistaram o trabalhador e encontraram apenas sua carteira e um telefone celular. Em seguida, os Policiais Militares ouviram o som dos motores dos outros veículos, momento em que puxaram o rapaz para o canto da estrada e se embrenharam no mato. Os Policiais Militares, armados de pistolas e fuzis, bem com munidos de escudos balísticos, se entocaiaram no mato, à beira da estrada, de modo a esperar e surpreender os integrantes do MST que vinham em direção a eles.
Quando os outros dois motoqueiros chegaram à curva da estrada em que a polícia os esperava de tocaia, os Militares, fortemente armados, saltaram do mato e gritaram, de modo a obrigar os integrantes do MST que estavam nas motos a deitar no chão. Nesse mesmo momento uma caminhonete com integrantes do MST se aproximou do local e parou bruscamente, uma vez que o motorista da caminhonete viu, há cerca de 60 metros, que os integrantes do MST que estavam nas motos haviam descido delas.
Assim que a caminhonete parou os integrantes do movimento que estavam dentro dela, na caçamba e na cabine, desceram do veículo. No momento em que os trabalhadores desciam da caminhonete, praticamente no mesmo instante que os outros dois trabalhadores desciam de suas motos, a Polícia Militar começou a disparar em direção à caminhonete. Segundo a própria Polícia Militar realizaram-se cerca de 130 disparos de armas de fogo, entre rajadas de fuzil e tiros de pistola ponto 40.
Iniciado o ataque pela Polícia Militar, aqueles e aquelas que estavam na parte de cima da caminhonete conseguem descer, e imediatamente correm na direção oposta à dos tiros, avisando os demais companheiros que se tratava de uma emboscada. As pessoas que estavam no interior da cabine têm mais dificuldade para fugir. Vilmar Bordim, que estava dirigindo a caminhonete, é atingido fatalmente com um tiro nas costas logo ao sair do veículo. Leonir Orback, que estava sentado atrás do motorista, ao tentar fugir também recebe um tiro pelas costas.
Henrique Gustavo Souza Pratti estava em cima da caminhonete, e ao tentar fugir para se esconder recebeu um tiro que o atingiu por trás, na perna, derrubando-o imediatamente no chão. Henrique conta que quando estava caído viu um de seus companheiros ser atingido pelas costas.
“Eu caí, e ai vinha um pessoal correndo que conseguiu passar por trás do ônibus e ir embora, e o rapaz que estava correndo levou um tiro e caiu ali do lado, que foi um dos que morreram”, conta.
As pessoas que estavam no ônibus, ao ouvirem os tiros, também correram para o mato – algumas pularam a janela para conseguir se salvar. Duas pessoas não conseguiram sair do ônibus e ficaram ali se escondendo dos disparos.
Segundo Pratti, a polícia avançou, a tiros, até o local onde eles estavam caídos. Assim que os Policiais Militares chegaram ao local em que se encontravam as pessoas vítimas dos disparos, um grupo de policiais ficou na área e outro foi chamar reforços. A polícia não socorreu as vítimas imediatamente, e estas ficaram no local por cerca de uma hora e vinte minutos, até chegar a ambulância para socorrê-los.
Pedro Francelino, que foi atingido na nádega e no braço ao tentar fugir, também caiu em meio ao mato, e não consegui se levantar pelos ferimentos das balas. “O rapaz que estava machucado que caiu no mato, eles falavam ‘vem para a estrada’, mas ele dizia que não podia, pois estava machucado, baleado. Ele se agarrou em alguma árvore e veio, aí eles o revistaram para ver se não havia nem uma arma”, diz Prati quanto à situação vivida por Pedro.
Momentos de tensão: polícia e ameaças
Segundo Pratti, os momentos que passaram no local esperando pelo SAMU foram tensos, pois as ameaças eram constantes – sem contar que ele e o outro rapaz ferido perderam bastante sangue durante a espera.
“Foi uma pressão psicológica que eu nunca tinha visto na minha vida, que eu nunca tinha sofrido. Ameaça de morte o tempo inteiro, que se o pessoal voltasse de lá eles iam passar fogo em mim, nos dois que estavam no ônibus e no outro rapaz que estava machucado”.
Até a chegada do socorro os policiais militares mexeram na cena do crime, tiraram o ônibus e a camionete do lugar, e retiraram os dois corpos, de Vilmar Bordin e Leonir Orback, das posições em que estavam.
Na sexta-feira (8), um dia após o acontecido, a Polícia Civil levou a caminhonete para a perícia. O ônibus e as motos, porém, não foram levados.
Vítimas foram presas. Policiais assassinos foram soltos
As duas pessoas que não conseguiram sair a tempo do ônibus foram levadas à delegacia, prestaram depoimento e foram soltas na mesma noite. Henrique Gustavo Souza Pratti e Pedro Francelino, devido à gravidade dos ferimentos, foram levados a hospitais do município de Cascavel, PR.
Os dois feridos foram autuados em flagrante pela Delegada de Policia Civil, Ana Karine Turbay Palodetto, por suposta tentativa de homicídio qualificado e porte ilegal de arma de fogo. O Ministério Público requereu a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, pedido ao qual atendeu prontamente a juíza responsável, sob a alegação de constituírem, Pedro e Henrique, ainda que gravemente feridos, perigo à ordem pública.
Destaca-se que a Polícia Militar, autora do massacre, diz que foram supostamente encontradas duas armas de fogo no local, e que estas estavam com Vilmar Bordin e Leonir Orback. Segundo laudo da própria policia, as duas armas se encontram com os cartuchos intactos, ou seja, não foram disparadas. Não foram encontradas outras armas de fogo.
Com isso, não há indícios de que Henrique e Pedro estivessem portando qualquer arma de fogo. Se até os Policiais Militares que participaram do massacre não acusaram os dois trabalhadores de disparar ou mesmo de estar com alguma arma, por que as vítimas, hospitalizadas, foram presas?
No período em que Pedro e Henrique estiveram presos no hospital, seus advogados foram impedidos, por seis dias, de terem com eles conversas reservadas, o que constitui grave violação à lei n° 8.906/94.
E as ilegalidades não param por aí. De forma completamente arbitrária, Pedro Francelino foi ouvido pela Delegada Ane Karine sem a presença de seus advogados, logo após haver sido submetido a uma cirurgia e uma transfusão de sangue, quando ainda estava sob efeito de sedativos e psicologicamente abalado com o ocorrido. Como se não bastasse, o áudio desse depoimento colhido ilegalmente vazou, e uma parte recortada da gravação foi reproduzida no Jornal Nacional.
Henrique teve alta na terça-feira, dia 12, e foi levado para a 15° Subdivisão Policial de Cascavel, que não possui condições estruturais mínimas para o atendimento das recomendações médicas necessárias para sua recuperação, conforme alegou o próprio delegado de Polícia Mario Chofifi, em ofício encaminhado ao Juízo de Quedas do Iguaçu. No dia seguinte, os advogados, apoiados por parecer do Ministério Público, apresentam pedido de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar, atendido de pronto pela juíza responsável.
Pedro Francelino recebeu alta na quinta-feira (14), um dia após realizar uma última cirurgia no braço, sendo que também foi encaminhado para a 15ª SDP de Cascavel. Avaliando que, da mesma forma que Henrique, as condições de saúde de Pedro também não o permitiam permanecer na cadeia, os advogados de defesa entraram com um pedido de prisão domiciliar que foi atendido na segunda-feira (18).
Tanto Henrique quanto Pedro estão presos por homicídio qualificado e porte ilegal de arma. Para os advogados, não existe fundamento legal para as prisões, pois os integrantes do MST foram vítimas de um ataque.
Ainda na quinta-feira (14), nove pessoas ligadas ao movimento, que estavam presentes na hora do ataque, foram ouvidas pela Polícia Federal e Ministério Público, no município de Cascavel. Os depoimentos foram acompanhados pelos advogados da Terra de Direitos.
A Polícia Civil finalizou o Inquérito Policial no dia 15 de abril. A delegada Ane Karine, que presidiu o Inquérito, afirmou não haver provas suficientes para concluir quem iniciou os disparos. O Inquérito foi encaminhado para o Ministério Público, que deve devolvê-lo à Polícia Civil concedendo mais prazo para realizar as investigações. Outras duas investigações foram abertas no âmbito do GAECO e da Polícia Federal.
O passado condena a Polícia Militar do Estado do Paraná: violência e impunidade contra o MST
Nos últimos anos foram assassinados, a tiros e em conflitos coletivos pela posse da terra rural, dezessete integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Estado do Paraná.[1] Apenas nos casos dos assassinatos de Sebastião Camargo (1998) e Eduardo Anghinoni (1999) houve responsabilização penal com trânsito em julgado, sem que, contudo, fosse possível responsabilizar mandantes.
Quanto aos casos de assassinatos de integrantes do MST, cumpre relembrar que Diniz Bento da Silva (1993) e Antônio Tavares Pereira (2000) foram assassinados a tiros pela Polícia Militar do Estado do Paraná, e até o momento não foi possível identificar e responsabilizar criminalmente executores e mandantes dos crimes.
Nesse contexto de impunidade o Estado brasileiro foi condenado na Corte Interamericana e Direitos Humanos por ausência de investigação eficaz e responsabilização criminal pelo homicídio do trabalhador rural sem terra Sétimo Garibaldi (1998), tendo a referida Corte sentenciado que “uma das formas mais relevantes para combater a situação de impunidade em casos como o presente é investigar a atuação dos agentes estatais envolvidos”, bem como que a ausência de combate à violência “propicia a repetição crônica”.
Ademais no ano de 2009 o Estado brasileiro foi condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos por ter a Polícia Militar do Estado do Paraná, com anuência do Poder Judiciário, realizado escutas telefônicas ilegais contra membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Nesse mesmo contexto de impunidade a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendou ao Estado brasileiro, nos casos dos assassinatos de Diniz Bento da Silva (1993) e Sebastião Camargo (1998), dando conta da situação de impunidade relativas aos crimes cometidos contra integrante do MST no estado do Paraná, a realização de investigações efetivas, as quais nunca se materializaram efetivamente.
Espera-se que o massacre de Quedas do Iguaçu não tenha o mesmo desfecho de impunidade. A atuação da Polícia Federal e do Gaeco tem o potencial de apresentar a verdade sobre os fatos ocorridos, restabelecendo a verdade sobre os fatos e possibilitando a punição dos Policiais Militares.
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Cronologia aponta massacre de trabalhadores rurais em Quedas do Iguaçu: Polícia Militar emboscou e atirou para matar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU