05 Janeiro 2016
Não se deve desistir dos cultos que admitem um único ser superior alegando que eles geram fanatismo, mas sim relativizá-los e subordiná-los a uma convivência cívica.
Os trabalhos do egiptólogo alemão Jan Assmann tratam não somente da Antiguidade, mas também da memória do Egito, da invenção do monoteísmo e das relações deste com a violência, investigando as relações entre os dois.
A entrevista é de Nicolas Weill, publicada por Le Monde, 29-12-2015.
Eis a entrevista.
O senhor disse um dia que estávamos vivendo uma época em que a violência religiosa atingia proporções extremas. O senhor acredita que esta é intrínseca ao monoteísmo?
A violência religiosa é uma violência em nome de Deus. No entanto, pelo menos no plano teórico, é preciso fazer uma distinção aqui entre motivação e legitimação, ainda que muitas vezes elas se confundam na prática. As atrocidades da organização Estado Islâmico, por exemplo, seriam motivadas pela religião ou estariam obedecendo a motivações totalmente diferentes, como ganância, impulsos sanguinários, sede de vingança ou de poder, uma vez que o pretexto religioso de um combate pela fé foi invocado somente para ganhar novos adeptos, ou ainda por outros motivos?
A violência religiosa não é inerente ao monoteísmo no sentido em que ela decorreria necessariamente da fé em um Deus único ou em uma verdade única, mas ela está inscrita como possibilidade em religiões que, monoteístas ou não, se dizem detentoras de verdades absolutas, reveladas para negar ou até destruir tradições mais antigas e bem estabelecidas. No judaísmo, isso só afetaria o período em que o povo escolhido teve de se impor contra os cananeus que habitavam a Terra prometida, recorrendo à expulsão e ao extermínio; mais uma vez, não se tratavam de fatos reais, mas de uma reconstrução mítica bem mais tardia.
A violência de motivação religiosa contra os "infiéis" e os "hereges" teve um papel importante na história do cristianismo e do islamismo. Uma importância particular é atribuída aqui à ideia apocalíptica do fim dos tempos e do julgamento final, que se baseia na distinção entre amigo e inimigo, entre salvação e danação.
A violência não nasce da mistura entre monoteísmo e nacionalismo?
O nacionalismo, desde seus primórdios, casou bem com a violência religiosa. Hoje, isso continua sendo um elemento-chave nos conflitos entre hindus e muçulmanos no sul da Ásia. A violência cometida por hindus contra muçulmanos sempre me é apresentada como uma prova de que o politeísmo também é violento. Mas a questão aqui é de nacionalismo. Ainda que as tropas da organização Estado Islâmico sejam compostas de ex-soldados de Saddam Hussein, nesse caso não estamos lidando com uma violência nacionalista: é uma soldadesca que não age em nome de uma "pátria", mas sim em causa própria se passando pela causa de Alá.
O monoteísmo o é por definição política?
Sim, pelo menos é possível afirmar isso sem medo sobre o primeiro verdadeiro monoteísmo tal como ilustra a Torá. A teologia da aliança, na Bíblia hebraica, é uma ideia tão política quanto religiosa. Mas na minha cabeça seria totalmente errado jogar o descrédito sobre "o monoteísmo" como um todo. A culpa é somente do fundamentalismo, sob todas suas facetas que são o fanatismo, o salafismo ou até o terrorismo.
O senhor mostra em suas obras que é menos a história do monoteísmo do que a maneira como ele foi rememorado que veicula em si sua violência. O senhor pode explicar esse ponto?
O monoteísmo bíblico não é um fenômeno do século 14 ou 13, mas sim do século 6 a.C. Ele aparece sob duas formas: primeiro como um monoteísmo da fidelidade, fundado no mito da saída do Egito e que exige daqueles que foram então libertados uma fidelidade absoluta ao Deus libertador. Em seguida, como um monoteísmo da verdade que reconhece somente um Deus, criador do céu e da terra. Esta última orientação nega a existência de outros deuses, ao passo que o monoteísmo da fidelidade pressupõe o contrário.
Notemos que somente essa forma original do monoteísmo, central na Bíblia, rememora a história de seu nascimento e de seus triunfos através de cenas de violência: as pragas do Egito, o massacre que se segue ao episódio do Vitelo de Ouro e outros castigos cruéis durante os 40 anos no deserto, assim como a tradição que menciona o destino violento reservado aos profetas, tradição que se encarna em primeiro lugar no livro de Isaías 2 (cânticos do servo do Senhor) e em Neemias: Israel se desviou da aliança e da Lei, matou aqueles que Deus havia enviado para levá-lo ao caminho certo.
É sobre essa tradição que se baseia o Novo Testamento, e o Corão também vibra de cólera contra os inimigos do Profeta. Mas ela reside mais na ambivalência do pensamento da aliança, com sua dialética da fidelidade e da traição, da bênção e da maldição ou, em uma ótica cristã, da salvação e da danação.
É possível pensar em um monoteísmo desarmado?
A não-violência absoluta me parece como a única possibilidade para a religião, qualquer que seja ela, de conservar algum poder em nosso mundo moderno, globalizado. Poder e não-violência não são contraditórios, Gandhi mostrou isso, e de acordo com muitas passagens do Novo Testamento (não todas, longe disso), essa também pode ter sido a causa defendida por Jesus de Nazaré. De qualquer forma, a despolitização pelo cristianismo do messianismo judaico e a transferência do reino de Deus para fora desse mundo, onde ele teria concorrido com o Império Romano e significado sua queda, para um além puramente espiritual, é uma etapa decisiva da pacificação do mundo.
Em que medida os textos sagrados como Bíblia e Corão geram violência e é necessário expurgá-los?
Os homens nunca deixaram de se referir a textos sagrados, sobretudo ao Antigo Testamento, para legitimar seus atos de violência. Durante a Primeira Guerra Mundial, os alemães justificaram sua agressão contra a Bélgica neutra, considerada um crime de guerra, citando o Deuteronômio (2:26 e seguintes), a história de Siom rei de Hesbon que, tendo se recusado a deixar os israelitas atravessarem seu território, foi aniquilado junto com seu país. Eu veria, aliás, em tais procedimentos, uma violação ao Terceiro Mandamento: "Não tomarás o nome do Senhor em vão" Os textos que apelam para a violência devem ser explicados em relação com o contexto de sua época. Existe aí uma grande responsabilidade para os pregadores e os exegetas.
Por vezes se alegou que o senhor era a favor de uma espécie de retorno ao paganismo. Como o monoteísmo poderia evoluir para extirpar sua violência?
Eu nunca defendi um retorno ao paganismo. Não devemos desistir das religiões reveladas, mas somente relativizá-las um pouco mais subordinando-as às regras gerais de uma convivência cívica. A religião universal pensada pelos filósofos do Iluminismo se apresenta para nós hoje sob a forma secular dos direitos humanos. É isso que deve prevalecer, não às custas das religiões tradicionais, mas sim em aliança com elas.
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"A não violência absoluta é a única possibilidade para a religião", diz pesquisador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU